Excerto do livro

Texto: A Guarda "in illo Tempore"
Autor: Benjamim Martinho Ribeiro
Copyright © Benjamim Martinho Ribeiro

Texto: Guarda, meu Amor
Autor: Cunha Simões
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Impresso por Prima, Lda., Alcanena - Novembro 2006

Depósito legal Nº 250577/06

ISBN: 978-972-8832-64-3

P.V.P. 15,00 €

A GUARDA
“IN ILLO TEMPORE”

 

PRÓLOGO

Muitas vezes, em reuniões familiares, me valia de certos episódios pitorescos, para ilustrar com palavras, cenas do quotidiano longínquo, que reflectia nas coisas e pessoas de quem falava, a imagem telúrica e verdadeira, de uma adolescência que remonta aos meados do século XX.
Mas eu nunca pensei em colocar essas coisas em letra de forma – até porque, não via no relato dessas pequenas coisas, qualquer serventia que pudesse, de algum modo, merecer o interesse fosse de quem fosse.
E sempre que surgia qualquer oportunidade, eu gostava de rememorar um pouco desse passado distante.
Por inúmeras vezes, o professor Luís da Silva Telles (marido da minha irmã e professor universitário) insistia:
- “Você precisa, antes de passar para o outro “lado”, colocar isso no papel, do mesmo jeito que você conta, sem rodeios ou qualquer rebuscamento literário”.
É por isso que vou tentar fazer, sem qualquer ordem cronológica, falando de algumas pessoas, e não da cidade – porque desta, muitos falaram e muitos outros irão continuar falando.
Os episódios que tentarei contar, são verdadeiros e vivenciados, com excepção de meia dúzia de lorotas, que o meu amigo Manuel Vinhas me contava, mas garantia que eram autênticas – e eu acreditava, exactamente porque ele, conhecia, praticamente, a vida de todos (ou quase todos) os habitantes da cidade, naquele tempo.
Quando o episódio possa, de algum modo, ferir a susceptibilidade de prováveis descendentes, os nomes serão omitidos, ainda que, muitos deles, sejam de fácil identificação.
Uma grande parcela de pessoas – talvez um pouco mais novas que eu – não terão dificuldade em identificar esses de quem falo, e seja qual for a dose de “sal ou pimenta”, com que eu possa temperar o acontecido, não haverá, em qualquer uma destas notas, um simples assomo de ressentimento, ou qualquer resquício de ódio – até porque seria injusto comigo mesmo, se porventura o fizesse.
Lá, só deixei amigos (alguns, dos melhores que tive na vida), com os quais aprendi muito – até mesmo com aqueles cujo ideário social, não se afinava com a minha maneira de ser e de pensar.
Para esses muitos que ainda guardam na memória do tempo, a lembrança de uma cidade pequena – onde quase todos se conheciam – e para os quais, o atavismo beirão, ainda ressurge como a “Fénix Renascida”, emergindo dos escombros e da penedia, essas notas autênticas, renascidas de uma juventude distante, não deixarão de ser uma espécie de lenitivo, ornamentado de maias brancas e amarelas, as cercanias da montanha emoldurada e bela! …

B. M. R.

De qualquer um dos lados que o visitante ou o forasteiro se dirigir à cidade da Guarda, deparar-se-á, ao chegar ao sopé da montanha, com uma espécie de presépio rústico incrustado nos píncaros agrestes das faldas da Serra da Estrela.
No Inverno, a neve e o gelo, cobrem de branco os galhos despidos e a caruma verde-escura dos pinheiros. É a brancura dos céus cobrindo o presépio rústico, e a cidade inteira, brilha como se fosse um imenso vestido de noiva, no altar da cordilheira que se estende para além dos Pirinéus.
A imagem desses dias de neve e de sincelo, o frio cortante do vento “cieiro” que almoçava em Trancoso e vinha jantar na Guarda, são marcas de um tempo que a vida não esquece – cicatrizes que nem os anos, nem a distância, conseguem dissipar – nem apagar da memória que Deus me deu. E esta mania de ser poeta à minha maneira – mesmo que a vida não tenha sido um “mar de rosas” – não deixará passar em brancas nuvens, os Dezembros tão gelados e os Janeiros tão distantes, porque no cerne dessa poesia acalentada de saudosismo, haverá sempre o orvalho gelado das madrugadas.
No verão, o sol escaldante, sufoca o sorriso das estevas e dos piornos, que ainda resistiram ao rigor do Inverno, e florescem pelas encostas serranas, trazendo nas tardes amenas, a esperança de um novo amanhecer.
E nesse contraste de extremos, como que amainando esse ímpeto de crueldade, surgem os vales do Mondego e da Vela, com as suas várzeas produtivas, carregando as riquezas daquele solo abençoado, para abastecer a cidade, através das curvas rochosas do caminho.

Com apenas quinze anos e um alforge repleto de ilusões, fui morar na Guarda, em casa dos meus tios, lá no bairro do Bonfim.
Vindo da aldeia, como tantas outras centenas de adolescentes, era apenas mais um, entre os muitos pacóviozitos que deixaram para trás, umas leiras de terra e os cômoros formados pelos tabuleiros que a neve e o sincelo, congelam no Inverno rigoroso destas bandas de Malcata e Estrela.
Mesmo longe, não se apaga facilmente a imagem desses penhascos tão rudes, que nem mesmo Deus se apercebeu ainda que estes rincões existem e fazem parte do reino – um reino que só existe na imagem telúrica desses muros de pedras soltas, dividindo tapadas, entre os vales minúsculos que, gelados no Inverno, nem de longe se imagina que o sol de fogo do verão, deixa estorricado o solo pobre e cansado, onde apenas o centeio e a cevada, medram, com a ajuda dos céus.
Tal como outros, também eu deixei para trás, os rêgos de batatas, o burro e o carro de bois.
Ano após ano, chegava uma nova “safra” de adolescentes, na esperança de aprenderem na cidade, algo mais que a aldeia não podia dar.
Muito mesmo depois de terem assimilado um pouco de novas “luzes”, retornavam ao lugar de origem, onde sepultavam a pedagogia de alguns anos, nos sulcos macilentos da charrua e nas aivecas do arado.
Nos sulcos dessa terra cansada, germinava, para eles uma filosofia narrativa e concreta, que nunca viria a ser encontrada nas páginas bolorentas dos velhos alfarrábios – e menos ainda, na ladainha convencional dos brocados latinos.
Mas tudo isso é uma nova experiência de vida, uma luz que emergia do alto da colina, como um raio de sol nos dias gelados do Inverno serrano.
E talvez porque tive a ousadia de participar dessa experiência, de sentir na pele o quanto representa o simples facto de ser parte do pioneirismo lusitano, a cicatriz que a vida vai deixando no corpo, não passa de uma simples vacina que deixa imune, o sentimento colectivo que se irmana – quando a saudade aperta e fala na surdina da noite, no silêncio das horas.

GUARDA, MEU AMOR
DESENHOS

O Universo desenhou, no seu espaço, o maravilhoso que aí fixou.
Tal como o Cosmos imprimiu, em si, a eternidade, assim o ser humano se liberta, do pesadelo da morte, gravando a sua imaginação, e o tempo que passa, em desenhos e pinturas eternas.
O pintor Luís Gonçalves, ao longo de mais de cinquenta anos, tem captado o tempo e as suas mudanças. Dessa obra emprestou, para este livro, alguns dos seus desenhos.
Ao Luís, um forte e sentido abraço de agradecimento.

Cunha Simões

DESVIOS

 

Morro sem ter compreendido a vida. A única lembrança que guardarei é a da cidade da Guarda. Aqui senti-me mais humano e compreendi que as desigualdades nos afastam da percepção de Deus e de todos aqueles que não O sabem explicar porque, não O entendendo, O vendem como mercadoria e não como semente de amor e de criação.

Vivemos ou sonhamos a vida?

 

 

A NEVE

“Branca e leve, branca e fria”
Assim Augusto Gil dizia
Sufragando a dor que passa
Nos olhos de uma criança
Que pobre e descalça
Só no amor tem a esperança.
“Branca e leve, branca e fria”
Ah, como eu te recordo, neve.
A primeira que caía
Era enorme a alegria
Das capas negras enroladas;
Corríamos pelas escadas
Mergulhávamos nas ruas,
Deslizávamos pelas vielas
Onde a neve se estendia.
Era o Chartier, o Sá Pessoa,
O Casimiro, o Adérito, o Herculano,
O Patrício, o Mário, o Guimarães,
E todos à uma, todos à toa
Combatíamos, rindo felizes,
Loucos de contentamento.
“Branca e leve, branca e fria”
Toda a juventude a sentia
Como bênção, reboliço, emoção.
Neve, Guarda, prazer, amor.
Ninguém lembrava a dor
Que a neve trazia ao indigente.
Neve bendita que tudo purifica.
As dores de outrora passaram.
Hoje, a Guarda é próspera e rica.

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