página principal

 

Nota prévia

 

Em Março de 1974 saiu a 1ª edição de "Os Homens são Difíceis". O Portugal daquele tempo, as suas falas, a simplicidade do povo e a complexidade da vida nos segredos de cada um resultaram na obra que, por não tencionar reeditar, coloco à disposição dos leitores.

 

 

OS HOMENS SÃO DIFÍCEIS

 

 

0 prazer do desconhecido é uma fonte deliciosa.

A carta indicou-me Penamaior.

Fiquei impressionado com a crueldade da palavra, soletrei-a mentalmente: Pe-na-ma-ior. Este engano trágico quase ia estragando a minha boa disposição. Não sou supersticioso ou pelo menos esforço-me por não o ser, mas chamar Penamaior a uma terra é algo desgastante para uns nervos irritadiços como são os meus. Só no carro consegui esquecer o incidente.

Os pensamentos, leves e inconstantes, aproveitaram esta distracção e esgueiraram-se através do passado. 0 grilar do motor e o barulhar das árvores fizeram o resto.

Aos doze anos dei conta da realidade dos seres à minha volta e senti-me feliz por ter descoberto a vida e o gosto de a viver.

0 campo de motivações alargava-se com o saltitar do tempo e todos os dias descobria algo onde mergulhava maravilhado e me perdia durante horas. Sentia-me forte e capaz de enriquecer as minhas possibilidades. Cedo compreendi o poder do raciocínio e agucei a intuição como seu complemento. Cortei pedaço a pedaço todas as profissões e saboreei-as sempre ávido de não perder uma pitada deste mundo maravilhoso.

Hoje sou padre. Padre! Só de ouvir a palavra sinto a nostalgia da Idade Média.

Padre! Eu que nunca soube distinguir uns braços de mulher de uma oração. Padre!

0 binómio mulher-Deus tem-me acompanhado sempre; quando sai um entra o outro. Serei capaz de desempenhar, com dignidade, este primeiro cargo ao serviço de Deus? Terá o elemento feminino pesado no meu subconsciente para explicar este novo ataque de misticismo?

Ah, o esquecimento é um privilégio! Felizes aqueles que esquecem o dia de ontem e nunca mais o recordam.

Passam os anos tão depressa! Como é fugaz o tempo da inconsciência-feliz! Como vai longe a Terezinha das tranças loiras, de olhos de anjo e de suspiros fundos...

A Maria Luisa, onde estará a Maria Luisa?

Como era ingénua! Brincávamos aos médicos, ela descobriu o que eu nunca tinha notado, quase esqueci a Elizabeth ardente e triste, tão sonhadora como eu, tão necessitada do mundo...acreditando em Deus pelos homens e amando cada homem como se fosse um Deus. Querida Elizabeth! Tudo era prazer; um fogo lento, avassalador, terno, envolvente, infinito... uns lábios... perdoa meu Deus... são as despedidas...

A dois passos do futuro não tenho ninguém. Corro ao encontro de um lugar para cada ser e para cada coisa e não vejo o sitio ideal onde colocar o Homem. Esse homem paradoxo; misantropo e filantropo, pacifico e guerreiro, abstémio e lúbrico.

Esqueçamos as desilusões e as ilusões e abracemos a nova vida com sofreguidão.

Antes de o fazer, e sem Te magoar muito, lembras-Te dos meus dezoito anos, meu Deus? Coberto de misticidade amei-Te como um pequeno déspota abandonei amigos e conhecidos. Desconfiava deles e de mim. Aborreci os próprios pais. Tantos sacrifícios, tantos sonhos desfeitos! Vinte anos de diferença representam uma grande distância... nem eu os compreendia, nem me fazia compreender.

Como Te desejava quando as minhas dúvidas sobre a Tua existência me assaltavam e como tinha necessidade que não fosses uma indelicada ilusão para entreter meninos, sofrear impulsos e servir de suporte a idealismos duvidosos.

Recordas-Te das minhas crises? Como um louco procurava-Te por todos os cantos. Se não vinhas, folheava a cidade. Hoje, sirvo-Te sem condições. Mas o passado? Faz-me esquecer esse monstro de lascívia e podridão... De outro modo serei incapaz de me perdoar tudo quanto fui e tudo quanto passei.

Ainda hoje fico aterrorizado por ver a facilidade como conseguia arrastar os meus companheiros para o caminho onde a minha imaginação irrequieta os levava. Cometia os erros mais graves, os mais impuros, os mais escabrosos, com a desfaçatez e o engenho de pessoa adulta. A seguir, lembras-Te como eu me atormentava, como de repente algo de novo me possuía, como desejava tornar-me honesto, puro, bom... como desejava que os outros acreditassem em mim, que eles me olhassem como modelo?

Como um histrião rojava-me a Teus pés arrependido do lodaçal espalhado à minha volta, pedia-Te humilde e sinceramente que me fizesses à Tua semelhança; Tu acedias. Na mente dos que me rodeavam e conheciam os meus defeitos, os meus desencantos, o meu erotismo doentio, as minhas fraquezas, voltava a ser o poeta do ideal, o desbravador do futuro, dos caminhos do bem, da lealdade, da simpatia cativante... tornava-me o símbolo do homem feliz. Eu! 0 indivíduo mais

nojento, o mais infame, o mais ignóbil, o palhaço mais palhaço!

Homem feliz!

Ninguém, a não ser Tu e eu sabia das minhas noites de insónia e de sofrimento.

Homem feliz!

Deste-me todas as possibilidades para me tornar consciente da minha existência.

Quantas personalidades tive? Vinte? Trinta? Não sei. Fui aquelas que as circunstâncias me forçaram a ter.

Para onde vou espero ser natural, simples, sem orgulhos, sem ressentimentos, sem hipocrisias, sem vaidades, sem recordações, só disposto a amar e a ajudar aqueles que pela sua ignorância necessitem dos meus conselhos. A carta era lacónica: «Siga urgentemente para Penamaior, um grave acidente deixou a paróquia sem o seu pastor espiritual. A chave da residência tem-na o sacristão. Ele é um velho e dedicado servidor que lhe dará os primeiros esclarecimentos. Receberá, posteriormente, novas directivas." Não precisava ler mais.

- Santas tardes.

- Que diz? Chó burro! Ai, o alma do diabo que não está quedo nem um momento! Que diz Vossa senhoria? Onde é a casa do senhor prior? Não tem qu’enganar: Vai sempre a dirêto, quando vir a igreja, a casa anda perto. Chó burro! Ele não está.

- Eu sou o novo prior.

- Homessa! Palavra d’ honra! É o primeiro padre que não tem cara de padre. Veja lá como a gente s’ingana! Palavra d’honra! Desculpe lá isto... a mim já me tinham dito c’agora os padres se parecem ca gente, mas eu nunca me convenci que fosse tanto. O senhor desculpe sim; esta falta sem reverência... compreenda... eu sou o Serralho, sapateiro d’oficio há vinte e três anos e lavrador, dos mais reles, está claro, nem outra coisa era de esperar de um farrapilha como eu. Quando voltar da horta levo-lhe lá umas couvinhas. Se desejar umas gáspeas é só falar.

Das couves nunca é nada. Vossa reverência sabe; a gente até as dá aos porcos, com sua licença. As gáspeas é que lhe ficam um bocadito mais caras, são quarenta e sete e quinhentos. Tiro-lhe vinte e cinco tostões que eu sei o que custa a vida, e agora com a falta do pitrol, as pessoas sempre andam mais à pata...

 

II

 

A primeira missa foi uma desilusão. A chegada do padre não tinha despertado curiosidade e os assistentes podiam contar-se pelos dedos.

Depois do serviço religioso corri para casa. Estava bastante alheio, ao que se passava à minha volta, quando uma voz fortíssima me gritou à entrada do quarto:

- Bons dias, padre!

Apanhei um valentíssimo susto. Vi-me perante um velho amigo ou conhecido, o que me era terrivelmente desagradável.

0 meu interlocutor pareceu compreender a minha aflição.

- 0 senhor está atrapalhado. Não descobre quem lhe devassa a casa e lhe berra aos tímpanos, não é assim? Sou o médico Diogo Palhanca. Apague lá esses receios!

Senti o pensamento descontrair-se.

- Muito prazer doutor, muito prazer!

- Cheguei a pensar que não me tinha ouvido.

Não respondi para não ter que lhe mentir. Ele continuou, indiferente às minhas congeminações:

- O seu colega nunca tirou as chaves da porta e o senhor seguiu-Ihe as pisadas.

Eu fizera aquilo por esquecimento, mas não resisti à tentação de lhe dizer uma frivolidade. Frivolidade essa que me obrigou a conservar sempre a chave na porta, embora muitas vezes me apetecesse arrancá-la dali.

- Os bons hábitos devem sobreviver à derrocada sistemática de tudo o que é antigo e restabelecer a confiança entre os seres.

- Eu sou dos poucos que abusa do privilégio. O seu colega ria-se de me ver aparecer nos sítios mais caricatos; por duas vezes o encontrei na retrete lendo o breviário. Estou convencido que era o lugar das suas grandes concentrações. Com o senhor sucede o mesmo, naturalmente. Os padres sempre tiveram as suas manias...

- As circunstâncias levam-nos a proceder assim. 0 meu antecessor estava longe de imaginar que alguém se atreveria a meter o nariz... naquele lugar.

- Enganava-se. Gosta da terra?

- É saudável.

- Não se deixe iludir... há ainda muita poluição mesmo depois do embargo do petróleo. E a propósito, tem bicicleta? Se não tem empresto-lhe a minha. Eu ando a pé, não aguento os solavancos.

- Agradeço-lhe a sua gentileza e aceito.

- Não agradeça. Para os amigos: mãos rotas. Vou mandar-lha logo que chegue a casa. Venha. Vim buscá-lo para o apresentar à cidade e àqueles que poucas ou nenhumas vezes põem os pés na igreja.

0 médico não parava um segundo, e aquele andar de um lado para o outro, parecia o olhar do hipnotizador que me punha sonolento e predisposto à divagação. Mas o médico não era homem para me deixar sonhar por muito tempo.

- Acorde! Estou a ver que o ar da serra é forte de mais para o seu arcaboiço! Vista lá o casaco e abra-me esses olhos para eles não o confundirem com um morcego!

Achei o médico demasiado expansivo e um pouco irreverente para mim, seu pastor espiritual. Mas, como só na espontaneidade está a amizade, concluí que tinha arranjado um bom amigo. Mesmo assim tentei escusar-me à saída.

- Não posso ir. Não vê como tenho tudo em monte...

- Arruma quando voltar. Um padre é um homem de sacrifícios, ou não é?

Olhei-o com agrado.

- Não tenho outro remédio?

- Não.

No café uma meia dúzia conversava em voz alta.

- Aqui têm o padre - disse o médico com ar prazenteiro. Os outros olharam-me, naturalmente, e um deles observou:

- 0 senhor todos os dias traz uma novidade. Hoje até um padre Ihe serviu para mostrar que é diferente dos outros.

Fiquei amachucado com esta falta de cortesia, e arrependi-me imediatamente de ter acedido ao convite do médico. Este agarrou-me por um braço e apresentou-mos um a  um, como se isso fosse uma grande honra para mim. Por mais esforços que fizesse não consegui fazer boa cara nem fixar o nome de qualquer deles. Sei somente que um era empreiteiro, outro comerciante, um outro, e aquele que me pareceu mais amigo do médico, oficial não sei de quê. Os outros três nem mesmo isso Ihes ouvi.

0 médico falou, falou, mas nem eu o ouvia nem os outros lhe prestavam atenção. Depois de ter bebido um café, sem vontade nenhuma, fiz menção de me retirar. Mas o médico era possessivo, e não permitiu que arredasse pé daquele lugar. A sua ideia era apresentar-me a todos os que entravam no café e a verdade é que fiquei a conhecer meia cidade. Já farto de cumprimentos levantei-me decidido a mandar passear todos os tiranetes. O médico levantou-se comigo.

- Vai jantar a minha casa.

- Nem pensar, doutor.

- A minha mulher terá imenso prazer em o receber.

- Também gostaria bastante de poder aceitar, mas não posso. Veja que é tardíssimo!

- 0 que não fez hoje faz amanhã. 0 trabalho não se estraga.

Mas não. Eu já não podia mais com aquele palrador inveterado. Tinha a certeza que ou o deixava ali com uma boa desculpa ou, se tivesse a pouca sorte de ir com ele, não resistiria a ser grosseiro. Depois de muitos «vai, não vou», lá consegui partir depois de lhe ter prometido que num dos próximos dias não faltaria ao jantar.

Já em casa senti-me o homem mais infeliz do Mundo. Recriminei-me amargamente por ser um desadaptado apesar de todas as minhas experiências e de uma vida de prazeres. Era padre porque queria, ninguém me tinha forçado a sê-lo, e aos quarenta anos já não era criança nenhuma! Mas vá lá alguém dizer que não se é criança em qualquer idade!

Passei a noite inteira dando-me conselhos, por ultimo ficou assente que a minha vida estava definida e, quer quisesse quer não, tinha de aguentar. Um dos factos era evidente: eu acreditava em Deus. Dizendo-me ateu, descrente ou maldizente, no fundo, Deus vivia em mim. Já tinha gozado a vida, por que não dar uma pequena ajuda para a melhoria do ser humano?! E em que ocupação melhor do que a de padre o poderia fazer!? Deus ajudar-me-á, eu farei o resto.

Assim, depois desta conversa salivada mentalmente, ficou assente que houvesse o que houvesse tinha de cumprir a minha tarefa.

 

III

 

A afluência à igreja continuava a ser reduzida e eu assistia diariamente à derrocada das minhas ilusões. Não tendo que fazer, pois em dois meses de permanência nunca tinha realizado um baptizado ou um casamento, lia livros sobre livros e chegava a comprar seis jornais diários.

A partir do terceiro mês tive duas visitantes inesperadas ao serviço religioso; a mulher e a irmã do amigo do médico. As duas eram jovens e só a sua presença alegraria o coração mais infeliz. Habituei-me de tal modo a elas que as minhas preocupações cessaram.

Só bastante tarde dei por esta alucinação. Fiquei apavorado com a profundidade destes sentimentos destinados ao malogro. Conversei comigo o mais racionalmente possível, mas embora a razão me dissesse que isso não era digno de um padre, o coração dizia-me que era próprio de um homem. De qualquer maneira não podia proceder assim. É certo que nenhum outro ser conhecia os meus pensamentos, mas, com a breca, eu era padre!

Andava nesta luta, Mulher-Deus-preconceito, quando a irmã do amigo do médico entrou pela sacristia. Senti as faces colorirem-se apesar do frio matinal e os olhos brilharem de alegria e de emoção.

- Bons dias padre.

«Meu Deus, o irmão mata-me se me adivinha os pensamentos e eu devia morrer de vergonha pelos meus pecados. Porque serei tão frágil perante tudo o que é belo?»

- Bons dias - disse hesitante entre apertar-lhe a mão ou beijá-la enquanto Ihe confessava quanto a sua beleza me fazia bem. Rogar-lhe que fosse o meu anjo da guarda e que não deixasse de vir à igreja todos os dias. Não lhe pediria mais: só a sua presença. 0 coração gritava-me frases, a razão tapava-me a boca. Apertei-lhe a mão tremendo e ela rindo.

- Não tem frio?

- Morro de calor, sufoco - disseram as palavras sem minha autorização. Ela pensou e com razão que eu dizia aquilo por ironia e continuou. .

- Esta sacristia é desconfortável. Não tem um aquecedor?

- Não me devo prender demasiado a esses  agasalhos que só prejudicam a saúde. Nestes

últimos dias não tenho parado um momento; entro e saio da igreja quase de hora a hora.

- De qualquer maneira, precisa de sentir conforto. Não me diga que também não tem aquecimento em casa.

- Também não tenho.

- Sou eu que Iho vou oferecer. .

- Nem pense nisso!

- Irei eu própria entregar a oferta. Não quero perder um padre simpático só porque não tem aquecimento. Gostou?

- Gostei muitíssimo. A senhora estraga-me com amabilidades. Ainda não tenho aquecimento porque há grande dificuldade em arranjar combustíveis...

- Esteja descansado que para si arranjam-se com certeza.

- Eu não desejo ser tratado de modo diferente das pessoas que precisam muito mais desses mimos do que eu.

- Que faço então?

- Ofereça essa quantia, que vai gastar comigo, a outras pessoas mais necessitadas.

- Estou de acordo. Vou fazer o que o senhor diz, mas isso não impede que, um dia destes, eu Ihe apareça lá em casa com o aquecedor.

Com todas as minhas forças desejei que esse aquecedor nunca lá aparecesse. 0 meu tempo de consciência parou enquanto duas correntes de campos magnéticos diferentes lutavam por uma tomada de posição.

Em que pensa, padre?

- Penso que a beleza de alma anda de mãos dadas com a beleza física. - As palavras saíram-me espontâneas e só dei por elas quando iam no ar.

- Ah, ah! Galanteador. Mas ficam-lhe bem as palavras! Noutros padres não as acharia correctas, em si acho-as naturais.

- Peço-lhe perdão. Disse-lhe o que sentia e não o que as conveniências ordenam.

- Ainda bem que me falou francamente.

- A senhora não faz o mesmo?

- Eu sou uma atrasada, o preconceito tem-me dominado, evito o que desejo e faço o que não quero. Consigo não sucede o mesmo?

- Todos procedemos assim. De outra maneira os nossos impulsos arrastar-nos-iam para situações bastante... infelizes.

- Pois qualquer dia fujo da minha prisão e não sei o que isso irá dar.

- Não diga isso. A senhora tem tudo; juventude, dinheiro, liberdade, porquê pensar que está dominada por quem quer que seja? Viva a sua vida e... desde que não perturbe a dos outros... mas a senhora nunca poderá perturbar seja quem for, a sua presença é de tal modo agradável que ninguém terá coragem de resistir a um capricho seu.

- Cuidado padre. Não julgue que os meus pensamentos se parecem com as minhas faces, eles... bem, não lhe digo mais nada. Este não é o melhor lugar para falar destes assuntos. Até qualquer dia. Chega de lamentações.

- Com tudo quanto a senhora possui e com toda a harmonia que respira é quase uma blasfémia sentir-se infeliz.

- Adeus, padre.

- Tive imenso prazer em a conhecer pessoalmente.

- 0 senhor, com essa cara de santo e esses olhitos azuis, sabe dizer palavras bonitas de mais para um padre.

- Antes de ser padre fui tudo. Sou padre há pouco mais de cinco meses e esta é a minha primeira missão.

- É um padre novo...

- Sim, pode dizer isso. Tenho é um pouco de uso, mas acredito firmemente na minha missão.

- Não diga mais, padre, vejo agora bastante bem a sua falta de adaptação ao novo oficio. Duvido mesmo que algum dia se chegue a adaptar.

Riu uma gargalhada alegre e correu pela igreja como uma toutinegra inebriada de felicidade. Eu, se tivesse um lugar onde me esconder tinha-o feito. Os meus pensamentos deviam sair pelas palavras que não queria pronunciar. «Meu Deus, meu Deus!» gritei logo que ela desapareceu, como se este chamamento aflitivo viesse resolver e apagar o que eu já tinha dito e pensado. Senti, nesta altura, que o meu eu, escondido e atrofiado pelas minhas recriminações, tentava a todo o custo levantar-se e forçar-me a uma revisão de pontos de vista. A consciência mais ponderada e calma, como político que sabe do serviço, apontou-me factos: «Até há sete anos serviste-te do mundo, das suas fraquezas, da sua imbecilidade, usaste a inteligência em teu proveito. Já tens a tua conta. Não esqueças os outros que necessitam de ti. Embora a tua natureza seja fraca, tenta resistir. Não compliques o que não é complicado».

 

IV

 

Alguns dias depois desta visita recebi um cartão do amigo do médico para lá ir jantar a casa. Fiquei indeciso, mas acabei por aceitar. De uma maneira ou de outra devia aprofundar os meus conhecimentos sobre as pessoas e nada melhor para isso do que umas noites de convívio.

Diogo Palhanca, o médico, e Clemente, o dono da casa, vieram receber-me à entrada.

- Pontualíssimo! - gritou o clínico. - Entre, está um frio dos diabos.

As senhoras estavam distribuídas pela casa e cada uma apareceu de seu canto para me cumprimentar.

- Não me diga que esteve contando as horas para vir tão certinho. - Disse-me a mulher de Clemente.

- Não gosto de chegar atrasado.

- A expectativa cria emoção.

 - As senhoras estavam desejosas de o conhecer pessoalmente - disse o médico rindo.

- Todos para a mesa. Ai tem o seu lugar padre. Fica ao lado de Leonor.

- Sinto-me muito honrado pela deferência.

- Pela confiança, Padre. Pela confiança! Leonor é a rapariga mais requestada de todo o distrito e o senhor fica ao lado dessa preciosidade.

- Não comece com as suas graças, doutor. 0 padre ainda não o conhece suficientemente para ter a certeza se está a brincar ou a falar a sério.

- Eu a brincar?

- D. Leonor não se aborreça pois qualquer pessoa fica encantada com o seu trato e a sua simplicidade. 0 doutor, mesmo que estivesse a brincar, não pode ter dito uma grande mentira.

- Ah, também o senhor! Só falta o meu cunhado. Também não queres dizer um piropo à solteirona da casa?

- Recusas todos os pretendentes... vem aí a criada, deixemo-nos destas brincadeiras em frente do pessoal. - Disse D. Matilde à mulher de Clemente.

- Isto é uma festa? - perguntei, depois de saborear três pratos diferentes.

- Festa? Este padre sai-se com cada uma!

- Tem razão, desculpe doutor esta pergunta fora de senso.

Clemente elucidou-me.

- Duas vezes por mês jantamos juntos. - Isto é: os quatro. Hoje veio também a Leonor para manter o equilíbrio. Eu e o Clemente almoçamos muitas vezes juntos. Fazemos isto par causa das mulheres. Até já pensámos que o mais simples e... mais económico era trocarmos de mulheres dois dias por mês e cada uma ia matar saudades a casa da outra.

Não sejas trapalhão! 0 padre não faça caso. 0 doutor Palhanca está sempre com palermices e eu nem sei como a Matilde o atura, e o Clemente o deixa dizer essas barbaridades, disse D. Madalena fingindo-se zangada.

- Por que os estás a envenenar, se eles não dizem nada? Não podes negar que temos uma predilecção muito especial pela casa um do outro, não é verdade sua gatinha assanhada?

- Vocês, lá sabem. Eu e a Matilde temos a impressão que funcionamos como robots.

- Robots? Tu um robot? Nem pensar! Tu não és mulher que possas ser comandada à distância e mesmo que o fosses nunca poderia acreditar que o Clemente não deixasse pulso livre à mulher mais bela do país.

- E tu, deixas pulso livre à tua mulher? - perguntou D. Madalena.

- Eu? Ela faz o que quer e ainda Ihe sobra muito tempo.

- Por que representas sempre o papel de homem liberal, Diogo?

0 médico olhou a mulher muito sério.

- Não me fixes assim que me fazes corar. - Disse-lhe esta. - Todos riram e ela continuou:

- Embora os homens façam isso inconscientemente, não há um só que acredite que as mulheres têm massa cinzenta igual à vossa.

- Se me permitem, - disse timidamente - eu não me queria meter no assunto, mas se me calasse poderia parecer que estava de acordo com essa ideia. Na verdade considero a mulher tão dotada como o homem e com os mesmos deveres e direitos que este. E não só eu penso assim: os governos de Ceilão, da Índia e de Israel estão entregues a mulheres como Sitimavo Bandaranaike, Indira Gandhi e Golda Meir.

- Isso passa-se no Oriente.

- Mais uma razão para demonstrar que o homem acredita na mulher; é precisamente do Oriente que vem a lição para o género feminino, pois aquelas que não sabem usar mais do que os atractivos físicos são postas em haréns.

- Eu falo do nosso país - insistiu D. Madalena.

- No nosso país sucede o mesmo! As nossas universidades estão cheias de professoras e os jornais têm os seus melhores colaboradores entre o género feminino.

- Então qual é, para si, o remédio ou o que faz que a mulher muitas vezes sinta um complexo de inferioridade perante o homem? - retorquiu D. Madalena.

- A mulher deixa-se seduzir pelo espantalho da moda, perde qualidades e muitas vezes personalidade. Por outro lado parece-me que a mulher se sente mais feliz deixando correr os acontecimentos em vez de chamar a si a responsabilidade das decisões.

 - Não concordo. A mulher tem um sentido tão grande de responsabilidade como tem o homem, simplesmente a mulher entristece-se com «os brutos matadores» e volta-lhes as costas - disse D. Madalena.

- Não devia voltar, querida - sussurrou Clemente.

- Eu disse: «volta-lhes as costas», mas não disse que abandonava o papel e entregava os seus direitos ao macho pretensioso.

As senhoras riram e D. Madalena continuou:

- Como frisou o padre, existem três mulheres na chefia de outros tantos países e as nossas universidades estão cheias com o elemento feminino. .

- 0 ensino afunda-se! - gritou o médico.

- Tu é que te afundas se continuas a beber dessa maneira.

- Descansa querida Matilde. A Madalena e o Clemente oferecem-me dormida ou então... tu levas o Clemente e eu fico com a Madalena. Os suaves lares ficam de igual modo equilibrados.

Fez-se um silencio de morte. 0 médico exagerava. Competia-me a mim quebrar aquele mutismo.

- Ainda não vi os vossos filhos!

- Esses monstros estão óptimos. - respondeu o médico - Nós é que já não os entendemos de maneira nenhuma. Veja que o meu filho tem uma cabeleira maior que a da mãe. Estes rapazes estão umas nódoas.

- Os homens já usaram cabelos compridos noutros séculos e ninguém os achava nódoas - disse exaltada D. Matilde.

- Defende-os: são uns coitadinhos! Para mim esses sujeitinhos além da falta de limpeza...

- 0 teu filho toma banho e lava a cabeça todos os dias...

- Meu filho ou não estes cavalheiros lembram-me sempre os frangos de aviário.

- Não digas asneiras!

- Porquê, frangos de aviário? - perguntou Madalena.

- Ó filha, deixa-o. Quando ele começa com asneirite só diz disparates.

E D. Matilde olhou sintomaticamente para mim como a pedir-me desculpa do meu cabelo, que havia bem uns nove meses não tinha cheirado tesoura de barbeiro.

Mas D. Madalena insistiu:

- Sempre gostava de saber o que dali vai sair.

- Asneira, não esperes outra coisa.

- Eu faço-te a vontade minha querida amiga. Eles parecem-se com frangos de aviário porque nem cantam nem galam.

- Tu, pelo menos, cantas - disse-lhe a mulher muito séria enquanto todos lançámos uma gargalhada sonora, o médico não se deu por achado, continuou defendendo as suas ideias baixando a pouco e pouco o tom de voz até sair da conversa.

0 jantar foi agradável e D. Madalena mostrou-se uma excelente dona de casa. De vez em quando, o médico metia-se com ela, as suas palavras eram mais fortes do que mandam as conveniências, mas nem o marido nem D. Matilde pareciam afectados pelos ditos. Só D. Leonor ruborizava e eu senti que estas brincadeiras a aborreciam. Ela seguiu sempre as conversas, mas evitava entrar nelas. Olhei-a, muitas vezes, tentando perceber-lhe as reacções; parecia-me distante e muito diferente do dia em que a encontrara pela primeira vez. Os seus olhos castanhos muito grandes ensombravam-lhe as faces, davam-lhe um ar enigmático. Notei que era a única pessoa que o médico respeitava.

Clemente, tal como a irmã, vagueava entre os presentes. Todos o sentíamos, mas ele só se mostrava quando lhe dirigíamos qualquer pergunta. Durante toda a noite manteve-se pensativo e distante: ou tinha algo que o preocupava seriamente ou então as manifestações humanas obcecavam-no na tentativa de as interpretar.

À meia noite despedimo-nos do dono da casa e de D. Leonor. 0 médico falou durante todo o caminho exaltando as múltiplas qualidades de D. Madalena. Eu não tinha respostas e D. Matilde também não.

 

 

v

 

0 Serralho era o melhor sapateiro da região e o maior bêbado de todo  país.

Com ele andavam sempre mais dois; o Zé Jacques, carvoeiro e homem simples, habituado a falar com as estevas, o rosmaninho e a caruma dos pinhais; se não bebia tanto como o Serralho, pequena devia ser a diferença. 0 outro, barbeiro e pescador, acompanhava-os como um filósofo à procura de... nem sabia ele bem o quê. Par vezes esquecia-se do seu papel de moderador e embebedava-se mais do que os outros dois.

Estava à lareira lendo as ultimas quando aquelas três «aves» me entraram em casa.

- Vossa reverência dá licença? - suspirou o Serralho já no meio da casa.

Pelos vapores etílicos percebi logo quem era a minha gente.

- Entrem, entrem.

- Eu não vos disse: o padre Francisco é assim.

- Eu não sou o padre Francisco.

- Não faz mal. É padre, não é? Vossa reverência não se zanga e nós também não. Não é verdade ó Zé Jacques?

- E vens tu a casa do padre sem lhe saberes o nome, isso é que tu és burro!

- Já vos disse: os senhores suas reverências são uns gajos porreiros, não são? Eles até nem s’importam pois não? Eu até fui o primeiro a indicar-lhe o caminho, não fui ó padre?

- É verdade. Se não fosse o Serralho tinha demorado mais uns minutos a encontrar a casa. Sentem-se, sempre estão mais confortáveis e mais quentes.

- Quentes? A escaldar já nós estamos. Se nos sentarmos ao pé do lume rebentamos como o tojo verde. Este «alfabeto» trouxe-nos para vossa re... para vossa re... para o senhor prior resolver os nossos problemas, mas eu continuo na minha: ele é burro chapado e nós estamos mais ensopados que uma esponja porque de outra maneira não lhe daríamos ouvidos nem o viríamos incomodar. Mas ele teimou, teimou e cá estamos. Para mais... eu não sou de missas, aquele também não é, este vai lá quando o rei faz anos... está visto que o senhor está-se marimbando para os nossos problemas e é justo que assim seja. Para mais, o senhor, não é nenhuma tábua de fazer contas para resolver problemas.

Se calhar tomara o senhor que lhe resolvessem os seus e está prá’qui a gente a chateá-lo. Já é mania; este tipo bebe o vinho e os outros têm que cheirá-Io!

- E trouxe eu este desgraçado p'ra falar cuma pessoa fina. Mal empregado tempo que gasto contigo, ingrato do diabo! - disse o Serralho, apontando ameaçadoramente para o barbeiro.

- Posso saber qual é o motivo da vossa visita a estas horas?

- Vossa reverência nem adivinha nem percebe nada disto, mas estes dois bêbados teimosos intuíram em o vir aborrecer e ninguém os convenceu do contrário. Este alarve disse-nos que conhecia muito bem o senhor e mais uma série de palermices e nós, como estamos bêbados, viemos atrás dele.

- Não oiça este tipo, ele a destilar. Não diz coisa com coisa. Enfim, habituaram-no a cortar cabelos, e não a orar, depois mete-se em tudo, sabe tudo, e os outros é que são os burros e ele é o esperto...

- Diga lá o Serralho em que os posso servir.

- Por mim bebo um tintol e estes dois... deve ser a mesma dose. - Disse o Zé Jacques esfregando as mãos e dando estalinhos com a boca.

- 0 senhor prior quer saber o que nós queremos e não o que nós bebemos, - respondeu o barbeiro de sobrolho franzido.

- Posso-lhes oferecer café se assim o desejarem.

- Também aceitamos.

- Cala-te! Tem vergonha nos apetites!

- Nós vimos aqui - começou o Serralho - porque desejamos "imigrar."

- Emigrar? Nesta altura? Vocês não estão bons! Não lêem os jornais?

- Eu bem disse que era escusado. É tudo o mesmo! Os outros dizem-nos que barbeiros, sapateiros e carvoeiros não são profissões para "imigrar." Que lá fora já não se usa disto, que arranjemos outras profissões para fabricar os papeis como manda a lei. Este diz-nos para ler jornais, bolas para os homens e para os padres!

- Não me está a compreender...

- Estou. Então não estou!

- As vossas profissões são bastante dignas e... na hora actual um carvoeiro é um elemento de muitíssima utilidade.

- Eu sou bom! - disse o Zé Jacques entre duas goladas de café.

- Tu és bom e burro porque te deixas levar com duas patranhas. 0 padre fala-nos da dignidade da nossa profissão porque não tem oito filhos a sustentar como tens tu, dezasseis como o Serralho e cinco como eu! Damo-lhes de comer com que dinheiro?

- Primeiro, parto do princípio que ainda vos sobra algum para gastar em vinho, por isso, ele não pode ser assim tão pouco como fazem crer; segundo, porque esta seria a pior altura para emigrar. Quando vos perguntei se não liam os jornais era precisamente para vos mostrar o que se está a passar em toda a Europa. Todos os países estão a despedir os trabalhadores estrangeiros par falta de trabalho. Vocês sabem muito bem, que a falta de combustível afectou quase todo o Mundo, nós mesmos sentimos essa falta. Agora se vocês quiserem que eu contribua ainda mais para a vossa desgraça, tentarei arranjar-vos todos os documentos, mas antes disso aconselho-vos a passar uma vista de olhos por qualquer jornal. Não há um só que não fale sobre este assunto.

Com quase todos os jornais em cima da mesa desde o «Primeiro de Janeiro» à «República» fui-lhes explicando pacientemente o que se tinha passado nos últimos seis meses. Eles riam e comentavam a situação como se aquilo não fosse mais do que uma brincadeira de crianças.

0 Zé Jacques não se cansava de exclamar: - Ah, Árabes duma cana, que os faz andar a todos de rabo alçado! Era o que ria mais.

Durante horas tive de os ouvir. Entraram perto das dez da noite e saíram às cinco da manhã! Várias vezes tentei fazer-lhes compreender que tinha de me levantar cedo. 0 Zé Jacques, que ia pondo achas no lume, respondia-me em tom conselheiral:

- Passe as missas para as seis da tarde. Goze as manhãs na cama e receba os amigos. Verá que assim a freguesia aumenta. Beba-lhe mais um copo e coma uma isquinha de presunto que isso passa. Eu amanhã trago-lhe mais lenha. Num tenha medo, caramba! Pode-se acabar o pitrol em todo o Mundo, mas cá em casa não há-de ter frio!

Tive de concordar, também não tinha outro remédio. Abri mais três garrafas que eles beberam como verdadeiros apreciadores. Aquela sem-cerimónia fez-me pensar no primitivismo da situação e ao que eu tinha descido. Estava desolado pela minha impotência, e mais desolado fiquei quando o Serralho, que até ali se tinha comportado mais ou menos bem, se voltou contra mim, esquecido da razão da minha atitude.

- Estive cá a pinsar.

- Queres dizer: a destilar.

- A destilar ou a pinsar tudo é igual. Eu cá digo aquilo que sinto e não aquilo que sei.

- Que é que tu estivestes a pinsar, meu brutinho? Vê-se logo que na terra deste animal só há burros e carvoeiros e logo por pouca sorte este não é carvoeiro.

Todos rimos da fala do Zé Jacques. O Serralho continuou.

- Pois é, estes tipos foram capazes de inventar estas coisas do pitrólio para nos tramarem e o padre ajuda-os: entretém-nos com papas e bolos e come-nos a ideia. 0 que o senhor quer é ca gente lhe aqueça a casa, lhe corte o cabelo e lhe deite meias solas nos sapatos por uns míseros oitenta ou noventa escudos...

 - Cala-te ingrato malvado! Só a bebedeira te deixa falar assim.

- Fala o imbecil! e é bem certo o ditado: Deus faz o homem à medida das suas aspirações e este brutinho tem somente aquilo que merece. Habituaram-te ao carvão e hás-de andar de cara enfarruscada toda a vida!

- És um incivilizado que acreditas em tudo o que te dizem...

- Ó pá, não sejas malcriado. Já ofendeste o padre e agora metes-te comigo? sempre gostaria de saber o que significa a palavra incivilizado para ter a certeza que não estás a chuchar comigo.

- Ó pá, não lhe ligues - disse o Zé Jacques - este tipo tem a mania das inculturas, dos incivilizados e do raio que o parta, com a licença aqui do senhor prior, que eu já estou farto de vos aturar a todos sem ofender o dono da casa que me parece boa pessoa e tem uma pinga de trás da orelha.

- Mas eu quero saber o que é incivilizado ou daqui num saio até que isso se esclareça.

0 Zé Jacques pôs-lhe a mão no ombro.

- Eu, noutras coisas sou negativo, mas na minha ideia... civilizado é o animal que come bem todos os dias e toma banho dia sim, dia não, e muda de camisa e de ceroulas. Incivilizado é aquele que só toma banho quando nasceu, quando vai às sortes e quando morre.

- Ai o bruto que nos ofende! Olha que eu tomo banho todos os meses, ouviste! Num ando pra’qui a eslavachar o corpo a toda a hora porque isto não é nenhum bacalhau para estar de molho! E a água também tem de se poupar, pois intão! Olha que estávamos bem arranjados; sem água e sem pitrol, devia ser bonito!

- E se fossemos tomar um pouco de ar fresco? Não sei por quê sinto dores de cabeça - disse eu conciliador.

- É este malvado que Ihe vende carvão de azinho em vez de carvão de choca.

- Está calado! Tu é que me pareces uma bela choca! Isto não é um fígaro é um carrasco! E querias tu "imigrar"!

Saímos e lá os meti um a um em casa conforme pude, não queriam ficar, mas convenci-os usando um pouco de manha e muita dialéctica, o Serralho não ficou conformado. Senti que ele me lançava as culpas da sua situação.

Deitei-me e julguei que não pregava olho até dizer a missa matinal. Os problemas daqueles homens eram demasiado grandes para que eu ficasse indiferente... Ficou por aqui a minha luta pelos três homens. Foi uma das raras vezes em que adormeci no início de um pensamento

 

 

VI

 

0 doutor Palhanca encontrava-se invariavelmente no café. De manhã, pelas 10 horas, pedia a bica, lia o jornal e dava consultas gratuitas a quem aparecesse e não o fizesse levantar. Da parte da tarde, entre a uma e um quarto e as duas e meia, no mesmo local, fazia uma sessão de acções e moedas. Eu, raramente por ali aparecia porque não tinha dinheiro para gastar nestas doenças lucrativas. Ia juntando umas moeditas que o Mário Gonçalves e o Mourato me ofereciam. 0 médico, o Juvenal e o Vítor Godinho insistiam comigo para entrar nas acções.. Como resposta lançava-lhes um sorrizito amarelo. Sorriso de alguém que tinha largado tudo para com mais segurança se dedicar a Deus. Devo dizer, porém, que esta adaptação me era extremamente difícil e que eu fazia um sacrifício ainda maior para lhe resistir.

No dia 12 de Abril, o médico fazia anos e veio visitar-me. A chave, como de costume, estava na porta. Ele entrou e percorreu a casa sem me encontrar.

«Devia ter avisado - disse a meia voz, depois como entrasse no quarto e o visse num pandemónio de livros, revistas e recortes de jornais espalhados de tal maneira por todo o compartimento que ele não conseguiria entrar se não os pisasse, meteu o pé no monte que lhe pareceu mais sólido e atirou-o ao ar. Apanhou três recortes «Roda Livre de Francisco Mata», «Canal de Crítica de Mário Castrim» e «Percursos, crítica de cinema por Eduardo Prado Coelho». Leu algumas linhas de cada um e devolveu-os à selva.

- Ah! - exclamou satisfeito, enquanto se dirigia para a sala de estar que ainda se encontrava em pior estado. A única coisa de bom que tem este desagradável casarão, sem uma alcatifa e sem aquecimento central, são as vistas, os livros e os recortes dos jornais.

Que vejo eu? Este maroto versos e garatuja para aqui umas notas sobre alguns, deixa-me cá ver este:

 

«Não se perdeu teu sangue generoso,

Nem padeceste em vão, quem quer que toste

Plebeu antigo, que amarrado ao poste

Morreste como vil e faccioso».

Acabou o resto do soneto e exclamou: Este Antero é impressionante! Depois voltou-se para as prateleiras carregadas de Iivros, passou uma vista de olhos por elas e disse com ar confuso: este tipo só lê autores portugueses, e como para se certificar dessa verdade foi-os devorando até se cansar: Camilo, Eça, Gomes Leal, David Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Junqueiro, Miguel Torga..., ligados a este escritor estavam livros de Andrée Crabbé Rocha e um manuscrito onde leu: “Importância da mulher culta na vida do escritor sensível”. Abanou a cabeça e disse: este indivíduo não tem os parafusos todos. Continuou a leitura: Maria Teresa Horta, Herberto Helder, Ferreira de Castro, Domingos Monteiro, José Cardoso Pires, Vieira, Garrett, Urbano Tavares Rodrigues, Florbela Espanca... Florbela ?! Meu amor. Só de imaginar a tua alma, a tua sensibilidade, fico doente de emoção.

 

«Quem me dera voltar àinocência

Das coisas brutas, sãs, inanimadas

Despir o vão orgulho, a incoerência,

Mantas rotas de estátuas mutiladas!”

 

Oh, Florbela como me sentiria feliz por te ter conhecido e olhado. Com quem terias aprendido a dizer as tuas desgraças, os teus sonhos de ideais desfeitos, os teus amores sublimes, incompreendidos...

Sentou-se, o livro, pendente das mãos, caído entre as pernas. Sentiu-se triste, hienamente triste, como ele diria, apossara-se dele o desprendimento do mundo e com os olhos marejados de lágrimas, a muito custo, leu mais alguns autores: Natália Correia, António Salvado, João Palma Ferreira, Augusto Abelaira, Francisco Rebelo, Natércia Freire, Bernardo Santareno, Maria Judite de Carvalho, Amândio César, José Gomes Ferreira, José Valle de Figueiredo, Fernando Namora, Virgílio Ferreira, Oliveira Martins, Filipe Neiva, Nuno Judice, Maria Manuela Couto Viana, Manuel da Fonseca, Araújo Correia, Fernando Pessoa...

 

«Aos deuses peço só que me concedam

0 nada lhes pedir. A dita é um jugo

E o ser feliz oprime

Porque é um certo estado»

 

Quando tentei acordar o médico ele olhou-me com ar de louco e eu assustei-me pelo que dali saísse.

- Bem-disposto?

- Nota-se.

- A falar verdade nunca o vi pior.

- Pior que isto? Bem estava perdido! Mas que maluqueira é esta de ter só autores portugueses em casa?

- 0 senhor só viu os Portugueses, na divisão ao lado estão os estrangeiros, quer vê-los?

- Deus me livre! Já não leio um livro há uns bons seis meses!

- Só pensa nas acções e nas moedas.!

- Nem só, embora aqui traga uma que me vendeu o Silvino que é um pequeno tesouro.

- Ainda um dia lhe confisco as moeditas todas, as venda e dou o produto aos pobres.

- Deixe-se de idealismos baratos. Hoje já não há pobres, homem! Há os indivíduos que trabalham e aqueles que querem viver à custa dos outros. Deixe-se disso!  Pobre sou eu que sei o que quero e não consigo alcançar o que desejo.

- Já me esquecia de lhe dar os parabéns! Conte muitos...

- Foi precisamente por isso que cá vim. Quer vir jantar comigo?

- A sua mulher conta com mais este garfo?

- A minha mulher janta com os miúdos e nós vamos sair desta pasmaceira. Vão connosco o Guterres de Carvalho e o Vaz Antunes, mas também lhe digo: se não fossem eles já daqui não saía; agarrava-me aos seus livros, comíamos qualquer coisa e ficávamos por aqui.

- Bem podia apertar a barriga. Tenho ali três pasteis com cheirinho a bacalhau comprado por preço de lombo de vaca, que nem davam para o senhor nem para mim. Deixe lá os livros para outra altura que eles têm tempo...

- Devia ter vergonha de falar assim. Um padre! Um padre sobrepor os prazeres da carne aos dos espirito, parece mentira!

- Pois é, mas o senhor não sabe que desde as sete da manhã ainda não comi um grama de pão nem bebi um dedal de vinho. Dout...or: para o diabo o espírito que me faz as pernas bambas!

- Que oiço? Não é o padre com certeza. 0 homenzinho bom que dá tudo aos pobrezinhos, coitadinhos...

- Sempre gostaria de lhe perguntar se com o estômago vazio há boas ideias e pensamentos simpáticos?

-Quem é o padre, sou eu ou e o senhor?

- Sou eu, mas...

- Não preciso mais. Estou suficientemente elucidado. Agarre lá no bibe e venha daí, vou empanturrá-lo com montanhas de comida e com toneis de vinho, talvez assim as ligações entre os altos e os baixos fiquem normalizadas.

Com o médico pensativo, o Vaz Antunes sem inspiração, o Guterres de Carvalho com dor de dentes e eu com uma fome macabra, o jantar foi uma lição de indelicadeza e desinteresse para com o homenageado. Estava nos doces, e ainda muito sôfrego, quando o doutor Palhanca se me dirigiu:

- Os seus livros... fiz mal em lhes ter pegado. Fiquei mal disposto.

- Porquê, não gosta de escritores contemporâneos?

- Não é nada disso. Tocaram-me a fibra sensível, foi o que foi.

Notei que o médico estava muito mais corado que o normal e pressenti que ia ter

uma noite de confidências. Bem dito, bem feito, quando o Guterres e o Vaz Antunes se levantaram Diogo Palhanca não resistiu.

- Sou um louco por Florbela Espanca e estou terrivelmente apaixonado pela mulher do meu amigo.

Eu engasguei-me com o doce de amêndoa e aos solavancos disse-lhe:

- N...ão pen.. .se em disparates.

- 0 senhor é o único a saber, tome isto como se fosse em confissão.

- Mas a sua mulher, os seus filhos. Não gosta de sua mulher?

- Não a posso aturar. Irrita-me, fala desnecessariamente.

- Não me diga que o senhor e D. Madalena mantêm relações?

- Só encontros de amizade. Queremo-nos muito!

- Doutor! Não pode fazer isso.. A sua mulher estima-o. Os seus filhos estão numa idade difícil. Clemente é seu amigo...

- Cale-se! Não lhe pedi conselhos. Estou-lhe a contar o que nunca contei a ninguém e o senhor interrompe-me? Tudo por causa dos seus livros. Aquela Florbela desnorteia-me, põe-me exageradamente sensível e se não tivéssemos vindo para este lugar a cinquenta quilómetros do meu pensamento, tenho a certeza que hoje tinha de ser. Chegava ao pé de Clemente e dizia-lhe: meu caro, tem paciência, gosto da tua mulher e ela vai comigo. Tu desculpa, sou um chato!

- E, se ele não desculpasse?

- Ele adora-a. Mas o Clemente não me ia dizer que não.

- E D. Madalena está de acordo?

- Está. Ela está pronta a deixar tudo para vivermos uma vida diferente em qualquer parte do mundo.

- Não posso acreditar. Uma mulher com a cultura de D. Madalena não pode abandonar um filho amoroso que necessita dela e um marido que a adora.

- Abandona tudo.

- Desculpe doutor, mas não percebo! Lá que o senhor queira deixar a sua mulher porque ela fala demais... vá que não vá, ainda éuma razão, fraquita sim, mas é uma razão! Agora D. Madalena abandonar o marido e o filho... por sua causa... francamente... não vejo vantagens... descul...

- Vá para o diabo com as suas desculpas! Já lhe disse que não preciso de conselhos, preciso de ajuda.

- Mas que ajuda?

- Sei lá!

- Então, o senhor que é o interessado, não sabe, e quer que eu saiba?

- Padres! E são vocês padres! Não resolvem um pequeníssimo problema do espírito e querem salvar o mundo! Pff!

- Vejo mais um problema de carne do que de espírito.

- Espírito.

- Carne.

- Espírito.

- Carne.

- Acabou. Vamo-nos embora. Fiquei pior do que vim e revelei a melhor parte do meu segredo a um ignorante. Espero que isto me sirva de lição - disse, furioso o médico.

A viagem de regresso pareceu-me interminável; o Guterres e o Vaz Antunes ressonavam como duas debulhadoras e eu e o doutor incapazes de dizer uma palavra.

 

 

VII

 

Diogo Palhanca teve um sobressalto. A mulher olhou-o com firmeza, ele sentiu um pequeno calafrio e murmurou com a voz mais suave que pôde arranjar:

- Ainda levantada?

- Ainda - respondeu secamente D. Matilde.

0 médico tirou o casaco.

- Espera - disse-lhe a mulher.

- Não me posso despir?

- Não. Estiveste vestido até estas horas, também podes continuar por mais algum tempo.

- Mas a que propósito vem este despropósito? - perguntou o médico tentado fazer graça sem sucesso.

- Foste ver algum doente?

Diogo Palhanca não respondeu e D. Matilde, insistiu:

- Foste?

- Penso que não tenho que te dar satisfação dos meus actos, ou tenho?

- Eis o senhor, o macho egocêntrico com todas as suas prerrogativas ancestrais.

- Agradeço-te que não me aborreças. Estás mal disposta e eu que te ature, não é assim? Enganas-te, não consegues irritar-me - o médico atirou o casaco para cima de uma cadeira e dirigiu-se para o quarto de banho. D. Matilde levantou-se e não o deixou passar.

- Tens de me ouvir, tens de saber por que estou mal disposta! Diz-me a verdade, foste ver algum doente?

- Fui - respondeu o médico tentando passar.

- Mentes.

- Não tenho satisfações a dar-te. .

- Mas eu tenho. Tu, o homem, podes fazer o que quiseres, teres os teus amiguinhos ou as tuas amiguinhas, podes vir a cheirar a vinho ou a perfumes duvidosos, mas eu não. Está-me vedado, por ser mulher, a libertinagem. E para mais... mulher casada não deve, sob pena de excomunhão e queimada pelas línguas imaculadas do homenzinho grotesco. Sim, não passais todos de uns homenzinhos. Sois uns tristes e não dais conta daquilo que valeis: Nada! Não valeis nada! E amesquinhais sempre os mais fracos, sem...

- Cala-te! Foi para me enervares, para dar cabo de mim e da minha paciência, que ficaste aqui até estas horas?

- A estas horas? São as horas a que tu entras para casa.

- Não sejas idiota!

- Tens razão. Fui sempre uma enormíssima idiota! Idiota a partir do momento em que acreditei em ti e me sujeitei a viver sob o despotismo de um marido que aos olhos da sociedade passa por um santarrão! Como se pode ser tão hipócrita?

- Não exageres. Par favor deixa-me passar...

- Tens de me ouvir. Não foi para me calar que estive até estas horas à espera do meu senhor.

- Um dia és a nossa desgraça.. .

- Nas tuas mãos sempre fui desgraçada. Desde o primeiro dia em que nos namorámos os teus ciúmes nunca mais me largaram. Desprezaste sempre a minha dignidade e só o teu ponto de vista tem de prevalecer. Tu não vês na mulher um ser pensante, vês um objecto que tem de ser tratado a chicote.

- Infelizmente nunca o usei...

- Usas sim, usa-lo todos os dias e mais assiduamente de há um ano para cá. Usa-lo no teu olhar, nas tuas palavras, na tua revolta contida.

- Não estou para discussões a estas horas!

- Não te convém ouvir meia dúzia de verdades, não é assim? Terás de ouvir.

- Não tenho! Sai da minha frente...

- Nem que eu acorde a casa toda hás-de ouvir o que tem para te dizer esta estúpida,

esta parva, esta rotineira, esta Maria vai com as outras... estás muito enganado a meu respeito e a respeito das mulheres.

- Muito.

- E estás! Tu confundes a docilidade feminina, o carinho que ela tem pelos pequenos nadas, com a estupidez,  a subserviência. Como te enganas; qualquer mulher vulgar tem muito mais para oferecer do que tu com a tua prosápia, a tua infalibilidade! Tu sim, tu és um falso ignorante. Deram-te um canudo, chamam-te senhor doutor e tu arrogas-te o direito de vexares a tua mulher, de criticares os teus filhos, de vires às horas que te apetece, sem a mínima consideração pelos teus lacaios...

- Já acabaste? - disse o médico, sentado na cama e com a cara tapada pelas mãos.

- Não.

- Então vê se te apressas pois estou a cair de sono.

- Só uma coisa te agradeço durante estes anos em que vivemos juntos...

- As noites de volúpia...

- Infeliz libidinoso! Quem te julgas tu? Agradeço-te o teres-me aberto os olhos. Tenho a certeza que as minhas filhas...

- Nossas.

- Minhas. Tu não puseste, para isso mais do que um bárbaro prazer... fizeste o mesmo que qualquer cão ou gato vadio faz. E ainda mais: nem tu podes ter a certeza se elas são tuas filhas.. Toda essa arrogância, essa vaidade ficaria desfeita em segundos se... eu quisesse.

- Matilde! Estas a ultrapassar todos os limites. Olha que eu não sou...

- Está descansado que não és... embora não mereças, escusas de ficar na dúvida. Mas as tuas filhas serão educadas de maneira diferente do que eu fui. Não quero que os maridos façam delas gato sapato.

- Tu não sabes o que dizes.

- Sei muitíssimo bem. Elas hão-de ter o mesmo direito para escolher o carrasco como, vocês têm para escolher a vítima. Pelo menos, sempre terão mais algumas oportunidades. . .

- Tu deves estar doida! Queres que elas sejam tomadas por...

- Preconceitos de mau julgador. Quero que elas sejam livres. Percebe: livres! Ou toda a tua ciência, todos os teus livros, todo o teu inchaço pseudo cientifico não te abriu os olhos? O instinto do homem macho prevalecerá sobre o instinto do homem pai? Cego egoísta! Para ti, embora tenhas filhas, elas terão de continuar a ser escravas, a esperar que os seus futuros donos as escolham e lhes façam toda a casta de desconsiderações sem que elas possam esboçar um simples gesto de autonomia! Para ti, elas têm uma importância subsidiária...

- Trato-as da mesma maneira como trato o rapaz. Sabes muito bem que o crítico pelos seus exageros e que o castigo.

- Há sempre uma diferençazinha.

- Mas tu, não fazes o que queres?

- Se fizesse...

- Ter-me-ias trocado por outro - disse o médico esforçando-se por rir.

- Estás enganado. Embora pareça, não sou mulher para novo sacrifício. 0 teu vazio deve ser semelhante ao dos teus congéneres.

- Pronto. Já disseste tudo. Para terminar tu queres saber se eu te amo, eu digo-te que te amo e vamos para a cama.

- Não vamos não. Tu não gostas de mim. .. tu gostas das tuas comodidades, o teres a tua mulher quando te apetece, o satisfazer os teus instintos. Conheço-te melhor do que pensas. Porque dizes tantos disparates à Madalena?

0 médico, apanhado desprevenido sentiu encher-se de calores. D. Matilde continuou;

- Estou farta! Não aguento mais! Não tenho mais paciência para servir de reclamo, só de fachada. Para os outros somos um casal modelo, para nós somos um inferno!

- Matilde, tu não estás bem.

-Tu é que não estás e cada ano pioras.

- Não exageres minha queridinha.

- Não sejas cínico! Não tens consideração por mim nem pelos teus filhos. Não vieste... tens menos respeito por mim do que pela mulher a dias. Rebaixas-me, fazes-me sentir uma intrusa na tua vida.

- Tu perdeste a cabeça. Amanhã...

- Hoje. Terás de me ouvir até ao fim; ainda tenho muito a acrescentar já que me críticas por tudo e por nada...

- Não te posso louvar pelas asneiras que cometes!

- E tu? Nunca erras?

- Raramente.

- Coitado, infeliz.. De hoje em diante vais viver à tua vontade. Vais tu mostrar os teus predicados de homem sabedor. Deixo-te com os teus amigos, com os teus parasitas, com todos aqueles que aceitam os teus sorrisos amáveis, as tuas boas palavras, as tuas anedotas... São tão engraçadinhas as tuas anedotas! Tenho pena que tu próprio não as oiças...

- Matilde!

- Pensando bem... és um homem estranho, uma espécie de homem camaleão.

- Matilde. Tenta compreender a minha posição...

- A tua fachada, queres dizer. Como ela é hedionda a tua fachadazinha; muito perfeita, muito limpinha...

- Estou a cair de sono.

- Só para tua mulher ou para os teus fllhos não tens sorrisos ou palavras amáveis; entras e sais como se eles não existissem ou fossem o menor dos teus trabalhos neste mundo.. .

- Alguém tem de ser sacrificado...

- E por que não tu? Ou a mulher terá de ser sempre uma mercadoria que está sujeita à lei da oferta e da procura? Que terá de se subjugar a códigos que vocês homens, homenzinhos, nunca respeitam?

- Eu tenho uma missão a cumprir...

- Criança inconsciente! Tu identificas-te com todos os grandes pensadores que, como tu, relegam a mulher para um pIano secundarissimo depois de terem arranjado uma série de sofismas; como sexo fraco, menor capacidade mental...

- Mas eu te...

- Já sei. Mas para teu sossego; todos temos uma missão a cumprir. Contudo, para a cumprires não precisas de calcar os que te rodeiam. Nunca tens uma palavra amável...

- Eu penso em vós... simplesmente... detesto falar, dizer vulgaridades...

- Não gostas de falar, tens de pensar nos teus doentes enquanto comes, enquanto estás junto da tua família... mas logo que sais de casa nunca mais paras as conversas, nunca  mais te lembras dos teus queridos doentinhos e da tua estranha missão! Como é flexível esse teu caracter, esse teu altruísmo... esse teu «faz» esse teu «podes fazer» sabendo, que eu não faço. Essa imposição diluída, mas sistemática, sobre a mulher pressionando-a sempre a fazer o que vocês desejam.

- Estou a ver que tens seguido as palestras do Fernando Patrocínio sobre a defesa dos direitos da mulher.

- Tenho-o ouvido tanto como tu.

- Como vês, sempre há alguém que toma o vosso partido, vocês é que não sabem aproveitar as oportunidades... e a propósito, de oportunidades, aproveito esta para me ir deitar.

- Não, na minha carna!

- Deito-me onde sempre me deitei.

- Saio eu.

- Matilde, por favor, não me faças perder a paciência.

- Podes perdê-la. Já não é a primeira vez, conheço bem o conteúdo das tuas salutares palavras, das amáveis frases para com tua mulher, para com os teus filhos. Embora tenhas melhorado um pouco, de vez em quando descarrilas... não consegues ter nível.

- Deixa lá, tens tu por mim.

- As tuas respostas vêm do berço; a camada de verniz colada no liceu e na faculdade salta imediatamente ao veres-te atacado... a tua cultura assenta em utópicas quimeras que tu criaste para deleite pessoal, sonhas o endeusamento. Tu, na realidade, és um narcisista, um cobarde e um boçal...

- Tu queres causar a nossa desgraça e eu não sei o que me contém.

- Escusas de aparentar esse ar de crocodilo furioso. Aquilo que tenho para te dizer tens de ouvir: és narcisista porque só te vês a ti, os outros são simples sombras que tu fazes desaparecer ou que tu compras. És cobarde porque só atacas de frente a tua mulher e os teus filhos. És boçal...

0 médico, muito pálido, agarrou fortemente a mulher pelos braços.

- Deixa-me! És um bruto! Não me calo, não, não e não!

- Ou te calas... Não me chateies! Ouviste!? Não me chateies!

- Não me tens o mínimo respeito! Oh, meu Deus, meu Deus! Já não consigo suportar mais esta pantomina! Não tens o mais leve decoro e ameaças usar a força bruta. Pois usa, tens-me à tua disposição. Dá saída aos teus instintos bestiais! Dá lugar à tua sofisticada educação! Para mim não tens que fingir. . . os teus rasgos de pretenso e efémero cavalheirismo ficam-te agarrados aos nastros das cintas de algumas das tuas clientes.. .

- Pretendes irritar-me? Não consegues mais do que ensonares-me, se é isso que desejas... atinges plenamente os teus fins...

D. Matilde continuou:

- Mal entras em casa tudo muda; não mais camada de verniz, não mais simples resíduos da mais leve educação... Tudo desaparece como por encanto, tudo fica à entrada da porta.

- Vai-te deitar. Estás cansada.

- Sonhei felicidade, imaginei um mundo novo, um mundo de luta, de luta honesta, onde tu entrasses, onde eu entrasse... enganei-me.

- Deixa-te de pieguices sem nexo.

- Sou uma parva.

- Belo! Agora choras.

- Sim, choro. - respondeu D. Matilde tirando o braço que o marido lhe pusera sobre o ombro. Continuou entre soluços:

- Choro, porque já não sei se te amo ou se te odeio... porque já nem sei o que tu representas para mim. 0 meu espírito está desfeito. Completamente desfeito! E foste tu! Tu que me transformaste! Tu que apregoas a liberdade, a compreensão, o amor!... Hoje foi o último dia em que a tua mulher te aturou mais esta falta de respeito... esta obstinação com que tentas reduzir-me a um simples nada.

- Matilde, por que és precipitada? Por que vês só por um lado?

- Talvez... talvez tenhas razão e só veja por um lado. Assim é: tu tens sempre razão. No dia dos teus anos afadigo-me a preparar-te uns mimos, alguns carinhos... os teus filhos trazem-te presentes, ensaiam uma pequenina canção com todo o amor e tu... esse tu egocentrista, esse coração bondoso que tanta gente admira... não apareces, não dizes uma palavra.

- Matilde!

- Não consigo mais.  A peça teatral, o drama a... tragédia, a comédia que vimos representando há quase dezasseis anos tem os dias contados... a figura secundária deixa o papel e abandona o palco!

 

VIII

 

 

Encontrei o médico quando me dirigia para a aldeia.

- Madrugou!

Ele olhou para mim e eu reparei em duas rugas profundas que Ihe marcavam a fronte e lhe davam aparência de mais velho. Como ele não me respondesse, continuei:

- Venha daí à missa.

- Só se eu estivesse .

- Não sei porquê! Tratar do espírito nunca fez mal a ninguém.

- 0 melhor é calar-se. Eu sei muito bem qual é o tratamento que o senhor dá ao espírito. Acabe lá o, servicinho e vá ter ao café.

0 Serralho aproximou-se de nós e com o chapéu na mão dirigiu-se ao médico.

- Eu desejava dar uma palavrinha a Vossa Excelência.

- Não me digas que o fígado te pregou alguma partida?

- Antes isso. É a minha irmã, coitada.

- Está cheia? - e o médico fez o gesto com as mãos.

- Não senhor! Também era melhor. Já está viúva há mais de três anos! Havia de ser bonito!

- Maleitas?

- A minha irmã está com os espíritos, senhor doutor.

- Então bateste à porta errada, homem! 0 que trabalha com espíritos não sou eu, é aí o senhor prior. Esse é especialista...

0 Serralho olhou-me indeciso. Eu disse para o médico:

- Vá lá ver o que se passa que eu espero-o no café.

0 medico olhou-o de alto a baixo.

- Vamos embora, assim como assim, sempre é preferível aturar um doido do que esperar por um padre. Não se esqueça; o mais tardar às dez, no café.

Já no carro o médico perguntou ao Serralho:

- Conta lá isso, mas deixa-te de parvoíces.

- Eu não posso contar mais do que sei, senhor doutor! Entraram os espíritos há dois dias e ela não faz mais do que berrar que nem uma cabra: uumm...aaa...uu... aa.. .eee. Levanta os braços, arranha a cara, arranca os cabelos, rebola-se pelo chão... não há duvida! É o que diz a ti Maria Mijona, é o que diz toda a gente: são os espíritos!

A casa onde  Serralho, a irmã, a mãe e os filhos viviam era um tugúrio de uns oito por dez metros onde as camas se misturavam com os tachos da cozinha. De um canto escuro vários gemidos conduziram o médico até à mulher.

- Há aí mais um candeeiro?

- Não serve uma candeia senhor doutor?

- Traz o que houver.

0 médico apertou ligeiramente as faces da rapariga e esta lançou gritos aflitivos.

- Tragam-me uma toalha.

Ao fim de algum tempo um dos filhos do Serralho trouxe um pano lavado, mas cheio de buracos.

- Isto serve, senhor doutor?

0 médico não Ihe respondeu, agarrou no pano e disse para a doente:

- Abra a boca. Não tenha receio. Isso mesmo. Abra mais.

0 médico meteu-lhe os dois dedos polegares na boca e deu um pequeníssimo esticão. A rapariga deu um grito medonho, atirou com a roupa da cama e sentou-se no leito. Os assistentes, que eram muitos, saíram porta fora atropelando-se uns aos outro, e gritando para o médico:

- Fuja, senhor doutor, qu’ela estrafega-o!

A rapariga olhou o médico com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.

- Oh senhor doutor! Oh senhor doutor! 0 senhor é o meu salvador! Cem anos que viva nunca mais o hei-de esquecer! Ah, senhor doutor, pensava que nunca mais tornaria a falar, e estes burros... estas bestas...

- Pronto, pronto - dizia-lhe o médico tentando apagar-lhe o ódio que os olhos da doente expeliam. Mas a sua chama era superior aos bons conselhos.

- Estes grandessíssimos animais julgavam que eu estava possuída do demónio, grandes burros! Por isso é que a gente há-de trazer sempre a canga em cima?! Ainda acreditamos nestas patranhas, e é o que se vê! Deixavam-me aqui morrer esganada, os malditos! Eu, nem tenho nada que lhe possa pagar tão grande favor, senhor doutor, mas... sirva-se de mim pró que quiser.

- Esta bem, está bem, mas escusa de me beijar as mãos.

- Eu devia beijar o chão que o senhor pisa!

0 médico desprendeu-se da rapariga, deu-lhe uma palmadita nas faces bem desenhadas e disse-lhe já ao sair da porta:

- Quando precisar de alguma coisa apareça pelo consultório.

Eram precisamente dez horas quando o médico chegou ao café. 0 empregado trouxe-lhe a bica e o jornal, eu não me contive:

- 0 que tinha ela? .

- Uma luxação dos maxilares.

- É grave?

- É sobretudo doloroso. 0 doutor Gomes da Silva contou-me que na sua região isto é frequentíssimo. Alguns pacientes chegam a rebolar-se nos excrementos dos animais e ficam ali até que o médico apareça.

 Sem querer mudei o rumo a conversa.

- Hoje a sua mulher não foi à missa. Não me diga que a proibiu?

- Você está doido! Quem é que hoje em dia consegue fazer alguma coisa desses vaidosos animaizinhos que se enfeitam e se pavoneiam em frente dos homens, para terem a reforma aos vinte e poucos anos e nós, os escravos, os burros de trabalho, temos ainda que lhes suportar todas as más disposições e andar muito direitinhos porque senão chovem as ameaças do faço isto ou faço aquilo!. Sabe o que lhe digo: nunca me devia ter casado!

- Mas o senhor, ontem...

- Esqueça o dia de ontem. A Madalena confunde-me: gosto de a abraçar, de lhe beijar as mãos de a ter junto de mim, penso nela constantemente., mas quando fazemos as nossas escapadas e nos encontramos a sós e a posso possuir... não consigo. Perco a força... sei lá! Arranjo mil subterfúgios como um impotente envergonhado e ela regressa sempre de mãos vazias. Meu Deus! Tenho tanta necessidade de a sentir junto de mim e há uma força estranha que impede que isso aconteça. Eu sei que ela me deseja!

0 médico tapou a cara com as mãos e eu vi nele toda a angústia do momento por que estava a passar. Só uma grande necessidade lhe faria invocar o nome de Deus. Vi-o tão abatido que me deu pena. Tentei animá-lo, embora o fizesse desajeitadamente:

- Não deve pensar em D. Madalena. Para quê destruir dois lares? Essa força que o impede de consumar o último acto chama-se razão...

- Não arranje paleativos para aquilo que nem eu próprio compreendo. Os padres sempre tiveram o hábito de dar sentenças sobre assuntos de que não fazem a menor ideia, o senhor enferma do mesmo mal! Pensam-se enviados do Senhor e como enviados... naturalmente e por acréscimo investem-se na categoria de inspirados!

- Mau, mau! Eu só o queria ajudar!

- 0 senhor não ajuda nada. 0 senhor só baralha. Ajuda tive da miséria que rodeia o Serralho. Essa sim, vai-me fazer magicar durante uns dias.

0 médico levantou-se, pagou os cafés e foi-se embora. Durante uns momentos fiquei a olhar a porta por onde ele saíra, depois disse para mim: Mas que ligação poderá existir entre a miséria em que vive o Serralho e os amores furtivos entre D. Madalena e o médico?

 

 

IX

 

Às sete da manhã começou o alvoroço; os foguetes sucediam-se num ritmo metronómico e a população acompanhava-os. Os autocarros da «Rodarte» pareciam formigas no seu vai e vem, apressados em ligar a cidade ao local da festa situado a quatro quilómetros. 0 administrador da empresa, senhor Quirino viera ele próprio ver como as coisas corriam. Viu-me por detrás dos vidros.

- Ainda aí?

Abri a janela e respondi-lhe com outra pergunta.

- E o senhor, por cá?

- Vim à festa. Quer ir comigo de carro?

- Não, obrigado.

- Depois não tem transporte! Na cidade só ficam os muito velhos e os doentes.

- Tenho de lá estar para a missa do meio dia.

- Se quiser que o mande buscar...

- Obrigado, não vale a pena incomodar-se?

- Não incomoda. Até logo.

- Até já.

As ruas principiaram a ficar desertas e quem passava fazia-o enlatado, só alguns miúdos corriam atrás das canas dos foguetes. Aquilo preocupava-me. Da janela gritei-Ihes:

- Vocês, não vão à festa?

Os rapazes pararam um instante, olharam para mim, e correram de novo sobre as canas sem dizer palavra. 0 Serralho e a mulher vinham a passar.

- Chó burro! Então o senhor prior não vem? Olhe que levamos aqui merenda que ainda chega para mais um!

- Lá irei. Não são os vossos filhos que aí andam?

- Esses almas...

- Vê lá que dizes, homem! Hoje é dia de festa.

Olhei, para a mulher do Serralho pequenina e gorda ela parecia um açafate. 0 burro, luzidio e bem tratado zurrou o seu parecer.

0 SerraIho coçou a cabeça, abriu os braços: - Que lhes hei-de fazer!

- Podem-se desgraçar.

- Que hei-de fazer, senhor Prior? Brinquedos não lhe posso dar, prendê-los não sou capaz... entrego aqueles valdevinos ao Deus dará. Eles lá se vão criando. Se eu "imigrasse..." o Coxo foi para França ainda não há um ano e aí está num belo espada. Quando foi nem dinheiro tinha para fósforos!

- Teve sorte.

- Teve coragem. Eu é que não sou capaz de deixar a mulher e os filhos e ir sem um lugar certo. Se me ajudassem.

- Pedes à Senhora do Incenso. - Disse-lhe a mulher.

- Santos!

- Eu bem digo. Ele não vai porque não tem Fé, não é assim, senhor Prior?

- Isto há-de melhorar... Com dezasseis filhos..., e agora com o abono de família...

Ainda não tinha acabado a frase quando chegou o Zé Jacques.

- Bom dia rapaziada! Ai o senhor prior estava aí? Nem o tinha vislumbrado.

- Bem se vê que é dia de festa. Este animal vem a falar caro.

- Cala-te meu basbaque. Ainda não sabes que ando em lições! Quando chegar às Francias e trouxer um espada daqueles que dão cem à hora até te desbarretas.

- Não digas asneiras! Vamos à festa. Tu levas a mulher e o burro. Eu levo o burro e a mulher. Hão-de dizer que somos os dois únicos asnos cá do sitio.

- Que diz o senhor prior?

- Digo que os vossos filhos nunca mais param de apanhar canas. Levem-nos convosco.

- Esteja descansado. Isto vai tudo a toque de caixa. Mas não se esqueça, tem de dar uma ajudinha para alcançarmos os papéis.

Fiquei a olhar as pessoas e os burros. Deus me perdoe, mas as afinidades entre uns e outros eram flagrantes. A mesma passividade, a mesma tristeza, o mesmo olhar dócil e resignado. Abanei o espírito e compreendi que estes eram os restos do passado. Dentro em pouco, tal como o médico afirmava, ou aquilo se transformava numa coutada ou a civilização entrava em catadupas e nivelaria a tristeza e a alegria dos povos. Perdia-se a beleza da simplicidade, do viver ingénuo e sem preconceitos para o viver sofisticado.

- Viu passar o Serralho? - perguntou-me o barbeiro.

- Vai aí à frente com o Zé Jacques.

- Não pode andar o «Roque sem a amiga». 0 senhor não vem?

- Ainda tenho tempo.

- Nós combinámos merendar os três. - Achei interessante aquele «três» dimensional. Os três homens representavam as famílias num conjunto de trinta e sete seres incluindo os burros, pois eu tinha a certeza que estes eram tratados com tantos ou mais cuidados que qualquer das pessoas.

0 barbeiro, olhou para os lados.

- Não diga a ninguém. Amanhã vou a salto para a França.

- Amanhã?

- Não queria faltar à festa. A gente nunca sabe se volta. Acha que faço bem?

- Tudo depende...

- Até já sei algum francês: “Bon-jour, merci”...

- Quem é o passador?

- 0 Serralho vai comigo até à fronteira. Depois, há-de ser o que Deus quiser.

- Ele não vai?

- Não. Aquele só tem garganta. Não diga nada a ninguém.

Fiz-lhe sinal que podia contar comigo.

- Vai a pé para a festa? - Perguntei-lhe.

- Tive de vender a bicicleta. É a vida. Se aquilo der para o torto... é a minha desgraça. Mas, assim como assim, a fartura nunca foi muita... hei-de vencer.

Olhei-o com simpatia.

- Divirta-se na festa.

- Vai ser difícil. Está-me o coração a chorar. Nem queira saber o que isto me custa! Deixar 0 país, a mulher, os filhos... é certo que nós somos gente em todo o lado e que o mundo pertence a todos... mas a nossa terra é sempre a nossa terra. Se fosse para o Brasil, para Angola ou Moçambique sempre era diferente. A língua éa mesma! Agora para ali! Bem, eu já sei dizer «Bon-jour e merci», mas conheço alguns que nem isso sabiam dizer quando para lá foram e hoje tem bons carros e compraram boas propriedades. Eu não sei como eles se arranjam. Também devo aprender. No corte de cabelo sempre fui dos primeiros... aquilo não deve ser mais difícil.

- Se precisar alguma coisa conte comigo.

-  Bem-haja senhor prior. E, disto...

- Esteja descansado.

Fiquei a olhar os miúdos apanhar canas. Senti que alguns dos petardos não rebentavam completamente. Aquilo começou a enervar-me, avisei-os mais duas vezes. Como não me quisessem ouvir, desci as escadas, corri atrás deles, dei dois bofetões no mais velho e terminou ali a caça. Depois fui à festa e não mais me lembrei do que tinha feito.

Com tanto desejar esquecer o passado, tinha a sensação de que vivia só o momento presente e até era verdade.

 

X

 

Estava a dizer a missa e a observar o Clemente.

Fora do circuito religioso ele devia ouvir-me através dos altifalantes e seguir as minhas palavras com o olhar. Falei do «Filho Pródigo» e fiz as comparações que achei necessárias sobre a saída, sem método, que todos os dias se fazia para outros países.

- O senhor parecia o Velho do Restelo. - disse-me ele quando o fui convidar para merendar comigo.

- E não tenho razão?

- Por que havia de pensar que o senhor  tinha razão?

- O país esvai-se; isto é o nosso sangue que corre para outras veias.

- Não seja ingénuo, padre. Cada um procura defender-se, melhorar o seu nível de vida. Se estivesse nas mesmas condições tentaria fazer o mesmo.

- Não fazia.

- Com o seu feitio? O senhor é um irrequieto. Não tente enganar-me... e enganar os outros, o que é mais grave.

Olhei o Clemente como se o visse pela primeira vez. Nunca o pensara tão combativo e muito menos interessado pelos problemas alheios.

- Nós somos um povo caseiro - continuou  ele - mas não pense que somos mais estúpidos que os outros. Vamos deixando correr o marfim mas sabemos muito bem em que águas navegamos. Por isso, escusa de lhes acenar com a bandeira Nacional que eles não vão ao que o senhor quer. Estou convencido que estamos na altura de lavrarmos os continentes depois de termos lavrado os mares. Sofremos o mal dos ciclos.

- Então é um povo de formigas?

- Chame-lhe o que o senhor quiser. Eu digo que é um povo que não quer morrer.

- Mas quem olha para o senhor e o vê sempre tão calado e com um ar ...

- Diga, não tenha receio. Não me ofendo por saber o que pensa de mim... tenho até prazer em ouvir a sua opinião,

- Nunca o vi sorrir.

- Quer dizer que eu sou um homem triste?

- Talvez.

- Bem. Sou mais pensativo do que triste. É verdade que não rio por dá cá aquela palha, mas gosto de uma boa piada. Por outro lado tenho razão, ou melhor todos devíamos ter razão para observarmos um ar mais sério do que normalmente adoptamos.

- Ainda mais sério?

- Veja esta alegria, esta boa disposição que reina aqui no arraial.

- Sim. Isto não lhe agrada?

- Pelo contrário, sinto-me feliz com a felicidade dos outros, mas se esta gente tivesse

consciência do mundo em que vivemos não se comportaria deste modo.

- Parece-me que o senhor estaria mais indicado para padre do que eu.

- Não! Há demasiados inúteis para que isso me agradasse.

- Estou a estranhá-lo, Clemente.

- Está-me a conhecer. O senhor veio ao meu encontro porque estava interessado em mim. Eu faço-lhe a vontade... e depois merendo consigo. É uma maneira de lhe pagar o seu convite!

- Mas eu não exigi nada em troca.

- Li nos seus olhos.

- É muito perspicaz.

- Se o senhor pensasse que neste momento em que estas cinco ou seis mil pessoas riem, comem e dizem chalaças, muitos milhões vivem na miséria mais ignóbil e nunca conheceram o esboçar de um sorriso, o senhor não vinha sondar a causa da minha tristeza.

- Como se engana, Clemente. Penso em todos eles e sou padre para que a minha contribuição possa ser mais eficaz nessa ajuda. Pode acreditar que não me julgo um inútil, antes pelo contrário. Do senhor eu podia dizer que é um indiferente embora me tivesse enganado.

- Não se enganou. Eu sou indiferente, porém, a minha indiferença é perante o quotidiano, o mesquinho, aquilo que não tem qualquer importância e as pessoas tomam como ofensas.

A conversa levou o assunto para o médico. Clemente não se alargou em considerações.

- Somos bastante diferentes um do outro, contudo, isso não quer dizer que não sejamos bastante amigos. Ele tem o seu feitio, eu o meu e não nos damos mal.

O barbeiro veio despedir-se, eu dei-lhe um abraço e desejei-lhe felicidades. Quando ele abalou o Clemente disse-me:

- Mais um.

Não lhe dei resposta, tentando cumprir a minha promessa.

- Evita calar-se. Toda a gente sabe e ninguém fala. O passador é o Serralho

- Como vê, os padres sempre servem para alguma coisa.

- Guardadores de segredos. Aposto em que o senhor não mexeu um dedo para este desgraçado tentar a sua sorte.

Pensei para mim: "Toma, perdeste uma boa oportunidade de estar calado".

- Que fez por ele, não me diz?

- O mesmo que faço por todos.

- Reza.

- Quando não posso mais...

- Isso todos nós podemos fazer sem sermos padres.

- Mais uma vez lhe digo: desconheço-o.

- Por lhe ser franco? Não tenho nada contra os padres, nem contra quem quer que seja, simplesmente hoje estou num dia em que aceito o diálogo.

- Há dias em que não aceita.

- Prefiro pensar a dizer meia dúzia de chouchices sem pés nem cabeça.

- Nem todos podem ser intelectuais

- Mas todos podem ser coerentes com a sua força anímica. Pensar que somos seres capazes de transformar o universo e gastarmos o tempo discutindo frioleiras, não está no meu feitio.

- Olhe, estão a chamar-nos.

- Daqui não distingo quem seja.

- Parece-me o Serralho.

- Não, esse não se atreveria.

- Por que não?

- Por que não tem confiança com o senhor e muito menos comigo.

- É a separação por castas?

- Não. É a distância entre a ignorância e o conhecimento. Se todos os Serralhos do mundo soubessem ler, escrever e interpretar o mais simples dos pensamentos abalavam os complexos. Nem eles teriam vergonha de falar connosco, nem nós desprezaríamos a sua companhia.

- Admite um «Eles» e um «Nós» ?

- Admito. É a diferença entre o analfabeto e o indivíduo culto. Mas isso não quer dizer que aprove. Estudo, penso a maneira como se deveria debelar esta desigualdade entre os seres humanos. E é por isso que o senhor me vê quase sempre calado.

- Acha-se superior aos outros.

- Não me compreende! Vê, porque não gosto de falar. Acho-me igualzinho a cada um, simplesmente não converso só pelo prazer de falar.

- É um «snob».

- Não. Sou um ser humano que me prezo de ter cabeça. Quando todos os homens e mulheres souberem o lugar que devem ocupar neste mundo, quando todos agirem segundo a razão e não como animais selvagens ver-me-á rir, falar e dizer uma ou outra baboseira, mas enquanto o ódio cegar o entendimento humano e só os mais fortes receberem protecção, não conte comigo. Tinha razão. Vem aí o Serralho. Deixo-o com ele, até logo.

- O senhor prior não me viu chamar?

- Que queres?

- É a minha mulher.

- Está doente?

- Não senhor. Teve uma menina mesmo ao pé da capela.

- Então e agora, que queres que faça?

- Quero que a baptize.

- Não pode ser, homem. Estas coisas têm as suas regras.

- Oh senhor padre! - Disse-me ele com cara de poucos amigos - Não me venha com tretas! Agora pode-se tudo. Só não se pode, o que não se quer. Agradeço-lhe que me baptize a miúda.

 Não tive outro remédio. E ali, perante quase seis mil pessoas, abençoei e baptizei para os prazeres e as alegrias do mundo a Maria do Incenso Neves da Conceição Serralho e como padrinhos arrastei o Clemente e a Senhora do Incenso, padroeira da cidade. No fim o Serralho inchado como um balão disse-me:

- Acabaram-se as Francias. Já botei as contas: dezassete filhos. Só de abono são três mil e oitenta escudos por mês. Os sapatos dão-me outro tanto. Tenho cinco filhos já a trabalhar. São mais sete mil e quinhentos escudos..., sabe o que lhe digo senhor prior: até quase penso que sou um homem rico. Já não vou. Passo-os. Isso sim, passo-os e eles quando de lá vêm com uns cobres pagam-me, se vêm sem nada ficamos amigos e às vezes ainda tenho de ajudar para as primeiras despesas. O senhor Clemente ofereceu-se para m’inducar a garota e esteve a meter-me na cabeça em mandar os mais pequenos estudar. Ele disse-me que agora eles nem pagam nada enquanto se inducam... Quer ver que ainda tenho um filho doutor? Ah, homem duma cana! No dia

em que isso acontecer sou o homem mais  feliz do mundo!

Já em casa voltei a pensar no Clemente: seria possível que ele já soubesse da ligação entre a mulher e o médico? Não havia dúvidas que estava excitado. Não.. Não podia ser. Se desconfiasse de alguma coisa, a sua atitude seria diferente. A sua tristeza seria mais acentuada. Mas... Também não consigo explicar por que motivo me falou  tão sem cerimónia e mesmo com alguma irreverência. Difícil, muito difícil, este bicho homem.

 

 

XI

 

Estávamos na Primavera. Sentia o cheiro da terra fresca penetrar-me as narinas e

pensava: é bem verdade que a Primavera e o Outono nos convidam a ler e a escrever, o Verão aperfeiçoa o estudo que fazemos uns dos outros e o Inverno amadurece os conceitos.

Respirava-se alegria, felicidade e amor. Agarrei num livrito de poemas que tinha publicado na juventude. De repente, senti mexer na porta. «Quem será»? Ainda o pensamento estava no ar e já ouvia uma voz saltitante  gritar:

- Pode-se entrar?

Corri à porta.

- D. Leonor! Não olhe para isto: Os livros estão desarrumadíssimos como... toda a casa. Sente-se...

- Obrigado padre... não se incomode.

- Vou procurar outra cadeira

- Não se preocupe comigo.

D. Leonor lançou os olhos pelo compartimento. Por todo o lado nada mais que livros, jornais, revistas e esferográficas. Pegou no livro que eu tinha aberto. No poema algumas palavras manuscritas chamaram-lhe a atenção:

«Não temas querido, o meu amor será eterno como o infinito. Beijo-te intensamente sempre tua...» .

Da cozinha perguntei-lhe:

- Toma chá?

- Só uma gota, se isso não vier causar-lhe transtorno.

- Não é transtorno, é prazer.

- Fuma ?

- Raras vezes. Se quiser tabaco encontra-o na primeira gaveta do lado direito.

- Posso tirar?

- A casa é sua.

D.Leonor acendeu o cigarro e leu a poesia sobre a qual estava a dedicatória:

 

«Possuir-te, querer-te num desejo louco

De ter o teu corpo colado ao meu

Esquecer que sou católico e ser ateu

Neste momento, para mim, é bem pouco. .

 

Gritar bem alto até ficar rouco

Que esse corpo que era há pouco teu

Me pertence. Que não sou mouro ou judeu

Mas por te amar, de loucura me touco.

 

Desfazer-te em meus braços, entrar em ti,

Possuir-te como nunca ninguém possuí

E amar como jamais se amou.

 

Mas sei que não me queres, ou que me queres,

Sei lá! Tudo são caprichos de mulheres,

E por caprichos a minha fé se apagou.»

 

Leonor ficou pensativa.

- Dá-me licença?

- Ui, padre!

- Desculpe...

- Não me diga! Barbeou-se por minha causa? Oh, padre! Isso é de uma extrema delicadeza... não o julgava...

- Um certo ar de asseio nunca fez mal a ninguém...

- Mas estava muito bem assim... agora, compreendo. .. um padre poeta tem de ser por força um padre galante

- E quando as poesias foram escritas há tanto tempo que nada mais ficou do seu conteúdo que um pequeno livro?

- Não acredito que nada mais ficasse. Esta vida é tão curta que o ontem e o hoje estão sempre presentes no nosso espírito por mais esforços que façamos para  apagar  as más recordações desse ontem sempre tão perto e tão assustador.

Fiquei sem saber encontrar a melhor resposta. Esta sua teoria sobre a possibilidade  do esquecimento, vinha atormentar-me e desiludir-me «Que virá fazer a minha casa?» Pensei. Ela pareceu ter-me ouvido.

- Venho comunicar-lhe que tudo está em ordem. Aqui tem o seu aquecedor que vem um bocado atrasado. Tenho imensas coisas para oferecer. Nunca pensei arranjar tanto com tão pouco trabalho. Veja este cheque de oitenta mil escudos.

- A senhora é genial! - Ao dizer-lhe esta banalidade, para completar com gestos a minha falta de expressão, agarrei-lhe as duas mãos que se me estendiam, levei-as aos lábios e beijei-lhas reconhecidamente. Nessa altura, não sei o que se passou, mas tenho a certeza que durante trinta ou quarenta segundos perdi consciência do meu estado e quando despertei D. Leonor beijava-me e dizia-me frases que ao princípio não entendi.

«Meu Deus, que faço?!» Senti as forças abandonarem-me. O livrito desprendeu-se da mesa onde estava e caiu no chão. Um frio desagradável percorreu-me o corpo. Tinha a certeza que toda a cidade desejava D. Leonor e não compreendia por que ainda não estava casada. A única vez que a ouvira em confissão ela dissera-me: Padre, eu ardo, ando a arder. O desejo cega-me. O pensamento, arrasta-me! Diga-me o que devo fazer?» Não sei qual foi a minha resposta. Sei que a minha sensatez mais uma vez me desapontou. Se ela a ouvisse, ela ter-lhe-ia dito mais ou menos isto: «O amor não se evita. Nessa idade e com esse corpo é um sacrilégio fazer sofrer o mundo». Foi a primeira vez depois da minha ordenação que senti desejos de lançar fora todo o peso que carrego e que desejo sobre os meus ombros, agarrar esta mulher e prendê-la nos meus braços. Ah! Mil vezes me penitenciei deste meu proselitismo inconsequente! Hoje, ela aqui está em minha casa, à minha disposição, sem quaisquer barreiras, oferecendo-se... Não. Não! Não! - Gritei , libertando-me dos seus braços.

- Padre!

- D. Leonor!

Os dedos esguios de Leonor eram ferros que me dilaceravam gostosamente a carne, eles penetravam-me, sentia-os por todo o corpo, não tinha forças para os arrancar. A consciência repetia-me, segundo a segundo: «Não resistes, não resistes, não resistes... és um caso perdido... perdido... perdido...» A minha excitação era por de mais evidente para a negar... por entre carícias de sabor divino, Deus me perdoe, ouvi:

Padre, amo-o tanto...

«Não, Leonor, não!» Disse mentalmente, incapaz de articular palavra, embora o desejasse.

- Meu querido...

- Não! Leonor...

- Gosta de mim...

- Leonor, eu... eu...

- Vê, nem sabe mentir. Para quê mentir?

- Que loucura, Leonor!

- Pouco importa que seja loucura. Quero-o e sei que me deseja.

- Eu?!

 - Por que teima?

- Mas isso é ... valha-me Deus!

- Nem com um suporte consegue negar o que é evidente. Os seus olhos não enganam. O senhor sim, quer negar, quer fugir de si próprio, do seu verdadeiro eu, quer destruir-se...

- Eu?

- Sim, o senhor.

- Não... não me beije as mãos! Por que me tenta se conhece a minha fraqueza? Por que me quer desviar do último caminho que decidi e jurei percorrer até ao fim dos meus dias? - Ela pareceu não me ouvir.

- Tem-me em sua casa, à sua disposição; sabendo que o senhor me quer, sabendo quanto eu o quero... sabendo que farei tudo quanto me pedir.

- Mas eu... eu não peço nada... não quero coisíssima nenhuma, D. Leonor!... Foi por isso... que ofereceu...,- D. Leonor pôs-me a mão na boca.

- Não seja patetinha! Dei-lhe o que tinha a dar, porque há muito pensava proceder assim... o padre... foi o fertilizador da iniciativa! Sem o senhor... talvez a ideia ficasse só na boa vontade...

- Leonor; a sua família; que diria a sua família?

- Que me importa a família!

- As... as pessoas. Que diriam as outras pessoas?

- Ninguém mais me importa a não ser o senhor. Sou livre, sou maior, pertenço-lhe!

- Não... ... não me abrace, não me beije, peço-lhe! Veja o que faz! Páre, por amor de Deus! Páre!... A... a senhora é jovem... bonita, cheia de vida, com fortuna... qualquer homem se sentiria o mais feliz, entre todos se a senhora o quisesse... não tem necessidade...

- Sim! Tenho grande necessidade de si! Porque só a si amo! Só a si! Acredita. Nunca na minha vida eu pensei noutro homem, como pensei em ti; com paixão.

- Leonor!

A custo segurei-lhe os braços.

- Fujamos padre! deixo tudo por si.

- Que loucura, meu Deus!

- Diga que me quer, que gosta de mim!

- Cuidado, pode entrar alguém. A chave está na porta.

- Não se preocupe.

- Leonor! As suas intenções...

- Venha comigo.

- Não posso...

- Venha, nunca mais terá necessidade de se preocupar com coisa alguma... tenho o suficiente para refazer a sua biblioteca... os seus sonhos... ajudar quem necessita... gritar o seu amor pelo mundo... Escrever todos os poemas que a sua alma canta e, que nesta condição em que se encontra, terá de os respirar sozinho...

- Nem que isso fosse verdade... não posso, não posso!

- Pode. Eu cuidarei de si, dar-lhe-ei todo o conforto que necessita... o carinho que lhe faltará nos seus últimos dias. Venha!

- Não vê que é impossível! Os meus paroquianos, esta gente que acredita em mim... eu quis ser padre, compreenda isso! É difícil explicar... mas já não era garoto quando isso sucedeu... eu não fui empurrado...

Ela, mais uma vez não me ouviu.

- Outro ocupará o seu lugar. Há tantos!

- Não, Leonor. Nunca! Há pouco falou-me em personalidade... vou dizer-lhe o que nunca disse a mais ninguém, mas depois agradeço-lhe que se vá embora. Pois bem... «Eu procuro a minha personalidade».

Leonor, ao princípio olhou-me a sério, depois deu uma gargalhada tão azul e tão quente como o próprio céu e gritou-me rindo até às lágrimas.

- Tu estás cheio de personalidade. Por que julgas que eu te escolhi? Porque eras mais elegante ou mais bem parecido que os outros? Não! Eu escolhi-te pela tua personalidade! E tu - e ela ria, ria muito. - E tu andas à procura de uma coisa que te sobra. Esta é a melhor que ouvi em toda a minha vida!

- Leonor. Não conseguirá demover-me.

- Deixa-te de hesitações meu querido, vem... meu amor:

Eu segurei-a pelos ombros e afastei-a, ela conseguiu envolver-me e olhou-me ternamente, desprendi-lhe as mãos e disse-lhe enquanto a forçava a sentar-se.

- Conversemos como amigos, Leonor.

- As conversas ficarão para mais tarde. Tem de me dizer que gosta de mim, que me deseja tanto quanto eu o desejo!

Como ela me apertasse as mãos com mais força, disse-lhe:

- D. Leonor, a natureza humana é fraca. Eu sou homem... peço-lhe pelos restos de beleza que ainda brilham no seu coração que se retire. O prazer é um sorriso, cristalino, leve... passageiro, fugaz. Em poucos minutos é a saturação... o arrependimento.

- És um poeta, meu amor! És um poetazinho idealista. Eu direi de outra maneira: contigo será o prazer eterno, será o nosso dia infinito! Verás meu amor tudo o que há de mais belo, de mais puro e de mais  verdadeiro que existe sobre a Terra!

- Peço-lhe D. Leonor... acredito, tenho a certeza de que seria assim, mas sou padre... esses devaneios... essas fugas... estão-me vedadas... não me abrace, peço-lhe! As situações de compromisso estão-me proibidas

- O homem não pode estar sujeito a situações de compromisso que o impeçam de atingir a sua finalidade..

-D. Leonor... eu não lhe queria dizer...não quero ser indelicado... mas quem lhe diz que é a minha finalidade?

- Eu sei-o. A sua finalidade... sou eu que o amo.

- Não posso.

- O senhor! é livre...

- Diga antes; o espírito do homem é livre. A outra liberdade não me permite que eu a possua, que eu me delicie com a sua inquietante companhia...

- Porquê?

- Sou padre. Tenho de ser intransigente perante as minhas fraquezas... . Sirvo Deus. . .

- Não acredito num Deus egoísta que o queira para Seu exclusivo prazer, para Seu deleite...

- Deus não é egoísta, não me deseja só para O servir, deseja-me para O representar e para amar, com amor casto, todos os meus semelhantes. . .

- Eu sou o teu semelhante...

- Estou destinado a servir mais que um semelhante. . .

- Arranjaremos filhos, tantos quantos queiras! Assim poderás dispersar-te e viveres segundo o agrado de Deus.

- Não graceje com assuntos sérios, Leonor.

- Não seja vulgar. Hoje em dia cada homem identifica-se com Deus. Deus humaniza-se e é só preciso ir ao seu encontro... Ainda há pouco me disse que anda à procura de Deus ou, pelo menos, foi isso que eu percebi. Na verdade, querido, você é cheio de contradições. Não sabe o que quer, tergiversa com facilidade e... o seu Deus enviou-me para o guiar.

- Leonor!

- Sim, gostarias de abarcar o mundo com ambas as mãos e não és capaz, meu pobre!

Leonor passou-me as mãos pelos cabelos como se estivesse acariciando um filho e continuou:

- Mas, eu estou cá, a tua Leonor, ela ajudar-te-á a te encontrares... os dois seremos capazes... verás que seremos...

- Não.! Não quero a sua ajuda! Por favor vá-se embora!

- Somos dois teimosos...

- Leonor... Deixe-me! Não me beije... largue-me!

- Magoaste-me, querido...

- Saia!

- Não.

- Por amor de Deus! Pela graça infinita, por tudo quanto lhe for mais querido...

- Tu és o que eu tenho de mais querido. Tu és o meu Deus e eu sou o infinito... que desesperadamente procuras...

- Largue-me. Não a quero! Não a desejo! A senhora é... é... Deus me perdoe, o Diabo!

-Tenho a certeza que não acreditas em semelhantes ridicularias... o diabo é uma caricatura. . .

- Hoje a caricatura tomou forma! Não me aperte Leonor.

- Eu acredito em Deus...

- Se acredita em Deus, peço-lhe pelo Seu amor que saia desta casa.

- Não lhe posso fazer a vontade. Acredito em Deus pelo amor. Ele é amor e eu venho dele sou amor, tu és amor, todos somos amor! Por que não caminhas para mim tal como eu caminho para ti? Eu vejo, eu noto o teu nervosismo, o teu estado; o teu coração salta, salta tanto... que quase não sei se és tu que o tens dentro do peito, se sou eu...

- Le... o... nor não me beije eu... eu... di... go... lhe... eu... estou a di... zer... lhe,..

- Os teus lábios são fogo, querido!

- Por favor!

- Gostas de mim, querido?

- É um devaneio impossível, Leonor! Afaste-se de mim, peço-lhe...

- Senti os teus lábios...

- Não dei razão que a tivesse beijado, ordeno-lhe que saia!

- Eu amo-te! Compreende isso, eu amo-

-Leooooonor!

- Bateste-me! Tu bateste-me?

- Desculpe Leonor, peço-lhe perdão!

- Odeio-te! Nunca mais te poderei ver! Nunca mais! Tu... és falso! Tu consegues mentir a ti próprio!

- Perdoe-me Leonor...

- Sim, o senhor mente a si próprio, o senhor é um recalcado, um fingido, um covarde! Por que me olha provocadoramente?

- Leo...

- Cale-se! Tenha vergonha! Seu tonto! Seu maluco! Seguia-me por todo o lado com esses olhos impuros... que a terra há-de desfazer sem piedade...

- A sua educação, D. Leonor...

- Que me importa a minha educação, os meus princípios! Já encontrou alguma mulher sensata... quando está sequiosa de amor, seu tonto com propósitos de pessoa séria! Já?

- Devemos dominar os impulsos...

- O senhor domina-os? Aparentemente... só aparentemente. Pois os seus pensamentos são bem outros...

- Faço o melhor que sei...

- Que vulgar me saiu!

- Acredite-me, D. Leonor...

- Padre.

- Eu estimo-a muito, creia.

- E eu amo-o tanto!

- Por favor não recomece. Agradeço-lhe que saia.

- Tem a certeza de que esse é o seu último desejo?

-  Assim eu tivesse o céu..

- Oxalá não se arrependa...

Saiu batendo a porta violentamente. Limpei o suor que me corria pela cara, fui para o meu quarto e doido de... recalcamento... como Leonor lhe teria chamado, rebolei-me na cama gritando e blasfemando. A todo o momento invectivava Deus dizendo-lhe: «Por que permites? Por que o permites? Mais um momento... mais uns beijos, mais umas carícias, mais umas palavras e tudo, tudo iria por terra! Nunca mais permitas semelhante provocação! Tu conheces bem o calvário que suporto nos dias das confissões. Tu conheces o estado em que me encontro; a saúde, principalmente o coração, ainda não se habituou a ouvir queixas amorosas... sem lançar suspiros irreflectidos. Como queres que resista?

Em criança sonhei que o sol brilharia no coração de cada homem sonhei que os Homens acreditavam uns nos outros... sonhei que todos, os povos seriam uma grande família... uma família de amor! Esta mulher veio dizer-me cara a cara a verdade despida de finas roupagens: como quero que os Homens acreditem uns nos outros se eu mesmo, não acredito em mim próprio.

Oh Leonor, como foi cruel! Como foi capaz de me dizer semelhante coisa! talvez tenha razão., talvez seja tudo o que diz! Mas a minha esperança no homem é infinita! Talvez, sim, talvez eu minta a mim próprio, por insistir ser aquilo que não sou».

 

XII

 

Quando Clemente entrou foi procurar o filho, colocou-o aos ombros e percorreu a casa à procura da mulher. D. Madalena encontrava-se no quarto e tentava disfarçar pela pintura algumas lágrimas. Clemente notou que a esposa não estava bem, poisou o pequenito, disse-lhe para ir brincar, agarrou a mulher pelos braços e beijou-a.

- Que tens?

- Estou fatigada.

- Sentes-te bem? Há uns dias que te noto diferente.

D. Madalena não resistiu: as lágrimas inundaram-lhe as faces.

- Então, Madalena?

O marido abraçou-a ternamente.

- Tens de ir ao médico. Encontro-te pálida...

- Deixa-me. - Disse-Ihe D. Madalena.

Clemente levantou-se e foi até à janela. Durante alguns momentos o silêncio envolveu-os e parecia eternizar-se quando apareceu o pequenito.

- Papá, papá vem ver o meu comboio.

- Agora não, vai brincar com ele.

O pequerrucho levantou os bracitos para dar um beijo ao pai. Depois de o ter largado foi ter com D. Madalena e beijou a mãe no pescoço. Grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. - O pequerrucho correu feliz para fora do quarto. O marido veio para junto dela, pôs a mão esquerda sobre as da mulher e ficou a olhá-la. Esta não resistiu; choro convulso batia-lhe o peito e Clemente encostou-a a si.

- Não te mereço, Clemente -. Não; te mereço! Tu és bom de mais para mim. Não, te mereço!

- Não digas isso.. Tu és a mulher mais adorável que até hoje encontrei. Compreendo os teus problemas.

- Sou muita fraca, Clemente...

- Todos somos.

- Não me perdoas o...

Clemente pôs-lhe a mão na boca..

- Não tens que me contar... eu amo-te tal como és... não quero a tua infelicidade.

- Mas eu não sou digna de ti! Não te quero enganar Clemente!

- Madalena. Peço-te. Sabes que tudo se pode resolver, não tens que te culpar. Quando casámos eu aceitei o risco... eras a mulher mais pretendida... tudo se resolve, peço-te que não dramatizes... o Diogo também não evitou dizer à minha frente e à frente da própria mulher que gosta de ti. Eu aceito isso naturalmente, evitemos, os mal-entendidos. . . eu gosto muito de ti e não te quero perder... depois o nosso filho adora-te... já viste a situação... eu não tenho ciúmes do Diogo, sei que ele é meu amigo e compreendo que vocês gostem de estar um com o outro. .. de conversar... de dizer galanteios, de saír juntos! Ninguém vo-lo impede de fazer! Saiam, conversem. estimem-se mas... compreendam que há mais pessoas integradas nos vossos campos de interesses. Não sei como reagirá a Matilde, por minha parte não te quero perder!

Clemente agarrou as duas mãos da mulher, com elas segurou a sua própria cara e ajoelhou-se como um supliciado feliz pela sua sorte.

Dona Madalena de pé olhava-o confusa. Durante alguns segundos ficaram assim até que ela o puxou um pouco, ele levantou-se e ficaram abraçados.

- Clemente...

O marido, não a deixou falar. Nem um nem outro tinham palavras certas. Clemente compreendia que aquela não era a melhor altura para divagar sobre o que quer que fosse. Pensou nas férias, num passeio de fim-de-semana. De uma saltada a Espanha, coisas que D. Madalena apreciava, mas viu que todas estas tentações não tinham o momento exacto para serem ditas. A mulher podia pensar que daquela altura em diante ela era inteiramente livre e o papel dele era o de... espectador magoado. Não, ele devia continuar em silêncio. Passaram-se alguns minutos, D. Madalena tirou-se suavemente dos braços do marido, pegou-lhe na mão esquerda e sentaram-se na cama, ela olhou-o agradecida e calma.

- Eu necessitava tanto de falar contigo.

- Hoje não, guarda para outro, dia os teus desabafos.

- Queria dizer-te que estás enganado...

- Não digas. .. deixa que eu tenha os meus pensamentos como os tenho.

- Mas...

- Nada me interessa. Sei que gosto muito de ti e que a única coisa que me poderia magoar mais que todas seria... perder-te, saber-te longe, infeliz... Madalena... sê como és. Confio em ti.

- Não con...

O marido beijou-a de maneira a ela não acabar a frase.

- Olha que me sufocas - disse D. Madalena, afastando-o.

O filhito entrou no quarto.

- Anda brincar, papá, anda!

Clemente passou a mão pela cara da mulher, mandou-lhe um beijo da porta e desapareceu com o filho. D. Madalena deitou-se na cama.

«Sou infame! Tenho um marido... o melhor marido do Mundo, faço o que quero, tenho quanto quero, o filho é um verdadeiro amor e mesmo assim... repudio a felicidade, bem estar, e busco o quê? Sim, o quê? Sempre desprezei os homens por os ver como animais sequiosos de sexo e agora porto-me como uma... descuidada, porquê? Que posso obter de Diogo Palhanca que Clemente não me ofereça? Porquê esta cegueira, esta precipitação inconsciente para o abismo? Que atractivos, que seduções ele me oferece para caminhar para ele e correr riscos escusados? Para mais, corremos um para o outro, como dois seres à procura de abrigo, encontramo-nos, escondemo-nos, falamos e no fim regressamos desiludidos... mas sempre esperançados no dia seguinte. E o dia seguinte repete-se insatisfeito e monótono.

 

XIII

 

Observava a calma e bebia o ar puro da cidade banhada pelo rio e cercada de arvoredo quando vi o médico.

- Andava à sua procura - disse-me ele.

- Aqui não é fácil escondermo-nos por muito tempo..

- Concorda com o divórcio?

- Oh, doutor, isso não é atirar à queima roupa?

- Deixe-se de ganhar tempo para arquitectar uma resposta! Concorda ou não?

- Que pressa, santo Deus!

- Ou responde ou vou-me embora.

- Concordo.

- Concorda. O senhor é padre e concorda. Bem, então assim, isto fica mais. simplificado. O divórcio à face da igreja não é permitido e o senhor concorda...  hum... conhece alguém nos jornais?

- Eu?!

- Só estamos aqui os dois. Conhece ou não?

- Sim, uns quantos, não muitos.

- Precisava de alguém que ventilasse o problema, alguém que apoiasse esta ideia.

- Ideia... apoiar... mas que trapalhada é esta, doutor?

- Eu, também tenho uns conhecimentozitos... encostado a um padre isto vai.

- Mais devagar, o que é que eu vou apoiar?

- O divórcio, que havia de ser?

- Mau! Eu disse-lhe que concordava, não disse que apoiava!

- Padres são... todos iguais, todos falsos como Judas!

- Venha cá. Não se precipite nem seja inconveniente.

-  Não estou aqui nem mais um segundo!

- Venha cá. Vamos falar com calma. Eu digo-Ihe as minhas razões, o senhor diz-me as suas, se eu o convencer não falamos mais no assunto. Se o senhor me convencer tem a minha palavra e o meu apoio.. Quer que lhe fale com maior franqueza? Sente-se lá outra vez.

-        Por que concorda o senhor e não apoia?

- Na verdade, do divórcio adviriam muitos bens e a solução para casos que estão, irremediavelmente perdidos, casais que nunca mais se unem e que estragam o viver um do outro. Sobre este ponto o meu apoio é total.

- Que mais é preciso?

- O pior é que depois por «dá cá aquela palha» todo o mundo começa a trocar de esposa ou de, marido de seis em seis, meses.

-  E que tem isso?

- O viver em comum requer habituação e a juventude ferve em pouca água. Se tem possibilidade de se separar fá-Io imediatamente ainda que mais tarde se arrependa. O doutor sabe muito bem que, salvo raríssimas excepções, aos vinte e um anos somos ainda crianças! Temos atitudes infantis e os nossos actos deviam ser olhados com bastante benevolência. Para mim, a maioridade do homem começa aos trinta. Isto não quer dizer que alguns não se mantenham garotos toda a vida.

- Não diga asneiras! Com a mulher sucede o mesmo, claro!

- Não. A mulher começa a ser adulta aos dezassete e aos vinte anos é mulher. Posso mesmo afirmar-lhe que ela é muito mais adulta aos dezoito, do que nós somos aos vinte e cinco.

- Isso não tem pés nem cabeça, mas já que assim quer, para haver divórcio, tem de haver consentimento, entre os dois, por isso, não me parece grande perigo que ele seja oficializado, se a mulher é assim tão adulta.

- Temos de contar com o orgulho e a paciência feminina que faz com que ela não perdoe muitas grosserias ao marido.

- Mas afinal ela é adulta ou não é adulta, sabe o que quer, perdoa, não perdoa, onde quer chegar o senhor com toda esta embrulhada?

- A mulher perdoa, mas cansa-se de lutar e acaba por ceder. Por esse motivo deve haver um travão para certos deslizes.

- Qual travão! só a liberdade pode consciencializar a Humanidade. Os seres humanos com freio nos dentes parecem-me símios numa grande jaula!

- Não diga isso, doutor! O excesso de liberdade vai perder o homem. Há menos de cinquenta anos tudo parecia mal, hoje, rouba-se, mata-se, viola-se e tudo isso parece bem. Basta colocar-lhe o rótulo de que foi a favor da liberdade e o gatuno, o assassino e o violentador só não é aclamado como herói porque existe ainda nos seres humanos um décimo milésimo grama de bom-senso!

- Não me diga que me está a colocar no mesmo plano!

- Pelo amor de Deus! Estou a tentar dizer-lhe que sei o que o faz correr.

- O que me faz correr é a vida insuporvel que tenho com minha mulher.

- De quem é a culpa?

- Minha e dela.

- D. Matilde parece-me uma excelente dona de casa, uma mãe extremosa... uma senhora gentilíssima com todos os predicados...

- Para fazer um marido feliz - concluiu o médico. - O pior é que todos pensamos assim quando estamos de fora.

- Mas não gosta de sua mulher? Ela, se me permite, é muitíssimo bonita.

- Não me queixo da beleza. O seu feitio choca-se com o meu e as disputas e o mal-estar lá em casa são constantes.

- Pode dar-se o caso de... querer sair de um sarilho e... meter-se noutro.

- Não tente dizer tolices. Amo a Madalena há muitos anos e com essa não me posso enganar.

- Engana o marido, pelo menos.

- Não seja chato, padre!

- E dona Madalena?

- Quê, D. Madalena?

- Ela quer?

- Sei que ela me deseja.,. sei que só estima o marido... é uma ligação fria!

- Ele é seu amigo...

- Eu também o sou dele.

- Ele adora a mulher. Tem a certeza que D. Madalena...

- Oh, homem, não se preocupe! Faça aquilo que eu lhe digo, e o resto é comigo! Depois do divórcio oficializado tudo se arranjará. Você sabe que a mulher precisa de sentir segurança, nem que a segurança seja um papelucho qualquer que lhe afirme que aquilo está consoante a lei. A Madalena gosta de mim. Ajude-me o senhor e verá como eu dou um piparote na vida.

- Desculpe doutor... mas não consigo ver a sua felicidade reconstruída sem os seus três filhos. Já reparou que eles estão a erguer-se, eles são como um edifício... se as bases ficam pouco firmes. .. passados poucos anos eles abrem fendas por todos os lados e. .. é toda uma sociedade que se ressente disso.

- Para o diabo a sociedade! Estou farto de me sacrificar pela sociedade!

- Ela tem-lhe pago esse sacrifício.

- Como? Fazendo-me levantar às tantas da madrugada para curar uma histérica ou ir esconjurar o diabo a casa de uns labregos encharcando-me de pulgas e de...

- Eles pagam-lhe com amor. Todos o respeitam, todos desejam servi-lo.

- Estou farto!

- Mas, que sucederá aos filhos?

- Volta ao mesmo? Não me interessam! Ela que fique com eles se quiser.

- Não os ama?

- Naturalmente que sim! Bolas, padre! Onde quer chegar com tudo isso? Ajuda-me ou não?

- E o filho de D. Madalena?

- Os filhos são seus? Deixe-se de protelações inúteis. A minha resolução está tomada!

- Para lhe ser franco, doutor... custa-me, imenso colaborar num acto com o qual não concordo.

- Mas que diabo de homem é o senhor! Primeiro concorda, depois não concorda! Ainda me faz perder a paciência e... bom, passe muito bem, não estou para o aturar...

Voltei sobre mim os pensamentos e compreendi que o meu raciocínio fora derrotado pelo valor de três palavras e pela minha incoerência.

Mais uma vez comecei as costumadas lamúrias como o impotente à procura da mézinha.

                                                           

XIV

 

Eram perto de três da manhã acordei em sobressalto; o sino da igreja tocava a

rebate. Soergui-me para ouvir bem que não me enganava. Tentei acender a luz, mas não havia e compreendi o motivo daquele alarme àquelas horas: acontecera algum desastre.

Levantei-me bastante ensonado. Às apalpadelas fui até à cozinha procurar o candeeiro a petróleo. Quando saí de casa senti o cheiro a queimado, e esfreguei os olhos. Ouvia-se gritar por todo o lado:

- É na casa do médico! É na casa do médico!

Olhei nessa direcção e grossos rolos de fumo elevavam-se sob a força das agulhetas e da neve carbónica. Em segundos desci as escadas e corri para o local. A Polícia tinha vedado o acesso a curiosos, mas deixaram-me passar.

Os bombeiros atacavam com fúria as chamas. O fogo parecia desafiá-los e aqueles homens, abnegados e simples, com lágrimas de raiva nos olhos, viam-se impotentes para suster o vulcão.

A casa era uma vivenda antiga. As madeiras eram de castanho secular e as paredes de granito. O fogo parecia brincar com umas e com outras. De tempos a tempos sentia-se uma viga cair seguida de uma derrocada no interior. O comandante dos bombeiros encharcado em suor disse-me:

- Fiz a guerra, sou comandante dos bombeiros há muitos anos, e nunca vi o fogo resistir a um ataque destes. Olhe que temos vinte e três agulhetas montadas! Parece algodão!

- O doutor e a esposa?

- Não estão. Não havia ninguém em casa. Não posso explicar como isto sucedeu, tinha acabado de apagar a luz quando ouvi o sino.

- Nem criados?

- Nada.

- Consegue salvar-se alguma coisa, senhor Jorge?

- Quem lá pode entrar, padre? Os homens estão exaustos. . .

- O médico está onde?

- Saiu há dias para o sul.

Estive ali três horas. Da vivenda nada mais restou que as paredes exteriores e as telhas calcinadas. Rios de espuma e água saltavam pela estrada e os bombeiros tentavam desimpedir o melhor que podiam aquela via.

No caminho de casa encontrei o Clemente e D. Madalena. Apesar das nossas relações andarem um pouco tensas foram eles que me dirigiram palavra.

- É triste ver desaparecer uma pessoa, mas quando assistimos à lenta agonia de uma casa é espectáculo para toda a vida!

Admirei-me que fosse Clemente a falar e a expressar-se daquela maneira. Sem me ocorrer outro assunto perguntei-lhe:

- O recheio era valioso?

- Alguns milhares. Toda a vivenda era uma obra de arte. Espalhados pela casa havia quadros de Vieira Portuense, Amadeu de Sousa Cardoso, Almada Negreiros, Ângelo de Sousa, Nadir Afonso, António Lapa, Carlos Calvet, Fernando Lemos, António Sena, Nikias Skapinakis. Lembras-te de quem mais Madalena?

- Deixa ver... de Medina, Eduardo Malta, Maly de Brito, Manuel Cargaleiro, Ana Maria Botelho, Nuno Sequeira, Luís Gonçalves, Malagantana; Eleutério Sanches, Maluda, Espiga Pinto, sei lá! Havia muitíssimos mais, mas estes, são os que me lembram.

- O médico é um coleccionador e tem um gosto tremendo! A biblioteca era fabulosa! Mas vê, aí predominavam autores estrangeiros. Só começou a corrida aos escritores portugueses depois de ter ido a sua casa. Tinha uma colecção de pratas fabulosa. As moedas devia-as ter deixado no banco, mas não tem menos de quatro mil contos em moedas antigas.. Enfim, Diogo Palhanca e

Matilde perderam uma bela parte da sua vida e dos seus passatempos.

Como se fizesse outra vez silêncio, de novo atingi o fundo mesquinho, da vulgaridade.

- Está coberto pelo seguro?

- Sim, o médico tem seguros de todos os géneros. Eu próprio me meto com ele por causa disso e ele responde-me invariavelmente com a propaganda televisiva.

«Quanto mais seguro mais futuro». Neste caso ele tinha razão. Do que o seguro os não pode compensar é das recordações de uma vida inteira. Eles terão de reconstruir tudo. Espero que durante estes meses eles aceitem viver em nossa casa.

- Em nossa casa? - Exclamou D. Madalena.

- É o único local onde poderão ficar... se estivéssemos nas mesmas circunstâncias...

- A Matilde é capaz de não querer.

- E a ti também não te agrada muito, não é minha querida?

- Preferia que encontrassem outra solução.

- Oferecia-lhes a minha casa... - disse eu.

- O médico nunca aceitaria!... Nem pense nisso padre. Ele vai para nossa casa, não é verdade Madalena?

- Como quiseres.

- Venha daí tomar café connosco - disse-me Clemente.

Hesitei entre o aceitar e a recusa, mas no meu espírito esta poderia ser tomada como ressentimento e aceitei mostrando o maior prazer e fazendo os possíveis por medir as palavras. Vi que D. Madalena ficou satisfeita e lentamente dirigimo-nos para casa. Pelo caminho magotes de gente continuavam a comentar o caso. Quando passámos percebi que elas sussurravam algumas graças. Eu dava graças a Deus pela bondade de Clemente e pela gentileza de Dona Madalena. Se o fogo não tivesse tão graves consequências tê-lo-ia bendito.

 

xv

 

 

Diogo Palhanca chegou no dia seguinte e durante muito tempo ele e Clemente

percorreram as ruínas da vivenda e o jardim que a envolvia o qual estava irreconhecível.

- Não, Clemente, não volto a reconstruir o que o fogo destruiu. O fogo é uma forma de purificação. Eu tenho de aceitar o destino.

- Não diga isso doutor! O senhor nunca acreditou no destino e agora vem com essa ideia para cruzar os braços! O local é o melhor da cidade e não vai desperdiçar aquilo que todos cobiçam!

- O senhor também? - Também o quê?

- Também cobiça?

- Quem não deseja viver num sítio destes em contacto com a natureza e dentro de um aglomerado populacional?

- Ofereço-lho!

- Não diga disparates doutor! Nem eu lho aceito, nem o senhor pode proceder assim.

- Você conhece-me bem. Nunca voltei com a palavra atrás. Ou você o aceita ou eu saio já de sua casa.

- Não diga disparates, doutor! De momento não tem para onde ir e a nós não nos causa qualquer transtorno. Pelo contrário, a minha mulher e a sua passam um tempo bastante agradável e entreajudam-se..

- Quer dizer: conversam sobre a vida alheia e sobre nós.

- Que hão-de elas fazer?

A pergunta ficou sem resposta e os pensamentos substituíram as palavras. Diogo Palhanca viu que o fogo representava a separação entre o presente e o passado. A sua mulher estava perdida para ele como a mulher de Clemente estava a aproximar-se do seu primeiro amor e a perder o marido.. A vida lá em casa só era suportável por causa dela..

Clemente interrompeu-lhe as divagações.

- Vem aí chuva. Apressemo-nos se não queremos chegar encharcados.

- Por mim é-me indiferente. Prefiro uma boa rega a ouvir seja quem for.

- Desculpe. Hoje tenho estado a conversar mais do que devia.

- Não disse isto por sua causa. Sinto-me estranho... apetece-me dizer barbaridades...

- Que tal acha minha mulher?

Clemente não esperava a pergunta e fez-se muito vermelho. Ele, o homem ponderado e tão sério que muitos eram levados a pensar que era ingénuo, olhou o céu como a  procurar resposta e disse:

- Vai mesmo chover.

O médico olhou-o e alargou o passo em direcção a casa. D. Madalena abriu-lhes a porta.

- Livraram-se por pouco!

Clemente beijou a mulher e o médico sorriu-lhe satisfeito. D. Madalena gracejou:

- Foste ver se os trabalhos começam por obra e graça do Espírito Santo?

- Dei a casa a teu marido.

- Deixa-o falar.

- Não te esqueças que a tua mulher tem uma palavra a dizer.

- Está tudo dito.

- Se fosse comigo não estava. A tua mulher tem tantos direitos como tu.

- Julgava-te mais compreensiva.

- Sempre fui assim e... não mudo. Clemente saiu da sala e ficaram só o médico e D. Madalena. Diogo Palhanca olhou para ela.

- Estava convencido que ainda gostavas de mim.

D. Madalena olhou para ele e sorriu, o médico continuou:

- Era extraordinário que o teu marido gostasse de minha mulher.

D. Madalena riu com prazer.

- Tu és completamente doido!

Diogo. Palhanca aproximou-se e agarrou-a pela cintura.

- Cuidado. - Disse D. Madalena afastando-se.

- Não era maravilhoso? Ele ficava com minha mulher e eu ficava contigo!

- Tu deves estar parvinho! O fogo deu-te volta à cabeça. Falas de mim e de tua mulher como se estivéssemos à venda e fossemos objectos de fácil aquisição. Não te iludas; tens de contar com os sentimentos dos outros se quiseres que compreendam os teus.

- Mas...

Neste momento entrou Clemente e D. Ma tilde.

- Mas - continuou o médico - a Matilde não se importa, pois não?

- Não me importo de quê?

- Ele é tontinho, não faças caso.

- Penso isto de muita importância para tu o minimizares Madalena.

- Continuo na minha; tu não tens juízo e estás aqui estás no «Júlio de Matos».

- De que falavam vocês afinal?

- Da casa, do que havia de ser - disse o médico com o maior à vontade.

D. Madalena deu uma gargalhada e fez o gesto de quem está louco. Clemente retorquiu:

- Nem pensar nisso, doutor.

 - Mas digam-me do que se trata - perguntou D. Matilde.

- O Doutor quer oferecer-nos o local onde vocês tinham a vivenda...

- Isso é com ele! Se o quiser oferecer eu não me oponho. O Diogo sabe o que faz e o que quer. Para mim, viver ali ou noutro lado é-me indiferente.

Olharam todos uns para os outros como se aquilo fosse uma conversa de garotos e demasiado incrível para se lhe dar importância.

- Bem, que fazemos? - perguntou Clemente.

- Vamos tomar o chá e guardamos isto para outro dia - disse D. Matilde.

- Não, não! - Opôs-se o médico - Vamos celebrar esta doação...

- Mas a que propósito? - Gritou D. Madalena.

- Basta, eu gostar muito de ti... e estar grato a teu marido por nos aceitar aqui em casa.

- Está bem, concordo disse Clemente, mas com a condição de aceitarem esta nossa casa: e... é uma troca em que vocês ficam um pouco piores... mas é pelo menos uma compensação. Viveremos todos aqui até construir a casa e depois separamo-nos.

O médico não queria, mas ao fim de algum tempo e como D. Madalena lhe pedisse ele aceitou esperando desse modo mostrar à mulher que amava que ele também sabia submeter-se às vontades femininas quando elas vinham apoiadas pela lógica e pelo sentimento, embora nele só predominasse o interesse.

 

XVI

 

 

Olhava distraidamente um velho espelho quando o médico apareceu.

- Viva o luxo!

- Ainda me arranja alguma doença de coração, doutor!

- Segundo ouvi dizer o senhor está vacinado contra esse mal.

Notei que o médico me olhava intencionalmente. Quis falar, mas pressentindo que gaguejaria, fiz-lhe sinal que estava atrapalhado com a vestimenta.

-  Aperte-me o cabeção, doutor.

- E não receia que lhe aperte o pescoço?

- Por que havia de apertar? Nem eu sou Judeu nem o senhor é Árabe! Não vejo motivos para que isso pudesse acontecer.

- Ponhamos cartas na mesa: que se passa entre si e a Leonor?

- Estou a ver que o petróleo seria menos explosivo.

- Deixe-se de artifícios e responda ao que lhe perguntei.

- Entre mim e D Leonor não há nada. Que havia de haver? - respondi com o ar mais cândido que consegui arranjar.

- Passa-se qualquer coisa. Madalena anda agitada. A última vez que lhe pedi para sair recusou-se dizendo que a cunhada estava com uma depressão nervosa muito grande. Ela pensa que há alguma coisa entre vocês.

Desta vez fiquei sem pinga de sangue. A minha cor devia ser o espelho dos meus receios porque Diogo Palhanca continuou:

- Tal é a verdade! Nem forças tem para negar. Francamente! Um padre!

Esta forma de dissociar o padre do homem exasperou-me e, em vez de suavizar aquela acusação, respondi com outra acusação.

- Toda a gente poderia falar menos o senhor. O senhor que tenta passar sobre um amigo, sobre sua mulher, sobre os seus filhos, o senhor acusa-me de leviandades!

Diogo Palhanca riu sombriamente.

- Chama-se a isto vir buscar lã e ficar tosquiado. Já nem num padre se pode confiar! O mundo está perdido! Agora, até os padres se servem dos nossos segredos para fazerem chantagem! Aonde isto chegou!

A minha vontade foi desancar o médico. Dominei-me o melhor que soube, mas mesmo assim não evitei dizer-lhe:

- O doutor desculpe, mas parece que está a ir muito além das suas funções de médico. Isto é quase um inquérito policial e eu nunca gostei... não gosto da maneira como ele está a ser conduzido!

- Não me interessa que o senhor goste ou não goste! Ofereci esta casa, não sei se sabe que fui eu...

Não o deixei acabar.

- Se é pela casa... eu saio. Não sei em que condições ela foi doada, mas... não faço questão de me mudar para qualquer outra...

- Logo vi. Era muita sorte ter um padre igual ao anterior. Já tenho informações sobre o seu passado.

- É uma pena doutor, os homens terem passado. E é triste, pois na idade em que eles tentam ser úteis, em que eles tentam redimir-se desse passado feito ao sabor do acaso, ninguém os aceita, ninguém acredita neles. Toda a gente preferiria que eles tivessem vivido agarrados às convenções sociais e à proibição total daquilo que lhes dá prazer. Como se o homem não tivesse já ganho bem o seu quinhão de felicidade, como se ele não merecesse os prazeres da Terra e tenha de morrer como um verme agarrado à terra que o trabalha, não que ele trabalha e que o engole como a qualquer outro bichinho. Eu não fujo à regra, doutor! Felizmente tenho passado.

-      E não o esqueceu totalmente.

- E devia?

- O senhor diz tudo isso, com ar de gozo, como se eu estivesse aqui só para o aborrecer! Pois saiba que... tudo o que se passar com a Leonor... me diz respeito.

- Não se passa coisíssima nenhuma! E, se passasse... antes de o senhor falar estava o Clemente que é irmão.

- O Clemente é um trouxa!

- É seu amigo.

- Isso não invalida que seja trouxa.

- De qualquer maneira é irmão.

- Vê, insiste em defender-se...

- A defesa é um acto natural... instintivo...

- Então é animal de instintos?

- Todos nós somos. Ou julga que o Homem admitiria que o tratassem como tratam se a sua animalidade, se a sua incompleta evolução não lhe cerceasse as faculdades?

- Pobre mundo que entrega a salvação dos seus elementos mais nobres a indivíduos como o senhor.

Eu olhei-o muito sério e disse-lhe:

- O doutor está a brincar ou sente mesmo o que está a dizer? Para mais, o senhor seria o menos indicado para defender um direito que o senhor é o próprio a menosprezar. Ou será que o senhor vê o argueiro no olho do parceiro e não vê a tranca nos seus?

- Lá volta o senhor ao mesmo! Já lhe respondi o que tinha a responder. O senhor é padre! Tem obrigações a cumprir, cumpra-as!

- E quem lhe afirma que não as cumpro! Para mais não tenho que lhe prestar contas dos meus actos, ou tenho?

- Tem! O senhor não pode receber quem quer, dentro desta casa! O senhor necessita de um mínimo de compostura.

- Não dramatize doutor! Primeiro tenho a dizer-lhe que nada fiz de reprovável. Isto, para descansar a publicidade da sua consciência. Segundo fique-se com esta; neste mundo, cada um de nós é um triste colapso da Natureza e aqui só sobrevivem ou os muitos idiotas ou os excepcionalmente inteligentes.

- Está visto. O senhor é o espertalhão do sítio. Mal chega apalpa o terreno e deita mão ao melhor que encontra.

- E o melhor é... D. Leonor... não é assim?

- O senhor o disse.

- Parece-me, doutor, que estamos a resvalar para um campo bastante desagradável. Confesso que não adivinho qual o motivo de tanto interesse pelos actos desse senhora e pelos meus.

- O povo murmura!

- E o senhor também. Pois fique sabendo que comete uma calúnia!

- O senhor chama-me caluniador! A mim! Diz-me isso a mim? .

O doutor avançou na minha direcção furibundo. Por sorte não perdi a calma.

- Ei! ei! Temos um novo Ferrabrás! Pois a quem havia eu de chamar caluniador se não a si que me ofende?

- A partir de hoje vai-me conhecer! Quer luta, não quer? Pois tê-la-á!

- Doutor! Doutor!

O médico não quis ouvir mais razões, deixou a minha casa cego de ira e de desespero. Continuei a paramentar-me sozinho enquanto pensava: «Não há dúvida de que sou eu quem está em falta perante o mundo. Sou eu que vivo desadaptado a este meio... sou o revoltado de braços caídos.

Revolto-me porque os homens não vivem amor.. Revolto-me porque são ignorantes.. Revolto-me porque vivem como carneiros à espera que a erva cresça para a tosarem pachorrentamente. Revolto-me porque a par e passo e no mesmo mundo existem animais com forma de seres humanos que rastejam num primitivismo pré-histórico enquanto outros se gastam nas mais desregradas das opulências. Revolto-me quando vejo espaços

de milhões e milhões de hectares de terras sem estarem aproveitadas enquanto noutros lugares os homens vivem morrendo de fome e inacção porque o local onde vegetam é insuficiente para prover ao mínimo indispensável à sua sobrevivência. Revolto-me quando observo todas essas excrecências humanas que servem de cobaias à ciência e à técnica.

Revolto-me quando se matam milhões de seres em guerras idiotas, num desconhecimento total pela dignidade humana.

Pobres consciências inconscientes! Pobres irracionais racionalizados! Por que continuareis incapazes de juntar as vossas energias ao serviço do bem e da construção? A Humanidade deixaria de ter segredos e a vossa passagem por este mundo seria o prémio e não o castigo das vossas contradições.

Perdoe-me doutor Diogo Palhanca; eu não podia calar-me, eu sou a ave ferida que

esbraceja o último alento.

Perdoe-me doutor! Eu vivo numa extrema confusão neste mundo e foi por isso que lhe respondi assim. Eu podia ter-lhe dito a verdade: D. Leonor não significa nada... não é mais do que uma alma errante... que nada quero dela, que nada mais tenho a ver com ela do que umas esmolas que vão minorar umas carências, onde não deviam existir.

Tem razão doutor. Para se vencer nesta vida temos de nos moldar às circunstâncias. Temos de nos curvar sorridentes perante o mais forte mesmo quando ele nos arranca o pão da boca e... agradecermos a Deus o nos ter poupado a vida».

Dirigi-me para a igreja desfeito por tão tristes pensamentos, e mais tristes eles se tornaram por pressentir que tinha perdido um bom amigo.

No altar elevei o pensamento ao Senhor, pedi-lhe perdão das minhas muitas faltas, tão graves que punham a descoberto as faltas dos outros seres meus semelhantes.

Quando terminou o ofício divino só eu e Deus nos encontrávamos no templo. O coração avisou-me dos dias terríveis que me esperavam.

 

 

XVII

 

 

Os ramos da cerejeira batiam nos vidros. Abri a janela de par em par.

Estava triste e piegas, uma nostalgia imensa enchia-me o coração.

O sonho e a retrospectiva do passado gritavam-me blasfémias e eu ouvia-os indiferente. Só a imagem de D. Leonor me perturbava sem saber porquê, pois não a desejava.

Aborrecido com as pessoas que não compreendiam os meus sentimentos dizia-me a cada momento: terei de me voltar para os irracionais e para o reino vegetal, talvez para eles eu seja o guia que os arranque das ignomínias por que passam às mãos dos Homens. Na adolescência o meu amor por tudo o que me rodeava era obcecante. Desde a cadeira onde me sentava até à minúscula formiga tudo me merecia respeito. Nunca desligava o rádio: sem pedir mentalmente

desculpa à voz que ouvia. E, caso estranho, se essa voz era a de Maria Leonor, também Leonor como a irmã de Clemente, sangrava de tristeza por ter de a deixar.

Aparentemente era uma criança fútil, normal, irrequieta, mas como eu sofria com os males alheios!

Quando o Cabaço Neves morreu, morri durante quatro ou cinco anos. Tinha morrido um Homem honesto. Odiei a morte, a vida, a Humanidade. Mas tudo passa e, quando me encontrei depois dos anos loucos, pensei de novo nos seres inanimados e nos irracionais. Tinha mesmo um plano para fazer falar os cães. Quanto é difícil conviver com o ser humano! Esse ser humano: Homem-Mulher, esse sublime transformador da Natureza, contraditório e difícil...

O ser humano que foi gerado pela força criadora que faz tudo o que é amor, paz, suavidade, graça, beleza, saiu hipócrita, ladrão, devasso, assassino, cobarde.

Tenho medo. Antigamente podia lutar sem preconceitos. Hoje, não. As boas intenções nem sempre são bem aceites por todos estes seres compósitos: minero-vegetais.

O homem, apesar dos milhares de anos que lhe passaram por cima, continua a ser a eterna criança de instinto animal a que não consegue furtar-se airosamente.

Quando? Quando Senhor poderemos ser os Teus semelhantes em toda a extensão do termo? Ou... mas não! Tu existes! Eu tenho a certeza... bem, Tu deves existir... Tens obrigação de existir porque Te procuramos! Oh, meu Deus! Meu Deus! Ontem fui eu o derrotado, hoje foi outro, amanhã será um terceiro... e ninguém, por mais sábio, por mais santo, chega a ter a certeza do seu valor, a ter confiança nas suas acções. Se somos uns desconfiados de nós próprios como poderemos, acreditar nos outros? Faltam-nos ainda alguns milhares ou milhões de anos para sermos decantados convenientemente e aparecermos por fim tal como Tu és: A pureza infinita da simplicidade e da Virtude.

Vê aquelas árvores que correm pelo outeiro em direcção ao vale. A quem estão elas submetidas? Ao poder discricionário do homem ou às tuas leis? Vê como elas são elegantes e simples. Por que terias entregue esta Terra  imensa a arrendatários sem finalidade, a indivíduos, de todas as espécies e condições! Tu...

- Senhor prior, senhor prior! Oh, senhor prior - gritava-me um fedelho, encharcado em suor.

- Que queres, rapaz?

- 0 senhor prior não sabe as horas!

- Valha-me Deus! Que horas são ?

- Passam cinco do meio-dia. A igreja está cheia. Cheínha! - A igreja...

- Cheínha

- Anda lá rapaz! Oh, Santo Deus! A igreja cheia! Os homens... os seres humanos são como os cata-ventos; ninguém os percebe, ninguém os entende, ora estão aos abraços, ora às facadas! Vá lá a gente entender o mundo!

- Quem ajuda? - perguntou o rapaz.

- Quem ajuda? O sacristão. Quem havia de ser?!

- Esse, já eu lhe digo que não.

- Porquê?

- Então o senhor prior não sabe? Mas o melhor é despachar-se. As pessoas começam a murmurar. Com o outro senhor prior mal se ouviam as doze badaladas do relógio da sacristia: piu; piu; piu...

- Chegam de badaladas, rapaz! Avia-te, avia-te!

- Era verdade. O senhor prior entrava pela igreja dentro, a passo direito e a missa começava imediatamente. Todos sabíamos que ao meio-dia e trinta ou meio-dia e trinta e cinco a missa estava acabada. Sim, porque era de poucas conversas. Aviava aquilo enquanto o diabo esfrega um olho. Com certeza hoje só enxergamos o almoço...

- Tu sabes ajudar à missa?

- No tempo do...

- Sabes ou não?

- Como um papagaio! Até me regalo todo.

 No tempo...

- Mexe-te! Mexe-te! Hoje vais ajudar.

- Ai, Nossa Senhora! Logo hoje que tenho os sapatos rotos!

- Isso é o mesmo.

- Ai é! As outras pes...

- Se tivesses as pernas tão desembaraçadas como tens a língua já lá estávamos! Vamos, pula!

- Pois é, mas tenho os sapatos rotos e toda...

- Mexe-te! Mexe-te! E deixa-te de palavreado se queres ganhar dois santinhos.

Eu não corria, voava. O coração teimava em arrancar-me a camisa, em rasgar a batina, mas eu corria, corria sempre.

«A igreja está cheia! Bem hajas, meu Deus, bem hajas!» - Murmurei entre dentes, enquanto o coração andava de um lado para o outro e um vermelho carregado me subia às faces.

XVIII 

No dia 15 de Outubro dirigi-me para a residência do médico. A temperatura estava agradável, o Sol mostrava as suas últimas franjas e os passaritos lembravam-me que a Natureza estava comigo. Apesar de todos estes envolventes ia cabisbaixo, amarelento.

O médico estava à janela. Desde o dia em que tínhamos discutido nunca mais o tornara a ver. Eu ia apreensivo não só pelo estado em que me encontrava como também pela reacção do médico.

Quando passei a ombreira da porta, Diogo Palhanca devia ter reparado como eu emagrecera. O meu aspecto, sobre todos os pontos, não era famoso; capa desbotada, calças ponteadas, batina a esfarelar-se nos virados, sapatos escalavrados. Os tempos não me iam de feição e a disposição para melhorar tudo isto ainda era menor. Sentia-me velho. Um desejo imenso de me tornar pó, de regressar ao caos, obcecava-me.

- Boa tarde, doutor.

- Boa tarde.

- Desculpe incomodá-Io.

O médico não respondeu.

- Eu não vinha tão tarde nem mesmo viria incomodá-lo, se não fosse a necessidade:

está escrito que precisamos uns dos outros... Hoje estava a ver que teria de abandonar o Mundo, deixar os meus paroquianos, deixar esta vida sem me ter realizado e reabilitado...

- De que se queixa? - cortou seco o médico.

- De nada, eu não me queixo de nada; as outras pessoas é que podem ter algo contra mim, ter-lhes desagradado, por qualquer motivo... qualquer falta involuntária... de dia para dia as pessoas tornam-se diferentes...

- Fale-me da sua doença - disse rudemente o médico.

- É o coração. Este coração cheira o Outono, ele sabe que é a melhor época para adubar a terra... ele sente o imperioso dever de ser útil. Hoje, por exemplo, parece querer saltar, um aperto enorme sufoca-me, sinto-me viver entre Céu e Terra.. As mãos e os pés tenho-os gelados, os suores inundam-me o rosto.

- Tem feito algum tratamento?

- Logo de manhã, quando pensei ser a minha última hora, quis aparecer limpo de corpo e alma diante do Senhor. Amornei um pouco de água e deixei-a correr sobre as poeiras do mundo.

Agora que me senti um pouco melhor dei cá uma saltada.

- O banho fê-Io reagir. Há quanto tempo sente essa impressão?

- Deixe ver... o meu coração, nunca regulou bem... nunca lhe contei... mas antes de ser padre fui homem do mundo...

Pareceu-me ver que o interesse do médico, pela minha doença, tinha aumentado.

- Talvez isso possa ajudar o diagnóstico, Lembra-se de alguns pormenores desse tempo?

- As recordações da juventude são imperecíveis. Os nossos melhores tempos! - Disse

eu, como se uma necessidade imperiosa me forçasse a falar sobre aquilo que eu há muito tinha enterrado e pretendera esquecer. O médico fez-me sinal para continuar e eu, pressionado pela inconstância e, talvez, porque pensasse ter os dias contados e quisesse assim penitenciar-me ou, sei lá, talvez por uns restos de vaidade e estupidez que não conseguira sacudir, desfiei a largos passos alguns segredos da minha vida.

- Desde bastante novo fiz grossas partidas a este coração. Enervava-me frequentemente, comecei a fumar desde miúdo, sempre bebi sem regra. As noitadas sucediam-se e os amores passavam como vendavais.

- Amores!

- Devia ter namoriscado uma centena de raparigas! E, coisa estranha; amei-as a todas de igual maneira, por todas tive sobressaltos de coração, pancadas desordenadas, excitações impossíveis de descrever...

- Essas recordações são-lhe salutares.. Está com outra cor. Conte-me tudo. Não compreendo como foi possível amá-Ias todas de igual maneira!

- Procurava-me destemperadamente, doutor.

- Seria mais lógico procurar-se entre os homens - Disse o médico rindo e talvez já esquecido dos velhos ressentimentos.

- Não, não! Só a mulher e o homem unidos podem atingir a felicidade e a partir dos quinze ou dezasseis anos eles iniciam a dança do futuro...

- Casasse!

- Eu casei. Sim, casei, e só depois de minha mulher ter dado vários passos em falso, me decidi pelo sacerdócio.

O médico não resistiu a me dizer:

- Foi a melhor maneira que o senhor arranjou para se vingar.

- Julgo não ter sido esse o meu pensamento.

- O quê, a sua mulher engana-o e não se vinga? Não a mata como quem esfarela um cão raivoso!

- Não. Abandonei-a muito simplesmente até ela desaparecer na lama e no tempo. Só depois disso entrei para o seminário...

- À procura do homem, à procura de si mesmo.

- É verdade. À procura da verdade da existência.

O médico veio até junto de mim.

- Não se canse mais. O senhor tem necessidade de se fundir, de agarrar, de ter perto uma mulher que o complete.

- Nunca!

- A sua doença é psicofisiológica. E... essa força fisiológica pesa muito sobre o psíquico. Ou o senhor sai de padre... ou bem podem, pais e maridos, acautelar as filhas e as esposas.

- Nunca! Preferia acabar com os meus dias! Nunca trairei a minha missão de padre!

O médico olhou-me de maneira desagradável.

- Já o auscultei, não vejo mais nada que lhe possa causar esses suores frios e essas indisposições.

- Quer dizer...

- Quero dizer que o senhor é um insatisfeito.

- Eu sei, eu sei. Sei que nasci para amar o mundo, para amar as pessoas, não esta ou aquela em especial, mas todas, todas.

- Então o casamento...

- Foi uma nova tentativa para a explicação do mundo onde entrei sem ter sido consultado.

- Se fosse... recusava.

- Para lhe falar francamente... julgo que sim. Este mundo é uma triste desilusão para os seres que detêm o raciocínio. Se não tenho ido para o seminário, estava um farrapo.

o médico olhou para mim e mais uma vez riu.

- Não se pode dizer que esteja muito melhor...

- É. .. a doença. Tira-nos a vontade de, cuidar do corpo.

O médico perguntou-me insidiosamente:

- Como conduz as suas excitações.? Está claro que se excita .

- Reprimo-as.

- E onde deixa o sémen? Guarda-o em tubos de ensaio para moldar o homem ideal?

- O ser humano bem precisa de uns retoques.

- Vê. O senhor é o próprio a não acreditar em Deus! Se acreditasse, sabia que nada mais há a fazer! Deus criou o homem na sua perfeição máxima!Não pode modificar o que Deus assim desejou! Deixe esta profissão ou então... escolha uma confessada e...

- Nunca!

- Eu não lhe posso fazer mais nada.

- Nem receitar uns comprimidos.?..

- Nem receitar comprimidos. Aquilo que o senhor necessita não é de comprimidos... ,

- Peço-lhe, doutor: nunca mais me torne a falar nisso. Não sei se sabe o que faz um cão que teve o azar de cair na lama e consegue salvar-se depois de um esforço imenso.

- Deixe-se de contestações inúteis; não sei o que faz ou o que faria um cão em semelhantes circunstâncias e, nem me interessa saber! Eu trato seres humanos! E o senhor só faz aquilo que quiser, eu não o obrigo!

- Os homens e os cães passam por vicissitudes muito semelhantes: quando um cão sai da lama nunca mais lá volta! Pode estar certo: nunca mais lá volta!

- O senhor é teimoso! Não me interessam os cães! Para rebater essa teoria, mal equilibrada, bastava dizer-lhe que há indivíduos que são presos seis e sete vezes pelo mesmo delito! O senhor só tem um caminho a seguir. Se quer, quer, se não quer...

-    Prefiro um estimulante...

- Estimulantes tem o senhor a mais. Vou receitar-lhe um tónico neuromuscular e vitamina B1.

- Obrigado, doutor.

- Escusava de gastar dinheiro na farmácia. Eu aconselhava-o...

- Bem haja, doutor. Quanto lhe devo?

- Cento e cinquenta escudos.

A resposta deixou-me perplexo.

- O o... do... doutor desculpe, mas a falar francamente... neste momento não tenho dinheiro.

- Nós os médicos, não temos o supremo bem de poder subsistir do ar e de boas palavras...

- Eu lhe pagarei, doutor, esteja descansado.

- Aconselhava-o a voltar ao tempo...

- Nunca!

- Não falo do que está a pensar. Falo da côngrua, dos baptizados, dos casamentos que o senhor deixou de receber.

- A minha palavra não tem retrocesso.

- Diga antes: o seu orgulho. Está bem; adeus meus honorários.

- Os cento e cinquenta escudos cá lhe virão ter.

Afastei-me rapidamente. Os pensamentos sobre a conversa que tinha tido fizeram-me esquecer que estava doente; avancei até à igreja. O silêncio daqueles muros, a quietude das imagens influenciou o meu espírito e o meu corpo, ambos caíram no suave nirvana e voltearam pelo infinito até à saciedade.

 

XIX

 

Encontrava-me no patamar da casa, olhando nem sei bem o quê, quando tive a sensação de que alguém me observava. Voltei-me e dei com D. Matilde.

- Despertei-o padre? - disse-me ela sorrindo.

- Não... não... - murmurei num tom de voz imperceptível.

- Não vale a pena atrapalhar-se. Toda a gente sabe que temos um poeta no meio destas serras...

Fiquei aterrado com a afirmativa. Um padre poeta nunca foi visto com olhos muito sérios pelos seus paroquianos. Sentia já o primeiro rasgão na minha capa santificadora. Fora sem dúvida o médico ou D. Leonor quem espalhara a notícia pois só eles conheciam aquele pequeno segredo.

- Escusa de se preocupar: com estas insignificâncias padre. Venha para dentro... Precisamos muito de conversar.

A figura do médico entrou-me no espírito e susteve as minhas regras de cortesia. Dona Matilde agarrou-me suavemente pelo braço e, aquele contacto, volatilizou o terror e normalizou as minhas reacções:

A mulher do médico, elegantíssima no seu vestido de lã azul claro entrou em minha casa como , de sua casa se tratasse. Eu tentei dissimular as inquietações fazendo-me as mais disparatadas conjecturas sobre aquela visita.

- Corto à direita? - perguntou D. Matilde.

- Sim, sim! Faz favor.

Olhei a mulher do médico. Um arrepio impertinente percorreu-me o corpo e eu, mais uma vez, como tantas e tantas outras, senti vergonha de mim, uma vontade imensa ,de desaparecer, de vomitar a fealdade das minhas tentações. A minha dor, gritou dois versos escritos algures:

 

"Porque não fui gerado

À medida do meu pensamento?!»

Também eu pensava que todas as minhas faltas eram fruto de um corpo mal  equilibrado. No meu pensamento sempre desejei ser puro, bom, generoso e sempre fiz, sem nunca compreender porquê, precisamente o contrário.

D. Matilde, de formas bem proporcionadas, cabelo loiro, estava apetitosa de beleza e simplicidade.

- Não esperava uma importuna logo de manhã!

- A senhora nunca é importuna. Desde que lhe possa ser útil...

- Um padre é sempre útil.

- Há quem discorde.

- Não admira. Estamos no século das máquinas. Daqui a pouco elas substituirão tudo... até mesmos os padres e, quando tivermos necessidade de arejar o espírito... falaremos para a máquina e ela terá uma solução para cada caso...até para os mais difíceis, não concorda? Se elas, já agora, dão respostas tão exactas...

- Sim, de certo modo...

Eu não tinha a certeza de coisa alguma. D. Matilde metia-me medo, sentia que qualquer indício de solicitude para com ela lhe faria mal, a ela... ou a mim... por esse motivo não desejava que aquela conversa fosse além de perguntas e respostas rápidas: todo eu tremia e no rosto concentrava toda a tensão.

- Está aborrecido?

- Não, não! De modo algum!

- Encontro-lhe um ar triste... não se sente bem? O tempo começa a esfriar... ninguém dirá que estamos no princípio do verão... até o tempo, as estações do ano começam a ser inconstantes... antigamente era o homem que imitava a Natureza, hoje é a Natureza que tenta adaptar-se ao Ho- mem. Que pensa o padre?

D. Matilde poisou a mão esquerda sobre o meu braço. Tive uma leve tontura e deixei escapar um sussurro ininteligível.

- Meu Deus! Que pálido está!

- Estou bem, estou bem! - respondi apressadamente.

- Não está nada! Vou-lhe fazer um pouco de chá - disse D. Matilde encaminhando-se para a cozinha.

- Não! Não! - exclamei tentando impedi-la, porém, como não lhe queria tocar, não tive outra alternativa senão aceder à sua vontade. Os dois preparámos as bebidas.

- Conversamos aqui - disse a esposa do médico poisando a chávena sobre a mesa da cozinha.

- Mas...

- Não diga nada. Aqui estamos mais confortáveis. Esta parte da casa é a mais quente, não acha?

- Isto é... rudimentaríssimo!

- Sinto-me bem, é o essencial. E o padre?

Não respondi, todos os meus pensamentos estavam sufocados por orações, muitas orações que se atropelavam a esmo, numa confusão indisciplinada.

- Padre! Não me ouve? O senhor é sempre assim quando recebe visitas? - disse D. Matilde rindo. - A sua cor é cada vez mais pálida... um pálido terroso, não, o senhor não se sente bem. O melhor é deitar-se... venha, vou abrir-lhe a cama.

- O quê? Como? Meu Deus! Meu Deus, tem misericórdia de mim! - gritei desvairado caindo de joelhos e implorando piedade.

- Que é isso padre? Não vim num dia razoável.   Sossegue.

- Não me toque, D. Matilde!

- Não me diga, padre! Coitado. Só agora compreendo. O senhor está assim por minha causa! Mas isso é inacreditável! Levante-se. O seu libido obceca-o em extremo. Embora não devesse dizer-lhe... tenho a impressão que o senhor escolheu mal a carreira... Um padre tem de ser um homem forte.

- Perdoe-me D. Matilde. Estou num dia horrível! A senhora não faz a mínima ideia. Ah, este corpo! Este corpo!

- Venha cá.

Eu fui tremendo. D. Matilde agarrou-me por um braço e levou-me para a salinha de estar. Depois de nos sentarmos um em frente do outro, a mulher do médico disse-me:

 - Olhe-me bem de frente, padre.

 Olhei-a fixamente e D. Matilde ficou paralisada; eu sentia os meus olhos expelirem chamas e vi, pela primeira vez, a mulher do médico vacilar. Era isso de que eu tinha medo, eu, era a cobra nojenta e vil que absorve os encantos de quem a rodeia. Os meus desejos eram transmitidos ao objecto desejado e perdiamo-nos num amor breve, passageiro... que em mim se transformava em sonho agradável... Antes de servir a Deus eu dizia-me rindo. «Tu tentas encontrar a explicação do mundo nos lábios lindos de uma mulher».

- Tem razão, padre, disse D.. Matilde sacudindo violentamente a cabeça, o senhor é

muito perigoso ...é...tentador... é... poeta...agora compreendo o seu medo. O senhor tenta esconder a todo o custo o ponto nevrálgico, mas há dias em que a tentação é mais forte e soçobra...

- Perdoe-me, D. Matilde!

-  Por que se fez padre?

Contei-lhe toda a verdade. Quando acabei D. Matilde disse-me:

- Foi um grave erro que o senhor cometeu. Desculpe desiludi-lo, mas deve deixar esta profissão. Eu vinha para lhe falar de mim, dos meus erros, dos meus pensamentos, para que me ajudasse, mas, o senhor, precisa de muito mais ajuda do que eu. Quando me viu...

- Não diga mais...

- O senhor não pensou em mim como uma ovelha do seu rebanho, uma ovelhinha que precisa de ajuda e lhe pede os seus conselhos, a sua amizade desinteressada...

- Pelo amor de Deus...

A mulher do médico prosseguiu a sua ideia, indiferente à minha súplica.

- O senhor viu sim, uma ovelha que se apresentava à tosquia! Uma ovelhinha tresmalhada a quem o dono não trata com as devidas atenções e recorre a estranhos para sentir calor humano. Uma ovelha como todas as mulheres que o senhor encontra e que nada mais querem, segundo o seu pensamento do que...

- Por favor! - gritei escondendo a cara entre as mãos...

- Os homens, padre, mesmo os mais santos são animais interesseiros.

Bateram à porta. D. Matilde e eu ouvimos, olhámos um para o outro, mas não fizemos um único movimento. Quem era conhecia a casa e entrou. Tanto eu como ela aconchegámos as roupas. Os passos vinham em direcção à sala. Eu quis falar, abri a boca, mas não me saiu qualquer som. Reconhecera o andar do visitante e empalidecera. No meu espírito as ideias não se coordenavam. Diogo Palhanca apareceu à entrada. Eu não me consegui levantar e apontei imediatamente a cadeira onde se encontrava sua mulher. Este ficou lívido.

Durante alguns segundos um silêncio agressivo pairou sobre a sala. Depois o médico, voltando-se para a mulher, com evidente animosidade gritou-lhe sem o querer mostrar.

- Que fazes aqui?

D. Matilde tinha-se recomposto do susto. Ela compreendeu bem que tinha sido uma grave imprudência ter vindo a minha casa. Esperava a pergunta do marido e respondeu sem azedume.

- E tu, que fazes aqui?

- Não tens nada com isso! Responde ao que te perguntei e fá-lo de maneira convincente.

- Chegou o senhor inquisidor... quer uma vítima e...

- Não quero vítima nenhuma! Quero a verdade! - gritou desesperado o médico, enquanto eu não conseguia encontrar uma ideia lúcida. Só D. Matilde aparentava calma.

- Já sei a que vieste. Vieste pedir conselhos, não foi? Tivemos os dois a mesma ideia. O padre é de opinião que devemos separar-nos quanto antes.

- Eu!?

- Estava a brincar, padre. Mas o senhor ficou tão encolhido que meu marido havia de pensar...

- Não sejas...

- Idiota. Já sei - disse a mulher do médico acabando a frase.

- Doutor...

- Não, não, padre! - interrompeu D. Matilde, vou dizer toda a verdade a meu marido.

- Não preciso. O que vi, basta-me. - Respondeu o médico com os olhos a quererem-lhe saltar das órbitas.

- Não viste coisíssima nenhuma! E se imaginas que viste desengana-te, porque a única coisa que vim fazer a casa do padre foi saber qual a melhor solução para o nosso caso. E ele...

- Um advogado parecer-me-ia mais conveniente e com menos riscos...

D. Matilde fingiu não perceber a alusão.

- Eu preferi o padre. Ele conhece-te, eu conheço-te... talvez ele compreendesse aquilo que nós não compreendemos e nos abrisse os olhos...

- Já abriu. E tu... o melhor é ires andando.

- Não queres saber a sua opinião.

- Desaparece! - gritou-lhe o médico. Depois dirigindo-se a mim, cujo peso moral não me deixava sair da cadeira, agarrou-me pela camisa, levantou-me dois palmos, disse-me duas obscenidades e atirou-me desamparado sobre o meu suporte que se desconjuntou e me fez estatelar no chão. O médico nem para trás se dignou olhar e saiu furioso. Naquele ridículo, estado eu pensei desapiedadamente:

«Este tipo é doido! Fica transtornado por ver sua mulher em minha casa e acha muito natural  ele sair com a mulher do amigo! Bolas! Bolas! Eu sou padre! Ele devia compreender isso! Não podia suceder nada de mal a D. Matilde! Foi injusto, foi injusto!» Depois, mais cheio de coragem gritei enraivecido, mas infelizmente pouco convencido:

«O médico não tinha razão! Não tinha razão!»

 

xx

 

 

Ia junto às tílias que bordejavam a estrada quando Clemente me falou.

- Também posso participar no monólogo?

-.Desculpe, não o tinha visto.

- Vai para baixo?

- Vou.

- Acompanho-o se não lhe fizer diferença.

- Terei até muito prazer.

- Como deve ter notado, sempre fui contra o “diz-se e o fez-se” a tudo o que corra sem consistência, mas ontem o próprio doutor Palhanca falou comigo acerca do senhor...

Eu continuei calado e ele prosseguiu:

- Parece-me que encontrou a Matilde em sua casa...

Não ia jurar, mas tive a sensação que Clemente, ao contar-me a pretensa desgraça do amigo, sentia prazer em que isso tivesse acontecido.

- Que mal há nisso? Eu sou padre...

- Não é costume um padre receber em sua casa senhoras. E o padre é a segunda vez que assim procede... o povo começa a murmurar.

Pensei na irmã de Clemente e sucedeu-me o que eu nunca acreditaria: argumentei atacando quem desejava defender:

- Oh, o povo! O povo é uma grande cabeça cheia de vento.

- Não diga isso! O povo não se pode menosprezar. É uma força. Se ele fala é preciso prestar-lhe atenção.

Sem saber porquê, sentia necessidade de me defender e tinha de o fazer nem que para isso tivesse de amesquinhar o mundo.

- O povo continua a ser um rebanho de carneiros: ele vai para onde o tocam.

- Desconheço-o, padre, o senhor não tem razão de falar assim. O povo estima-o. Mas como todos os indivíduos, menos cultos, ele acredita em tudo aquilo que lhe impingem. Basta que alguém lhes fale ao coração, lhes diga meia dúzia de futilidades para que ele se comova, se renda pelo sentimentalismo.

- Labregos! São incapazes de perder trinta minutos por dia a ler um jornal ou um bom livro, mas passam horas esquecidas a falar na vida alheia! Isto é... asqueroso!

- É o mal das terras pequenas.

Eu estava desesperado e continuei a falar intempestivamente:

- É o mal de todas as terras, encontramos mexeriqueiros em todo o lado.

- É o julgamento dos homens, padre!

- É o julgamento das víboras! Nenhum homem pode julgar o seu próximo sem provas de culpabilidade.

- As aparências...

- As aparências não passam de aparências e nada confirmam. «Alegatio et non probatio, quasi non allegatio».

- A Igreja, que o senhor serve, muitas vezes condenou só pelas aparências...

- Estamos nos fins do século, XX!

- A crítica é... digamos... um aviso para que a pessoa se emende.

- Mas emendar de quê, não me diz?

- Quando alguém se exalta é... porque tem culpas no cartório, padre.

- Então o senhor não acredita que eu tenha recebido sua irmã e D. Matilde só para bem espiritual?

- Acredito. Dou-lhe a minha palavra de honra que nunca me passou pela cabeça que fosse por outra coisa. Mas veja; o meu pai, os meus irmãos e as minhas irmãs têm martirizado Leonor. O doutor Palhanca, esse então, está pior que estragado com a mulher e com o senhor. Não lhe digo nada. Ele tem um feitio dos diabos! .

Olhei Clemente e pensei na mulher. Dar-se-ia o caso dele desconhecer as relações do amigo com D. Madalena, ou ele saberia toda a verdade? Estive tentado a farpeá-lo, mas algo me avisou que cometeria um tremendíssimo erro.

- Voltamos? - perguntei-lhe.

- Como quiser.

Ele retomou a conversa.

- Diogo Palhanca é capaz de dar a camisa, mas quando toma alguém de ponta é incorrecto e às vezes ultrapassa-se.

-  Isto é diferente. Eu sou padre. Estou acima de qualquer suspeita. A minha missão é de paz... fraternidade...

- O médico não pensa assim.

- Mas que ideia! Leva-se assim uma pessoa ao cadafalso?

- O médico, está desesperado e o melhor que o senhor tem a fazer é afastar-se.

- Como, afastar-me?

- Mudando de paróquia...

Instintivamente pensei: «Começas a pagar os erros da juventude» depois interroguei-me mais alto: «Mas a juventude terá de pagar pelos seus erros?»

- O padre disse alguma coisa?

- Não, não!

- Eu sou amigo do Palhanca e sei como ele reage. O senhor irá receber ataques de todo o género. Ele não lhe perdoa. A primeira vez que tem uma questão com alguém, esquece com facilidade e é capaz de tentar a reconciliação por sua iniciativa, mas na segunda toma-lhe um azar de morte e enquanto, não destroi o adversário não o larga... se fosse ao padre pedia a transferência daqui.

- Não posso.. Não estou acostumado a voltar a cara ao perigo, não será agora, perto dos quarenta e cinco que vou começar.

- Se eu fosse padre e mesmo não temendo o perigo, afastava-me.

- Porquê?

- Por causa do escândalo.

- Que escândalo!

- Eu sei que esta teima entre um e outro só pode terminar em escândalo.

- E que tem isso, se vem ao de cimo a verdade?

- A verdade vem misturada com muita lama e não só acabam os senhores por ficar irreconhecíveis como salpicará as outras pessoas. . .

Eu disse para mim: «És capaz de ter razão e, consciente ou inconscientemente, defendes-te». Contra o que devia, continuei combativo:

- Para os homens se conhecerem é necessário mostrarem-se tal como são.

- Padre, isso não adianta. Instintivamente, o homem esconde-se. Como amigo dos dois...

- Aconselhava-me a que abandonasse a terra.

- Exactamente.

- Lamento não lhe fazer a vontade.

- Oxalá não se arrependa. Pense que não é só o seu orgulho que está em jogo.

- Está enganado! Eu não ponho orgulho nenhum nesta querela que não provoquei.

- Como padre, devia ceder.

- Embora seja padre... não sou hipócrita nem cobarde.

- Eu não pratico religião, no entanto fui criado no seio de uma família católica e abandonei-a por ver o cinismo, a hipocrisia, a subserviência dos seus ministros para atingir situações que tinham planeado de antemão...

- Aí está! Eu não abandonarei o meu posto por isso mesmo!

- O senhor não me deixou acabar. No entanto, com o decorrer dos anos observei que esse cinismo, essa hipocrisia, essa subserviência são-lhe necessários para sobreviver. Sem estes predicados como poderiam estar a bem com Pedro e Paulo?

- É um erro pensar assim.

- Padre, quer um conselho? Não tente modificar os alicerces, do edifício onde o senhor não é mais do que uma simples janela. .. deixe-o continuar como ele é, há perto de dois mil anos.

- O Clemente esquece-se que as pessoas evoluíram. . .

- O mundo pode estar muito diferente, mas não há ninguém que não tenha necessidade de sentir o mistério nas instituições que advogam a criação do mundo por um Deus desconhecido.

- Se...

- Espere. Desde que transformem o ideal em real, tirando aos representantes desse ideal uma auréola de santidade de que devem estar rodeados mesmo que sejam uns patiforiozitos. A partir desse momento, tudo cai: mesmo os maiores crentes sofrem o embate e a muitos deles acontece-lhes como eu... vão por água abaixo. Padre, uma retiradazinha estratégica não me parece nada mal; não envaidece o vencedor nem envergonha o vencido. Acredite que o estimo muito e que tenho medo do que possa advir de tudo isto.

- Se o senhor não é crente, admira-me muito como toma a peito um assunto destes...

- Não é necessário ser-se crente para saber distinguir entre o mal e o bem. Prezo muito a ordem e a amizade entre as pessoas, para poder pensar que alguém vai alterar essa harmonia.

- Mas...

- A religião é necessária padre. Ela é a esperança do povo e o povo tem necessidade desse sedativo para dominar o instinto do mal. Talvez um dia, os governos possam substituir, com vantagem, esse ideal irrealizável e todas as pessoas vivam felizes, quem sabe?

- Posso apresentar os porquês da minha atitude?

- Diga, diga. É muito difícil dar vista a um cego... mas estou convencido que não é impossível. . .

- Eu não sou cínico, não quero tornar-me cínico; não sou hipócrita, não quero tornar-me hipócrita; não sou subserviente e não quero estar sujeito a quem quer que seja desde que essa pessoa não tenha mais capacidade que eu. Por estes motivos continuarei aqui, sejam quais forem as consequências.

- É lá consigo, padre. Pela minha parte... Limpo daí as mãos.

 

XXI

 

 

Hoje sucedeu-me uma coisa desagradável:

Senti-me mal disposto e fui dar uma volta pela «Estrada Nova». É a divisória entre a cidade, a montanha e o vale.

Num sítio pouco frequentado saiu-me à frente o Zarolho, um indivíduo de mau carácter e temido em toda a região.

- Boa noite - Disse-me ele.

Eu não o ouvi, tão distraído ia com os pensamentos. Essa foi a minha única falta, o homem começou a insultar-me, a tentar armar zaragata sabendo antecipadamente que levaria a melhor.

- Julga por ser padre, qu'é mais qu'os outros? - Disse-me ele pondo-se à minha frente. Eu afastei-o suavemente do meu caminho com a mão esquerda, mas ele deu-me tal pancada com a sua direita que eu cambaleei.

Continuei calado e tentei prosseguir, mas ele mais uma vez o impediu.

- Ah! Ah! O valentaço do padre quer medir forças, hem!?

- Não quero nada. - Respondi-lhe o mais cordatamente possível...

- Não quer?! Isto é uma terra sossegada! Ouviu seu barraco..! Ou você se vai embora ou eu o meto no cano de esgoto, que é onde você merece estar... seu bandalho!

O homem metia-me medo e as pernas tremiam-me. «Ainda se por ali passasse alguém». Pensava eu, pedindo a Deus que me ajudasse naquele transe. Mas, nem viva alma pelas cercanias.. De um lado o castelo silencioso, sorumbático, indiferente aos diferendos entre os homens; do outro o vale com o ruído característico do anoitecer.

- Deixe-me passar. - Disse-lhe eu com o tom de voz mais firme que pude arranjar. Todo eu tremia perante aquele bruto. Um corpanzil enorme. Um monstro de gordura, de estupidez e de maldade, tudo muito desenvolvido.

- Passar? Ah, ah, ah! Vou-te tirar as cuequinhas meu menino, ai isso é que vou!

- Esteja quieto senhor Zarolho! - Disse-lhe eu tentando afastá-lo de mim e do cheiro nauseabundo a suor e a vinho.

- Senhor Zarolho! Ah, ah!, ah! Tu sabes muito! - disse ele agarrando-me pela aba da batina e. fazendo-me elevar nos bicos dos pés.

«Meu Deus, meu Deus!» - Gritava desesperadamente a minha consciência. Por outro lado eu que fora sempre tão fanfarrão antes de ser padre, eu que entrara em muitas lutas sem receio, acobardava-me: Só desejava fugir daquele brutamontes. Tenho mesmo a certeza de que desmaei durante uns segundos e que só não caí porque ele não largou o pedaço da batina onde tinha lançado as garras.

- Dou-te dois dias para desandares da cidade. Percebeste?

- O se... senhor...

- Escusas de me tratar por senhor, meu safardana! Se eu lá fosse à porta pedir-te alguma coisa tratavas-me por tu e sem a menor consideração! Agora, como estás aqui sem defesa, desfazes-te em salamaleques. Deixa-te de cinismo, seu vigarista! Ou prometes que sais da cidade ou eu racho-te ao meio como se fosses um cão!

Eu tremia tanto que senti vergonha de mim próprio.. Estava cada vez mais escuro e senti que tinha de ceder perante a ignorância. Nisto ele largou-me a aba da batina e agarrou-me um braço com tal força que tive de fazer um esforço sobre-humano para não gritar de dor. Em seguida obrigou-me a ajoelhar e fiquei com um joelho em terra, outro dobrado, e foi nesta ridícula posição que tive de continuar a ouvir as exigências daquele selvagem.

- Sais ou não sais?

- Como não lhe desse a resposta tão rápida como queria, ele deu-me uma joelhada tão forte que eu tive de pôr a mão direita no chão para não me desequilibrar. ..

- Veja o que está a fazer! - Balbuciei.

- Estou a perder a paciência, seu vendedor de baleIas! Seu provocador de mulheres! Se fosse a minha eu partia-te!

- Senhor Zarolho...

- Vá chamar senhor ao... inferno! Se me tornas a chamar senhor dou-te um pontapé pelas goelas que nunca mais tornas a enganar ninguém! Partes amanhã ou não?

- Não posso abandonar a paróquia sem ter quem me substitua.

- Não m'interessam razões!. Tens dois dias. Ou julgas-te protegido pelo teu Deus? Ah, ah, ah! Grande corja d'aldrabões!

Apesar do terror que aquele zaragateiro me inspirava, consegui dizer de uma só vez e sem titubear:

- Eu respeito as suas ideias, o senhor deve respeitar as minhas.

- Ideias! I-de-i-as! Vocês nunca conheceram mais do que aquelas de quem vós andais a lamber os pés. Sois uma súcia de salamandras, de lambões, de vigaristas! Piores do que eu que muitas vezes tenho de roubar e de enganar para que os meus filhos não morram à fome! Vocês enganam por hipocrisia! Estão sempre à espera de recompensa. Fazem figura de bons com dinheiro dos outros! Canalhas!

- Senhor...

- «Caluda»! Nem mais pio! Ouvi dizer que te tinham dado casas para distribuíres pelos pobres há mais de um ano! Onde estão essas casas e essas terras? Estás à espera que apodreçam para depois as entregares?

- Uma é para si, já lá tenho o nome.

O Zarolho cuspiu para o lado.

- Se julgas que com isso me compras, estás enganado! Prefiro viver como vivo, numa choça, do que andar, como tu, uma vida inteira, acorrentado a essa organização de fanáticos, que só vê o homem dentro de uma igreja. A adorar o quê? Não me dizes?

- Deus.

- Deus é tudo isto que vês à tua frente! Num é preciso ir a uma igreja para ser bom... num é Preciso bater com as mãos no peito, dez vezes por dia, para ser justo, para se olhar para o seu semelhante como se olha para um réptil e num fazer nada para lhe modificar a vida... canalhas! Num estejas a olhar para mim com esses olhos... eu bem te percebo! Mas fica sabendo que sou assim como sou porque nunca ninguém teve piedade de mim! Toda a gente faz de mim burro de carga. Agora... aguentem os coices! Se eu soubesse ler... tenho a certeza que num era assim... foram vocês os culpados... vocês que dizem que protegem os pobres! Dizem! Mas não fazem! Corja de salafrários! Agora odeio Deus e os homens!

 - Senhor...

O Zarolho levantou a manápula e deu-me uma bofetada com tal força que o sangue saltou-me do nariz em jacto. Isso cegou-me de tal maneira que não medindo a diferença entre aquele corpanzil e a minha frágil envergadura, num salto como nunca me julguei capaz, atingi o Zarolho com uma cabeçada em cheio na cara. O homem caiu desamparado sobre umas rochas. Não me preocupei mais com ele e fugi a sete pés daquele lugar.

Soube no dia seguinte que o Zarolho tinha ido ao hospital tratar-se de duas feridas profundas na cabeça e que tinha jurado «tratar-me da saúde» logo que tivesse oportunidade.

Não sei se era por estar entre pessoas, ou se por estar noutras condições de espírito a ameaça não me atemorizou, fiquei sim, aterrado quando pensei no que tinha feito: deixara um homem, um irmão meu, estendido no meio de rochas, sem dar acordo de si, podendo morrer enregelado ou podendo ser atacado pelos lobos..., só me preocupei comigo... procedi tal como ele e não fui capaz de avisar alguém para ir verificar em que condições ele tinha ficado.. Como sou baixo e vil, murmurei, arrependido do mal que podia ter causado.

 

XXII

 

Durante quinze dias não se falou noutra coisa. A cidade parecia um fogo de artifício. O médico voltou contra mim todos os seus conhecidos e parecia um pregoeiro de banca montada e taxas em dia.

- Não o defenda! - gritava ele para o Clemente, o padre é um canalha! Deixou o Zarolho às portas da morte!

A sua voz era forte e tão indicativa do fim que ele queria atingir, que poucos se voltaram para o ouvir.

- Tenha paciência, todos conhecem o Zarolho e ninguém duvida que foi ele quem se meteu com o padre.

- Lá está você a defender aquele tipo! Aqui não está em causa o atacante e o atacado! Ele devia ter comunicado ao hospital, aos bombeiros ou a quem quer que fosse que estava um homem ferido em tal ou tal sítio, meta isso na cabeça, homem! Se não fosse o Serralho, tê-Io encontrado eu queria ver em que lençóis estaria metido o padre a estas horas! Não! Este tipo precisa de um correctivo, ai isso precisa!

- O doutor se me permite...

- Diga. Mas convença-se que ele cometeu uma falta inqualificável!

- Em parte.

- Em parte?

- Ele devia ter ficado nervosíssimo. Não sei como tudo se teria passado, mas depreendo que o Zarolho o atacou, ele defendeu-se nunca pensando derrubar aquela trave... ficou em estado de choque.

- Não, não me diga que o pobrezinho ficou traumatizado.

O Vaz Antunes, com o seu ar muito sério, comentou:

- Está certo. O Clemente queria dizer isso por outras palavras: o padre com o susto ficou todo...

- Oh, pá, não sejas parvo, deixa-te de graçolas porque o assunto é mais sério do que parece.

Todos riram excepto o médico.

- Vocês podem-no defender...

- Nós não o defendemos! - atalhou o Vaz Antunes - Ninguém disse que punha as mãos no lume pelo padre! Mas daí a comparar o Zarolho com o padre, que mais parece um pau de virar tripas, vai uma longa distância!

Mais uma vez eles riram pois o Vaz Antunes, pequeno mas bem constituído, era o protótipo do indivíduo sempre bem disposto para quem a vida corria sobre rodas. Casado há quatro anos, tinha quatro filhos. Ele e a Zézinha pareciam viver só para o amor e para o trabalho. Ninguém podia estar triste ao pé dele.

- Lá estás tu! Eu queria saber se isto acontecesse com um teu empregado, o que fazias?

- Que fazia? Essa é boa! Ninguém o mandava meter-se com o padre!

- E quem te diz que não foi o padre que se meteu com ele?

-- O padre? Tomara ele que o deixassem em paz!

- Vê-se mesmo, que não pensas em mais nada senão encher a barriga e...

- Ó filho, não achas que já temos aborrecimentos de sobra para nos preocuparmos com um tipo como o Zarolho?

- É homem como tu, tem filhos como tu!

- Já sei, já sei; come e dorme como eu, etc. e tal, e eu e outros como eu é que somos malandros que não ajudamos o pobrezinho, que não o tiramos da lama, etc., etc., etc. Pois fica sabendo que esse animal, pois não tem outro nome, já o empreguei na quinta umas nove ou dez vezes. Sabes o que faz? Trabalha três dias por semana e o resto do tempo diz que alombe eu! Três dias dão-lhe para matar a fome, e os outros quatro passa-os de costas ao alto. Queres que faça mais?

- Faz o que entenderes. O certo é que o padre não é melhor que o Zarolho: ele é um abúlico. Sei isso muito bem! Ele anda faminto...

- A quem o dizes... ele está uma carga de ossos!

Gargalhada geral.

- Não gozes.

O Guterres de Carvalho entrou na conversa. .

- Parece-me que tens queixas do padre?

O médico, corou.

- Quem não tem! Dei-lhe toda a minha amizade, recebi-o de braços abertos e ele faz-me isto!

- Já sei; não te deixa ler os livros que lá tem em casa e ainda por cima o Zarolho é teu amigo.

- Também tu? Todos os homens contam para mim.

- Então deixa o padre em paz!

- Que santinho me saiu o rapaz. Pois convosco ou sozinho ele tem de se haver comigo!

- Bem, se tu vais, e como dizes que ele anda a sair dos eixos, tens o meu apoio, mas só para uma partidazita.

- Está calado. - disse o Vaz Antunes - Tu nem apoias nem desapoias, aqui limitas-te a ouvir o grande conselho e só depois botas palavra.

- Falou sua excelência o senhor bacharel, o melhor defensor de inocentinhos; - disse o Guterres dirigindo-se ao Vaz Antunes mais novo. - Pois fica sabendo; se o doutor quiser, vamos capar o padre. . .

Todos riram e o médico respondeu:

- Era o que precisava.

- Só para tirar conclusões ainda lhe fazia uma barrela, mais não - disse o Bacharel.

- Já mudaste de ideias? - perguntou Clemente.

- Não mudei, mas estou disposto a fazer uma criancice. Já há tanto tempo que me sinto homem, que tenho medo de envelhecer de um momento para o outro. Ora para que isso não aconteça assim de repente, também quero entrar na brincadeira.

- Mas isto não, é brincadeira! - Disse o médico muito sério. Se todos estiverem de acordo vamos dar-lhe uma lição que lhe ficará para toda a vida. Com ela, tenho a certeza que ainda este mês, o padre vai procurar outra paróquia onde o aceitem tal como ele é.

- E nós ficamos sem padre? - perguntou o Guterres de Carvalho.

- Faz-te uma falta!

- Que fazemos?

- Vamos circuncisá-lo - disse o médico muito convencido.

- Eu estava a brincar. - Disse o Guterres rindo.

- Não estou eu!

- É a única maneira de se acabar com um autêntico perigo público.

- Isso, pode trazer graves consequências!

- Não traz. Eu sei o que faço. Se me derem carta branca prepararei tudo.

- Como?

- Não importa como. Deixem isso a meu cuidado e quando tiver tudo pronto convido-os. Vai ser uma garraiada com um touro velho. No fim, proponho uma ceata na minha quinta. Que dizem?

- Caro doutor, és um anjo. Mas a ceata não podia ser antes da garraiada?- perguntou o Vaz Antunes, mais velho.

- Não. Temos de fazer tudo com o espírito limpo. Se vocês não quiserem ir digam, que eu levo uns criados da quinta e aquilo não falha.

- Tenho pena de não poder assistir- disse Clemente, mas vou amanhã para o Porto. - Contudo queria lembrar-lhes que o padre é um homem e... nenhum homem se pode...

- Já sabemos o resto - interrompeu o médico. - Só vai quem quer. Eu sei que o Guterres parte daqui a uns dias para África e os Vaz Antunes estão muitas vezes em Lisboa. Se cá não estiverem tanto pior para vocês. Alguém há-de ir. O que ele não fica é a rir-se do que tem feito. Oh, rapaz, quanto devo?

- Paga tudo senhor doutor?

- Pago.

- São... cinco cafés... dez escudos.

Depois de lida a sentença e paga a conta, cada um foi para seu lado pensando na melhor maneira de comer a ceata sem ter de se prestar ao papel de verdugo contra quem nunca lhes fizera mal.

 

XXIII

 

A notícia correu rápida. Por toda a cidade não se falava noutro assunto.

A igreja ia-se enchendo. Os sinos não se ouviam, mas as pessoas não paravam de entrar no templo.

Na rua, magotes de homens, comentavam o sucedido.

- A que horas foi?

- Por volta das sete. O Zarolho lançou os foguetes às sete e meia.

- É uma besta! Nem os mortos respeita! - Mas quem lhe disse?

- Não faço ideia! As más notícias voam! - Pobre homem! Já me ia habituando às suas extravagâncias.

- Como foi?

- Ao certo, ninguém sabe!

- Parece ter engolido um tubo de comprimidos.

- Escolheu a liberdade. Deixou as críticas, os mal-entendidos, os ditos, as desordens...a parvoeira humana!

- Não o devia ter feito. Era padre!

- Ora essa! Era homem.

- Era condutor de homens, um escolhido por Deus para apascentar o seu rebanho! O suicídio é um acto de cobardia, é a negação da personalidade, é de todos os actos o mais abjecto que o Homem pode cometer! Ele não devia fazer o que fez. Era um ranhoso era o que ele era!

- Tentações do diabo!

- Qual tentações! Só um homem sem ideais, só um povo em período de decadência, alberga semelhantes indivíduos!

A esta conversa, feita no largo fronteiro à Sé, juntaram-se novos comentadores que chegavam em pequenos grupos.

- Afinal, ele não engoliu os comprimidos. Segundo ouvi dizer, enforcou-se. O Zarolho ainda o viu com vida.

- Não pode ser!

- É verdade! Ele ia fazer as pazes...

- Olha quem! O Zarolho a fazer as pazes com o padre! Você está doido, homem!

- É o que lhe digo! Ainda arrombou a porta para o tentar salvar!

- E depois?

- Chamou o médico.

- E a seguir?

- A seguir... não sei.

- Sei eu; foi deitar foguetes, foi esbanjar a sua alegria rude, foi anunciar a boa nova. Não vê que tudo isso é um conjunto de contradições?

- Não percebo porquê! Para mim, morrer de uma maneira ou de outra, tudo é igual! O que eu não tenho dúvidas é que ele era um realíssimo patife!

- Homem! Respeite os mortos!

- O quê, lamentar um safado daqueles? Nem pensar nisso!

- Todos perdemos a cabeça uma vez na vida.

- Ele era padre!

- E que tem isso?

- Já pensou quanto mal vai fazer? Um padre que se suicida, um padre que vai arrastar com o seu exemplo milhares de pessoas.. Se um homem tem responsabilidades, um padre tem essas responsabilidades aumentadas trinta ou quarenta vezes! Veja o que se passa na Irlanda: Tudo começou por um choque de comunidades religiosas encabeçadas pelos respectivos padres: um católico e outro protestante. Agora os padres retiraram-se, e eles matam-se estupidamente!

- Não diga mais, não diga mais! Já hoje tínhamos falado, no mesmo. Um padre é um homem, e qualquer homem pode ser padre. Eles são feitos da mesma massa!

- Não discuto a desigualdade sobre esse aspecto!

- Ora essa. Então como a discute?

- Nem todos podemos ser padres!

- Essa... é forte!

- É o que lhe digo! O homem está para o padre na razão inversa em que a essência está para a existência. E... contra isto não pode haver duas opiniões!

- Então, se eu quisesse, não podia ser padre?

- Poder podia, como pode ser aquilo que desejar, desde que tenha capacidade para tal. Porém. .. Um padre como deve ser um padre... você nunca chegaria a ser! Nem todos servem!

- Isso, são cantigas! Um padre é um padre, como um engenheiroé um engenheiro, como um médico é um médico. E não me venham com outras! Este era padre e veja o animal!

- Não diga asneiras, homem!

- Ai, só as suas ideias é que estão certas? Ora o figurão!

- Você não ofenda!

- Não ofendo nada! Mas se quer que lhe respeitem as suas ideias, respeite as dos outros!

A discussão foi interrompida pela chegada de novos indivíduos..

- Então o padre? - perguntou o que vinha na dianteira. - Belo maroto, hem! Sempre há cada um! E nós a pedirmos-lhe perdão das nossas culpas! A mim, nunca me apanhou lá ele! Não enganava! O diabo o leve para as profundezas.

- Não diga asneiras!

- Porquê, por ser padre?

- Não, homem! Porque todos estamos sujeitos a... dar um mau passo.

- O quê, um padre!?

- Lá vem outro com o mesmo! Um padre não é um homem?

- Aquilo nem era homem nem era nada! Um grande patife é que ele era! Deu um tiro na cabeça para fugir às responsabilidades!

- Um tiro?!

- Pois então, e certeiro. O malandro fez aquilo sem dor. Olhe, a bala atravessou deste lado para este, salvo seja. Nem ao menos ficou para ali a espernear, o malvado!

- O homem mata-se e você ainda quer que ele sofra? Um homem que se mata é porque sofre e sofre muito!

- Qual sofre! A alma devia ir negrinha como o carvão! Mas aquilo não era alma, não era nada! Aquilo era um monte de esterco! Grande...

- Deixe-o lá.

- Qual deixo!

- Ele não deu tiro nenhum. Foram os comprimidos que tomou... - Interrompeu um que estava ali desde início.

- Não me venha com histórias! Foi um tiro e um valentíssimo tiro! Então eu não sei? Moro ali a dois passos! Ouviu-se «perfeitissimamente», homem! Até a minha Natália, que estava na cozinha a preparar o café, veio ao quarto dizer-me: «Ó Júlio, ouviste»? Ouvi, então não havia de ter ouvido! As casas são quase paredes meias!

- Paredes meias?..

- Pouco menos! Só estão três casas entre elas.

- Cinco.

- Três ou cinco, cinco ou três, não é tanto como daqui a Lisboa!

- Mas um tiro... ,

- Se o ouvisse! Parecia de canhão! E a Maria, a criada do menino Carlos...

- A amante!

- Amante ou criada, isso para o caso não interessa! Ela bem o viu quando o foram buscar. A rapariga até estava fora de si. «Ai se o visse, senhor Júlio, coitadinho, levava a cara cheia de sangue! Nem parecia um homem, benza-me Deus». Olhem que a Maria não é rapariga para inventar histórias! Não se perdeu grande coisa. Segundo ouvi dizer, o malandro, andava metido com algumas confessadas.

- Oh, homem!

- É o que lhe digo. Pela salvação da minha alma se não mo contaram!

- Eu nunca ouvi tal. Antes pelo contrário, parece que o padre nunca se aproveitou de algumas que para aí andam a presumir de sérias!

- Quem me contou é de confiança. Segundo ouvi dizer, parece-me que ele foi intimado por um dos ofendidos...

- Por quem?

- Ainda não se sabe, mas quando isto vem ao de cimo. .. A vida das pessoas é como

o azeite...

1- Mas, afinal, o que fez um dos ofendidos?

- Ora, o que havia de ser!

- Intimou-o a matar-se?

- Pois então! De outra maneira rebentava o escândalo!

- E se rebentasse?

- Se rebentasse. O povo rebentava-o a pontapés! E já viu o que era isso? O falatório que iria pelo país?

- Mas a igreja está a abarrotar!

- Fanáticos! Aquilo são uma corja de fanáticos! O padre, cobardemente, procurou o fim mais infame para fugir a deveres e obrigações, e eles, esses anjinhos serôdios e cegos, ainda intercedem a favor daquele poltrão!

- Não seja assim, Júlio!

- Não sou? Sabe que mais? Isto é tudo um rebanho! Um rebanho de ovelhas tinhosas! Hipócritas, falsários, Judas capazes de vender a própria família a favor de uma ideia que os protegerá das poucas vergonhas que...

- Pxiu! Cale-se!

- Calo-me porquê? Cale-se você! Ora esta! Já viram o descaramento!

Num segundo, o Júlio, encontrou-se sozinho no meio da praça.

Lá muito ao fundo, ele viu uma figura negra, esguia, que principiava a subida em direcção à Sé.

- É o padre! Mas é o padre! Santo, Deus!

Eu, muito pálido, e a muito custo fui-me aproximando. O Júlio ficava-me no caminho. Não se mexeu. Olhava-me aterrorizado, tinha a impressão que a minha alma corporizara e lhe vinha pedir contas de tudo quanto acabara de dizer.

- Santas tardes - disse eu.

- Sa... sa... antas tardes, senhor prior.

Num gesto instintivo, o Júlio caiu de joelhos, agarrou-me nas mãos e beijou-as sofregamente.

- Levanta-te, levanta-te rapaz. Olha que eu não te posso ajudar... cuidado que me fazes cair... a igreja...

- Está, cheia, senhor prior! Todos a rezar por vossa reverência... Todos a pensar...

- Que eu tinha morrido.

- E vossa reverência aqui, são, escorreito... e rijinho! Muito rijinho!

- Não muito, não muito. Isto, ainda não está completamente bom!

- Louvado seja Deus que nos traz de volta tão querido senhor!

- Bem hajas pelas tuas palavras, Júlio... São pessoas como tu, doces de coração, sempre dispostos chorar o mal dos outros, que me fizeram sobreviver. ...Foi por ti, sim, por ti e por outros como tu que eu quis viver. Adeus amigo; tenho de ir. Aquela boa gente rezou adiantadamente pela. minha alma. Tenho de agradecer-lhes.!

- Eu ajudo, senhor prior. Eu ajudo.

- Bem hajas, rapaz.

- Oh, senhor Prior! Que alegria! Que alegria!

 - Ah, se eu tivesse a tua idade!

- Segure-se bem, eles já o viram. Estão ansiosos... Quero dizer, estávamos todos ansiosos... pedindo um milagre.

- Deus abençoado! É a apoteose de uma vida!

- Que diz, senhor prior?

- Não digo nada. Não digo nada, meu filho. Eu ainda julgo que estou a sonhar!

Por entre a multidão, que me olhava atónita, atravessei a coxia, dirigi-me para o altar. Rezei durante breves minutos. Depois caminhei em direcção ao púlpito. Não se ouviu um pequeno barulho; as pessoas viviam em êxtase o momento que estava a decorrer. A própria respiração tinha desaparecido.

- Sei - disse eu, - que estais aqui para rezar pelo descanso eterno da minha alma. Ouviu-se pela cidade que o padre se tinha suicidado, que ele tinha cometido, essa loucura infamante da dignidade humana, mas, mesmo assim, vós viestes. Agradeço-vos com todo o meu amor e com toda a minha gratidão o vos encontrar aqui reunidos. Contudo, não seria justo que Deus atendesse os vossos rogos em favor de alguém que atenta contra a vida. Todo este burburinho começou por um pequeno boato que tinha todo o aspecto de verdadeiro, devido às circunstâncias em que decorreu o acidente.

O que vou dizer não é a minha defesa, mas quero esclarecer-vos, para que não subsistam quaisquer dúvidas no vosso espírito e para que continueis a depositar, sem relutância, crédito no pastor que tem a felicidade de vos ter como irmãos!

Hoje de manhã fui transportado, de urgência, ao hospital. Sucedeu que ao tomar um comprimido me senti indisposto e, sem saber como, encontrei-me tombado à soleira da porta, lugar para onde me dirigira instintivamente. Aí tive a sorte de ser encontrado pelo senhor Guilherme, o leiteiro, o qual, sem perder um minuto, me transportou para o hospital.

Soube, naquele estabelecimento, que a notícia da minha morte inundara a cidade. Ainda bem que assim foi! Por esse motivo, tive a rara felicidade de conhecer mais profundamente os vossos sentimentos.

Bem hajam todos! Tenho a agradável impressão que ressuscitei no paraíso e que encontrei aí toda a cidade. Deus vos pague todo o bem que me fizestes.

Voltei-me para o altar, a cerimónia principiou perante uma multidão aterrada e que se fazia as mais disparatadas conjecturas. No templo, com o pensamento em Deus, só eu.

 

 

 

XXIV

 

 

Tinha acabado de me deitar quando ouvi bater a porta. Eram dez horas da manhã. Como ainda não me sentisse completamente bem, apesar de já terem passado dezoito dias desde a minha saída do hospital, deitei-me depois de ter dito a missa da manhã.

Fiquei estarrecido ao ouvir D. Matilde chamar por mim.

- Padre! Pa-dre!

Cobri instintivamente a cara e senti andarem os olhos, de um lado para o outro, à procura de um sítio onde me esconder. Lembrei-me imediatamente do médico e pensei:" desta vez não escapo."

- Padre!

- Do... do... dona Matilde - gaguejei a medo.

- O quê, está deitado?

- Não... na... não me sentia bem...

- Posso entrar?

Não dei resposta e D. Matilde, como visse a porta aberta e o quarto iluminado pela janela escancarada, entrou sem qualquer inibição.

- Outra recaída?

Olhei-a timidamente e respondi-lhe que sim, com o olhar.

-  Perdeu a fala? - Ao dizer isto tirou-me a roupa de cima do rosto.

0 menino não precisa ter vergonha. Faz favor de olhar as pessoas de frente e dizer o que tem? Está com medo de meu marido? Ele foi ver um doente e só volta daqui a duas ou três horas. Se é por isso, esteja descansado.

- Sinto tonturas, dores nas costas, enfim, estou completamente enferrujado.

- Éimpressão sua, não pode deixar abater-se com essa facilidade.

D. Matilde sentou-se na beira da cama e continuou a falar enquanto compunha o cabelo.

- A sua doença é fruto da sua imaginação exaltada. 0 senhor faz dos seus problemas catástrofes universais e isso não pode ser: .. 0 senhor não é culpado dos actos de cada um...

Eu olhei-a agradecido.

- Toda a gente nota como o senhor anda... não deve continuar assim, tem de reagir...

- Não posso - gemi por entre dentes e cobertores.

- Não pode! Mas que padre é o senhor que não consegue modificar um estado de espírito que não só lhe é prejudicial a si próprio como às pessoas que o rodeiam... isto é... às pessoas que o estimam.

- Obrigado D. Matilde... é muita bondade da sua parte.

- Faz favor de se levantar. Espero-o na sala.

- Dói-me o corpo todo - lamuriei.

- Se é assim, vou esfregá-Io imediatamente e dar-lhe um boa massagem.

- Não, não! Isso não! Eu levanto-me imediatamente!

D. Matilde soltou duas gargalhadas.

- Espero-o na sala. Dou-lhe dez minutos, tenho um assunto importante a comunicar-lhe. Vá, despache-se.

Embora durante toda a minha vida sempre tivesse colocado as calças cuidadosamente dobradas ao fundo da cama, lembro-me que naquele momento, por mais que as procurasse não as encontrava, até que depois de ter olhado para debaixo da cama, duas ou três vezes, só no auge da exasperação as encontrei no lugar onde sempre me habituara a pô-Ias. Suores frios corriam-me pelas faces e foi muito a custo que cheguei junto de D. Matilde.

- Até que enfim! - Exclamou ela alegremente.

- Des... desculpe-me... não tive intenção...

- Não tem importância nenhuma! Venha cá.

Com o seu à-vontade de grande senhora agarrou-me levemente por um braço e levou-me até junto da janela. O sol bateu-me em cheio nos olhos e eu pisquei-os como um pardalito esbracejando alegremente depois de ter comido quatro moscas.

- Oh! - Exclamei pondo as mãos diante dos olhos - Mas, ainda há pouco, tudo estava cinzento e triste.

- Desde o nascer do dia o céu se apresenta tal qual como agora, sem uma ruga a ensombrar-lhe o rosto. Disse D. Matilde.

- Devo estar muito doente.

- Está. Psiquicamente está mesmo muito malzinho!

Eu sorri e D. Matilde prosseguiu:

- Não adivinha por que venho aqui?

- Não faço a mais pequena ideia.

- Prepara-se uma conjura contra o senhor.

- Contra mim?

- É verdade. Meu marido e alguns amigos não contentes com aquilo que o senhor tem sofrido resolveram acrescentar-lhe mais uns pós...

- E a senhora...

- Não. Não pense que vim aqui atraiçoando o meu marido só para lhe ser agradável. Não, apesar de meu marido ter muitos defeitos e às vezes chegar quase a odiá-lo, a verdade é que o amo. Amo-o muito... mas... sei lá! Por vezes... não consigo desculpar-lhe pequenas ninharias e tornamo-nos duas feras...

Depois, voltando-se de repente acrescentou. - Não sei por que estarei eu... a contar-lhe isto a si...

- Compreendo-a.. .

D. Matilde olhou-me condoídamente como se dissesse: «Pobre homem! Como ele se julga importante e conhecedor da alma humana!»

- Não quero fazer de sua casa Muro de Lamentações e como vinha falar-lhe de um assunto que lhe diz respeito é a ele que voltamos.

- Como a senhora entender...

Falo da partidinha que lhe querem pregar. Como atrás disse, venho avisá-Io não porque esteja contra meu marido e a seu favor. Pelo contrário, não desejo que o Palhanca seja vexado ou cometa uma acção menos digna de que venha a arrepender-se mais tarde.

Eu olhei-a pensativo.

- Agradeço-lhe imenso, D. Matilde.

- Não me agradeça, prometa-me antes que não sai de casa à noite para sítios menos concorridos.

- Se for chamado por alguém aflito... não posso recusar-me.

- Ah! Já me esquecida. Eles vão-lhe mandar o Sôlho ou Rolho. . .

- Zarolho.

- Isso mesmo. Primeiro ouvi-o falar com um Silva Dias, não sei se conhece?

- O Cara de Aço, um que foi pegador de toiros.

- Esse todo. Por causa dele ia-me denunciando. O meu marido costuma ter muitos negócios com ele e tenho a impressão que esse Silva Dias perdeu um bom cliente, mas mesmo assim recusou-se dizendo-lhe «Oh, senhor doutor, francamente! Lá que o senhor me pedisse para pegar um toiro! Agora um padre! Para mais... esses gajos são os únicos que não têm por onde se lhe pegue!». Eu ri tanto que até chorei. Bem, agora depois de saber o que se passa, prometa-me que não sai.

- D. Matilde!. Como quer que eu lhe prometa uma coisa que só no preciso momento se pode resolver?

 -Não me diga?

- Suponha. ...

- Não suponho nada. O senhor promete e eu acredito em si.

-D. Matilde...

- Não aceito desculpas! O senhor não vai e acabou-se. Proíbo-o que o faça!

- Se...

- Nem todos os «se» do mundo, me demoveriam da minha ideia. Tome atenção ao que lhe digo: com os homens o senhor ainda tem algumas possibilidades de se bater.., mas com uma mulher...

- Não se enerve D. Matilde.

O pequeno momento de silêncio que se manteve, aproveitei-o para fazer uma breve retrospectiva ao passado e procurar saber se tinha havido vencidos ou vencedores entre mim e as minhas companhias de juventude, quando D. Matilde voltou ao ataque.

- O padre não conhece as mulheres...

- Se Vossa Excelência o permite eu perguntaria: poderá algum homem vangloriar-se de as conhecer verdadeiramente?

- Veja. Até o senhor se atreve a brincar com os sentimentos femininos.

- Desc...

- Oiça! - Interrompeu D. Matilde começando a ficar furiosa - O egoísmo do homem, a sua vaidade, o nunca nos ligarem importância, atiram connosco para o absurdo, para a desconfiança. O homem trata-nos como pequenos canídeos de luxo, aos quais, para manter calados e satisfeitos, deitam de tempos a tempos uma palavra amável, um vestido, uma pequena jóia, um mimo... mas nunca cuidando de ligar demasiada importância a estes factos para que o infeliz animalejo não se transforme em sanguessuga. Duvido muito que os homens, alguma vez, cheguem a conhecer as mulheres, padre. Se o senhor, que está nessa situação, não as compreende, como poderá um mortal seu semelhante, e sem estar apoiado na graça divina, tentar um passo em frente?

As palavras de D. Matilde saiam-lhe de jacto e eu mantive-me quieto, encolhido e envergonhado do meu atrevimento. Ela continuou:

- Diga o que tem contra meu marido?

- Nada, só lhe devo favores.

- Pode retribuir-Ihos, não lhe dando aso a que proceda como um garoto impulsivo. Promete?

- Prometo.

- Obrigado, padre. Confio em si.

- Só...

- Diga.

- Há um pequeno pormenor, e a senhora... ignora-o.

- Há?

- A mãe do Zarolho está doente e eu já a visitei.

- Foi ele que lhe pediu?

- Foi.

- Bom... mas agora já sabe... tenho a impressão de que foi esse o nome que ouvi... de qualquer maneira não saia de casa ao anoitecer. Está bem?

Não respondi. Tive a sensação que duas forças antagónicas lutavam dentro de mim sem eu próprio ser capaz de as definir. Fiquei a olhá-Ia enquanto se afastava, admirado com a minha serenidade, admirado com a sensação de bem estar que sentia.

 

xxv

 

 Depois de verificar que ninguém o observava o Zarolho bateu à porta. Mostrei-me bastante admirado.

- O senhor aqui?

- Não me trate por senhor, qu'eu não sou senhor nenhum.

- Vejo que ainda está ressentido com aquilo que sucedeu..

- O senhor fala de mais e com palavras que ninguém entende. Sei que ainda me doem as costas e qu'estas coisas esquecem facilmente.

- Entre..

- Num é preciso. Aquilo que tenho para dizer, digo-o em duas palavras: A minha mãe está doente e diz que num morre enquanto lá não for o padre.

- Então o melhor é lá não ir.

- Tem qu'ir.

 - É dar-lhe vida.

- Ela já deita vida pelos olhos. Diz que o que quer é paz e descanso; já conta noventa e oito.

- Bonita idade, Manuel. Nós não chegamos lá.

- Qu'é que disse?

- Bonita idade. Nós não chegamos lá.

- Mas não me chamou Manuel?

- Chamei.. E o senhor não se chama Manuel?

- Vossemecê senhor padre é teimoso! Lá Manel sou e pode-me tratar assim todas as vezes que quiser. Mas se me torna a chamar senhor... leva-me cá um arraial de porrada que nunca mais s'endireita.

- Está bem Manuel. Vamos lá então ver a sua mãe. Deixa-me ir só paramentar que eu já volto...

«E agora?» pensei, enquanto, no meio do desalinho do quarto, eu procurava a solução airosa para um caso difícil. «Vou. Não tenho outro remédio. São muitos? São poucos? São aqueles que forem! Pelo menos o Zarolho não irá espalhar que lhe deixei morrer a mãe sem a absolvição! E D. Matilde? Nunca mais me fala, mas ela tem outra cultura, compreenderá os meus motivos. Mas, também não me posso deixar apanhar como um coelho, ai isso não! Nem que tenha de fazer da caldeirinha da água benta arma de defesa e... engrossar um pouco mais o hissope. É isso. Onde pus eu o cavalo marinho que o professor Ferrer me deu em Moçambique?

É a solução. E em-bo-ra eu não acredite em magia, o homem que me o deu é um adepto do espiritismo e ele próprio é hipnotizador. Bati com o punho em cima de uma resma de livros que se espalharam pelo chão, levantei os braços, dei dois estalinhos com os dedos e feliz como um garoto traquina lembrei-me dos tempos da ilusão em que o Manuel Poppe, o João Alfredo e o José Patrício me desafiavam para jogar à pancada. «Vou. Está decidido. Corri a casa à procura do cavalo - marinho até que o encontrei misturado com relógios velhos e um ampliador. Beijei-o de alegria.

- Vamos, Manuel?

- Estive cá a pensar... qu'o senhor tem razão. A velhota não está tão mal como isso. Eu digo-lhe que o senhor não estava e ela que morra para o ano se quiser.

- Agora que estou preparado tenho que ir. Para mais não sei onde você mora. Pode haver uma aflição de repente... já está decidido. Vamos embora.

- Num vamos nada qu'eu quero.

- Deixas morrer tua mãe sem sacramentos? Tem paciência, Manuel, mas já que me chamaste eu tenho de lá ir!

- Minha mãe está mais rija que Vossemecê senhor padre e do que eu.

- Então?

- Eu vinha enganá-Io. Pagaram-me para o vir chamar e... eu vim e o senhor embora pudesse estar, zangado comigo ia. Agora vejo que o senhor é um gajo porreiro. Até me tratou por Manuel. Eu já me tinha esquecido do nome e vossemecê disse-mo. Ah, caramba! Vossemecê dá-me um abraço e ficamos amigos p'rá vida e p'rá morte.

- Dou. Então por que não havia de dar! Mas vou ver a tua mãe.

- Num vai porque chega lá. Eles são muitos e o senhor leva uma fueirada nesses cornos, salvo seja, que fica de pantanas durante uns dias. Olhe qu'é o doutor e os criados. Se fossem cá os pinocas da cidade ainda podia ter esperanças de se aguentar com eles. Com aqueles? São burros que nem um tamanco! Já lhe digo que num s'aguenta. Eu também queria ajudar a dar-lhe porrada e eles disseram que num queriam lá mais bestas. Já vê, com aqueles num tem sorte nenhuma.

- Deixa lá. Deus há-de ajudar-me.

- Deus? Essa é forte! Qu'um raio m'impisque s'eu acreditava num Deus qu'ajudasse os homens a dar porrada uns nos outros. Deixe-se d 'iludir a verdade, senhor padre! Num vai... e pronto.

- Que hão-de dizer de ti?

- Num dizem nada. Qu'hão'eles dizer? Que sou um malandro? Que m'abotoei com o dinheiro? Todos me conhecem! Que esperam de mim?

- Tu tens que te regenerar. Um homem de palavra vale cem vezes mais que um homem de dinheiro. Eu vou ver a tua mãe. Agora que tu me avisaste é mais fácil defender-me. Todos te olharão com mais respeito ou pelo menos eles sabem que podem confiar em ti.

- Confiam... mas enfiam. . Eu num m'importo qu'eles num confiem. O senhor é que pode ir porqu'eles descascam-no. É assim que começam as guerras... e as guerras fazem tudo mais caro, uma pessoa quer ganhar e perde sempre! Perde quem ganha, perde quem perde. São sempre todos a perder.

- Isto não é uma guerra, homem!

- É assim qu'elas s'armam! Vai um dá um pontapé. Vai outro dá um soco, o terceiro puxa por uma faca e o quarto desata aos tiros. Juntam-se amigos de um, e de outro lado, e dentro em pouco está um país pior qu'um burro lazarento!

- Oh, Manuel é pela tua regeneração que eu vou. Tens de pensar nos teus filhos, eles começam a ter compreensão e é preciso que as pessoas acreditem em ti.

- Agora desculpe-se com os meus filhos. Tou cá a ver qu'o senhor está danadinho p'rá andar ao sopapo. Quer, num quer? Então vá lá qu'eles lh'aquecem o lombo! Lembre-se que vai ofender a Deus.

- Aqui, trata-se de trazer ovelhas transviadas ao bom caminho.

- Nunca vi ninguém beijar a mão de outro depois de levar uma valentíssima sova. Veja o que sucedeu comigo. No dia em que eu soube que o senhor tinha morrido isso é qu'eu estourei foguetes. Foi cá uma alegria! Só tinha pena de não ter sido eu a estourar consigo.

- Tu és doido, Manuel!

- É o que lhe digo. Estou-lhe a contar a si o que nem à minha camisa o disse. Já vê qu'os homens não perdoam assim com duas tretas. Mas faça o que quiser cum raio que o parta, salvo seja.

- Tu tens razão, Manuel... mas tenho de ir ! - Disse eu, sem conseguir dominar ...a minha estupidez, e vendo nitidamente as carradas de razão daquele ignorante. Por mais esforços que fizesse, por mais tentativas para deixar falar a consciência tinha sempre meios para desviar o bom-senso e ouvir a voz do irracional.

- O senhor não aparece e está tudo acabado.

- Enganas-te. .. Inventariam outro estratagema, fariam pior, eu sei lá do que eles são capazes! Assim estou prevenido, sempre tenho algumas possibilidades a meu favor. Se não me atacam hoje, atacam amanhã ou no outro dia e eu ando sempre sobressaltado.

- Se soubesse não tinha aceitado a incumbência nem o dinheiro.

- Não aceitavas tu, aceitava outro. Não sabes que os homens se compram e vendem como se de castanhas se tratassem? Se julgas que é mentira, agarra no jornal e vê quantos homenzinhos compras com um barril de petróleo.

- Maldito dinheiro e homens malditos! Ninguém os entende! Tanto faz ser um realissimo analfabeto, como eu, como um grande senhor disto ou daquilo. Procedem todos da mesma maneira quando pensam lixar o parceiro. Abóbora para tanto lixo! Sabe o que lhe digo: volto a ser o Zarolho. S'eu cum Manel não lhe consegui tirar da ideia a bordoada que vai apanhar, fico-me com Zarolho pois assim num lhe fico a dever nada. Olhe, eles estão escondidos naqueles barrocais ali ao fundo e fique sabendo: não me junto a eles porque já são cães de mais para um só osso, mas livre-se de ter mais alguma questão comigo. Vossemecê quer guerras, num quer, pois vai ter guerrilhas!

- Não tive coragem para lhe dirigir palavra.

Aquele homem chamou toda a minha vergonha, mas ela não veio e daí a momentos, aos gritos de: «mata-se, esfola-se! Padre maldito, garanhão recalcado» esqueci completamente o Zarolho e só pensei na melhor maneira de proteger a retaguarda. Acalmei, finquei os pés ao solo e coloquei-me junto de um enorme bloco de granito.. Desta maneira tinha os adversários só pela frente.

- Parem, em nome de Deus! - Gritei, não por ter medo, pois sentia-me possuído por uma alegria diabólica que me atirava para a luta. Gritei por instinto de dever. Eles responderam-me:

- Vai para o inferno barregão imundo! - Encostado ao bloco a minha figura tomava proporções grotescas. A lua iluminava todo o teatro de luta. Com um desvio de corpo derrubei o primeiro contendor, os outros hesitaram escassos segundos, mas voltaram a aproximar-se. 0 cavalo-marinho e a caldeirinha rodopiavam como bailarinas loucas. Um a um os assaltantes iam ficando por terra. De tempos a tempos ouviam-se imprecauções.

- Maldito padre, hás-de rebentar de impotência!

Eu, calado, concentrando todas as  forças nas armas, continuei a tarefa com denodo e meticulosamente. Tentava e conseguia dispersar os contendores por ser mais fácil vencê-los dessa maneira.

Depois de uma boa hora de luta ficamos frente a frente só dois adversários.

- Acabe com essa loucura, doutor!

- 0 médico teve um sobressalto; ele encontrava-se mascarado, mas eu tinha-o reconhecido. Em resposta, Diogo Palhanca redobrou a investida.

- 0 senhor e os seus comparsas não foram multo felizes. - continuei sarcástico.

- Cale-se e lute seu cão danado!

- Saiu-lhe o osso difícil de roer, hem?

- Maldito! Não tivesses o balde e o cavalo marinho nas unhas eu te diria...

- Já que assim deseja, deixe-me colocar isto em lugar seguro; um deles é objecto

sagrado...

- Perjuro infame! - gritou Diogo Palhanca.

0 médico era mais forte que eu, mas, esgueirando-me aos contactos corpo a corpo,

eu mais parecia uma enguia do que um ser pensante.

- Para brincadeira já chega. Disse-lhe, tentando a todo o custo nem o magoar a ele nem me ferir a mim.

- Lute. Lute seu cobarde reles! Quero quebrar-lhe todos esses ossos!

Num movimento felino agarrei-lhe a aba do casaco e fi-lo passar sobre mim. Ele Ievantou-se de repelão, mas o cansaço não o deixou ir muito longe, bastou-me dar-lhe uma pequena pancada para o deixar inconsciente.

Encharcado em suor, com escoriações por todo  corpo, a batina em franjas, encostei-me a uma rocha e fiquei a olhar os corpos que tinha à minha volta.

 

XXVI

 

Procurava um livro que me ajudasse a enterrar os pensamentos quando ouvi rodar a chave na porta e uns passinhos leves entrarem tic-tic-tic, na direcção em que eu estava. D. Matilde nem me deu tempo a levantar-me, pregou-me quatro bofetadas com as suas mãozinhas frágeis e nervosas. Fiquei de tal modo confuso que balbuciei instintivamente:

- Peço-lhe perdão.

- 0 senhor! 0 senhor... não tem qualificativos que o possam caracterizar. É... é... o pior dos homens. - Disse a mulher do médico com as lágrimas caindo-lhe pelas faces.

- Não sei... por que fui.

- Eu tinha-a avisado do que ia suceder... o senhor prometeu-me não ir... se não fosse eu preveni-lo nunca teria oferecido resistência. Agora... onde irá parar tudo isto... não me diz?

Enquanto D. Matilde falava fui pensando no Zarolho e no desconhecimento que ele, tal como ela, tinham um do outro.

- Está-me a ouvir... seu padre tão pouco padre?

- Estava a pensar que tudo terminou. Menti, tentando a todo o custo salvar as aparências.

- Engana-se! - Disse com firmeza D. Matilde - veja o que arranjou. - E D. Matilde tirou um papel da sua malinha. - A cidade inteira está cheia deles. Que vergonha! Ao que descem os homens! Como são capazes... de se afundar tanto!

- As mulheres não se compreendem e os homens... «Os homens são difíceis» - Tentei dizer com graça, para desanuviar o ambiente.

- Os homens! Neste momento, o único que detesto. .. é o senhor!

- Mereço-o. Sei que o mereço!

- Quase me convenço que o homem mais santo e mais justo não é digno nem de beijar os pés à mulher mais impura... Disse D. Matilde com ar estranho.

- Por Deus!

- Como pode falar em Deus com essa desfaçatez?!

Senti-me desaparecer pelo soalho da casa. Aquela mulher falava-me sem medo, reduzia- me à expressão mais simples, ao animal sem adornos filológicos.

- Escusa de corar. Ao príncipio achei-o simpático, desassombrado, conhecedor das pessoas, nada afectado... enfim... um homenzinho capaz de raciocinar, embora Ihe sentisse um ponto fraco... que... para um padre... No entanto convenci-me que o soubesse dominar e que... as visitas femininas misturadas com trabalhos de igreja se dissolveriam e o senhor acabasse por se tornar um verdadeiro homem... afinal... veja o que me saiu. - disse D. Matilde com desprezo.

- Tentei fazer o melhor...

- Não tentou! Não seja mentiroso! Se eu avisei e se o senhor me prometeu que não ia... diga-me o que o levou a faltar ao compromisso que assumiu?

Reflecti uns instantes à procura de uma explicação plausível. Como não a encontrasse respondi envergonhado.

- Não sei por que procedi assim!

- Não sabe! Eis o irracional na sua forma mais simples! Não sabe! Não sabe por que atacou... .

- Perdão D. Matilde, fui atacado...

- Mente! Atacou! Atacou porque ia prevenido e sabia o que lhe iam fazer. Atacou porque levou um cavalo-marinho enquanto que eles o julgavam indefeso e só o desejavam agarrar sem Ihe fazer mal... Meu marido anda coxo, os outros, cada um se queixa ou de uma perna, ou de um braço ou das costas e o senhor... de que se queixa? Tome, leia! Veja até que ponto se afundam os homens.

 Agarrei no papel e li:

«Carta aberta ao padre».

«Entrou, este homem, com pés de lã, nesta bela e nobre cidade. Todo o povo o recebeu de braços abertos, Ihe testemunhou a submissão e apreço que são devidos ao representante de Deus. Mal sabíamos nós que este enviado do Senhor era o lobo vestido de cordeiro. Em poucos meses usava não só da sua força espiritual, como da força dos seus punhos para impor as suas ideias a quem tão gentilmente o tinha recebido.

A pacatez, o sossego a que estávamos habituados desapareceu; nunca mais os nossos corações, a nossa simplicidade de viver conheceu tréguas. 0 espirito de Santanaz tomou posse do representante do Senhor.

Ele ataca a honra das famílias no que há de mais sagrado e de mais puro! Abusa da sua posição, do alto posto que ocupa, para saciar os seus instintos bestiais em donzelas indefesas, ora pela vergonha que tais propostas lhes causam, ora pela idade que não as deixa distinguir o cantar do rouxinol do assobio da cobra.

Por tudo o que acabamos de dizer e ainda pelo muito que guardamos e que sairá a seu tempo desde que isso seja necessário, vimos convidar este sujeito que faça uma confissão publica e que deixe esta terra o mais breve possível».

- Que diz?

- É uma infâmia. - Respondi, sentindo ao mesmo tempo o peso do corpo abandonar-me, como se tivesse apanhado uma pancada e perdesse o equilíbrio.

- E não o foi também, o senhor ir deliberadamente ao encontro da provocação? Como quer esperar amor se vendeu ódio?

- Tentei chamá-los à razão...

- Como quer que alguém o ouça, se o senhor é o próprio a fazer o contrário do que essa mesma razão lhe diz?

- Que me aconselha?

- Responda à carta. Agora... está enterrado até ao pescoço, os papeis enxameiam a cidade, ninguém ignora os seus termos, pois bem, refute-os se for capaz.

- Aconselha-me a que o faça?

- Não tem outro caminho. Pela minha parte estou paga.

- Que dizem, as pessoas?

- Não sei, ia a casa da Madalena quando me entregaram isto. Depois de o ler retrocedi caminho e vim para aqui. . . sempre quero ver o que diz a Madalena e a Le...o...nor.

D. Matilde repisou a palavra martelando as sílabas.

- A... D. Leonor.

- Consta que... são muito amigos...

- Consta... 

- Bem, vou indo. Direi como o outro: «missão cumprida».

- D. Matilde! - Exclamei quando ela já se encontrava na soleira da porta.

- Sim?  

- Peço-lhe perdão... por tudo... prometo-lhe...

- Não prometa se não quer faltar. - A rir e sem parar concluiu - O senhor tem boas intenções, é quase uma pessoa honesta... mas... o coração engana-o demasiadas vezes... ele - não lhe deixa fazer aquilo que a razão lhe dita. Tem um coração muito à flor da pele... cuidado com ele, padre!

Cuidado! 

- Juro-lhe!

D. Matilde já não me ouviu, aos pulinhos, saltitante, vi-a dirigir-se para os lados da casa de D. Leonor.

 

XXVII

 

Leonor ouvia a amiga com a mesma disposição de quem cumpre uma promessa imposta pelo destino.

- Ainda pensas no padre?

- Não sejas tola, Matilde!

- Ele movimentou-te a vida.

- Não sei de que maneira.

- Não acredito que tenha sido ele a usar de pretextos para te levar lá a casa. - Leonor olhou D. Matilde e deixou-se rir.

 - Eu, fui lá a casa!

- Sou a única que posso testemunhar a veracidade deste facto.

- Mentes!

- Claro que não te posso revelar o teor da conversa, mas quando saíste vinhas furiosa. Ainda minto?

- Agora dás para espiar os meus passos?

- Houve tantas opiniões acerca deste assunto que resolvi hoje dar-te a minha... visão.

- É verdade, fui a casa do padre. E que tem isso? Tu também lá foste e contaste-me que teu marido não ficou nada satisfeito. Disseste-me ainda que o padre tinha um olhar de místico esfomeado...

- Contei-te os meus passos, esperava que retribuísses com os teus.

- Sabia que era o que desejavas. Não tive coragem. . .

- Confiança...

- Sim, sei lá, faltou-me qualquer coisa para o fazer. Mas não esqueci que me disseste que, se quisesses, tinhas desviado o padre dos seus devaneios ascéticos e acrescentaste. .. que não o fizeste ainda não sabes porquê, mas se teu marido tem chegado um pouco mais tarde ou o padre se tivesse mostrado mais ousado...

- Tu exageras!

- São palavras tuas.

- Que demonstram bem a grande amizade que nos une.

- Sim, de certa maneira.

- Como, de certa maneira.

- Depois de casada nunca mais foste a mesma.

- O casamento, Leonor, se contribui para a nossa realização e daí nos possam advir  muitos benefícios, exige, sem que isso se note, um refazer dos nossos hábitos. É assim como um jogo de xadrez em que a mudança de um tem de ser seguida pela mudança do outro.

- Estou cansada, Matilde. Não te esforces mais.

- Tu andas triste, Leonor.

- Esse tom plangente comove-me. Daqui a pouco estou nos teus braços a verter gota a gota toda a minha desdita.

- São assuntos sérios, Leonor. Tens vinte e oito anos!

- Tenho ainda muito boa idade para viver a vida, é isso que queres dizer, não é?

- Não. Quero-te chamar a atenção para o que podias ter arranjado com a tua leviandade.

- Ah, ah! Proíbo-te que faças juízos a meu respeito. Só eu me posso pronunciar por aquilo que considero leviandade ou não. As tuas alusões a um assunto que tu não conheces em profundidade... carecem de fundamento, portanto... seria melhor deixares esses ares de mulher austera e desceres ao nível da pecadora que está à tua frente.

- Vê os transtornos que causaste ao padre!

- E a ti?

- A mim também, por causa do Diogo.

- Onde pretendes chegar com tudo isso?

- Onde pretendo chegar é que tudo isto sucedeu por tua causa.

- E onde eu quero chegar é que essa tua obstinação chega a ser doentia! Quem te disse que fui eu a causadora?

- Pelos zum-zuns que ouvi...

- Isso é uma imprudência! Como podes afirmar uma coisa de que não tens a certeza?

- Desculpa, mas segundo depreendi, foste tu que disseste a teu pai e teus irmãos que o padre te fazia a corte.

- Enganas-te. Mas para satisfazer essa tua curiosidade mórbida vou-te contar como as coisas se passaram. Jura que não contas a mais ninguém.

- Não tens confiança em mim, Leonor?

- Juras ou não?

- Juro.

- Juras pelo amor que tens a teus filhos?

- Juro pelo amor que tenho a meus filhos.

- Então senta-te e escuta: «Na verdade gosto imenso do padre. Não sei como aconteceu, mas aconteceu. Todas as vezes que me encontro junto dele sinto-me de tal modo arrebatada que seria capaz de cometer os piores dislates sem me importar com as sequências inerentes.

- Mas tu ... sempre recusaste todos os homens! Chegava a ter a impressão que os odiavas... palavra de honra... e isto não faça diminuir a nossa amizade... mas no campo sentimental sempre te julguei uma complexada... incapaz de realizar amor.

- Nunca aceitei de boa mente a possibilidade de sofrer os momentos do parto e sujeitar-me aos caprichos de um bruto qualquer.

- Não é tanto assim.

- És feliz com teu marido?

- Durante uma vida a dois, tem de haver, fatalmente, horas boas e horas más...

- Mas podes considerar-te, pelo menos, medianamente feliz?

- Em certa medida...

- Estás a ver. Respondes com evasivas. A lapidação humana é ainda bastante imperfeita. Podes contar pelos dedos os casais felizes. Cá em casa tenho o exemplo. Meus pais, os meus três irmãos e as duas manas tudo casado, todos com filhos e todos discutem e se ofendem como se de arruaceiros se tratasse... talvez estes edificantes exemplos me tivessem fortalecido a vontade.

- E o padre?

- Apanhou-me de surpresa e, de repente, sem bem saber porquê, dei comigo numa tentativa de adultério eclesiástico... - D. Matilde riu até às lágrimas.

- O quê, tentaste e não conseguiste?

- É verdade. A bem, a mal, acariciando-o, molestando-o, usando truques que eu própria me julgaria incapaz, o padre não cedeu um milímetro!

- E acusam aquele desgraçado de tudo e mais alguma coisa. Conta lá! Conta lá!

- As minhas queridas manas sempre tão ciosas de guardar o bom nome da família deram com uma carta do padre pedindo-me desculpa pela sua atitude. Eu respondi-lhe culpando-o, injustamente, de me ter desencaminhado, mas que eu lhe perdoava se fugisse comigo como já tínhamos falado. .. Não te digo nada! Ia caindo o Carmo e a Trindade! Elas deram com as cartas... só visto! Minha mãe e minhas irmãs choravam para um lado, meus irmãos diziam palavrões maiores que a Serra. Aturei-os durante uma semana. Pedi-Ihes por tudo que não fizessem escândalo, mas eles pareciam doidos. Por palavras eles desfizeram o padre nervo a nervo, depois encontraram teu marido e sabes o resto. . .

- Anda tudo doido! Os homens sentem prazer em se agarrarem a ninharias para criarem problemas. O meu, anda impossível! Tu leste a carta que eles escreveram?

- Tenho-a aqui.

- Se queres o padre... salva-o quanto antes.

- Gostaria que ele soubesse que não fui culpada.

- Descansa que ele sabe. A intuição não o deve ter enganado.

- Que pensas que eu deva fazer?

 - Tu és mulher Leonor! No entanto, eu digo-te a minha divisa: Insiste e alcançarás.

- Alcançarei?

- Oito e meia! Aah! Tu desculpa, tenho de ir! Não posso demorar nem mais um minuto! O Diogo deve estar furioso! Tu desculpa, querida... são horas de jantar e ele, ultimamente, não perdoa! Tu desculpa, outra vez conversaremos sobre isto! Aparece. Vai lá a casa logo que possas! Está bem? E... quanto ao conversado... deita moeda ao ar. . . se por acaso sair do lado contrário àquele que tu desejas... volta-a! Dá cá um grande beijo. Adeus minha querida! Mais uma coisa: a minha divisa... não esqueças... verás o resultado.

XXVIII

 

Não havia ninguém: Pobre, rico ou miserável que não andasse de papel na mão.

Havia muitos que mal sabiam juntar as letras e perceber o conteúdo do que tinham entre os dedos, mas, nem esses, eram os menos interessados. Todos queriam saber o que era aquilo e de que lado estava a verdade.

Tal como os autores da carta tinham pensado, a cidade dividiu-se em duas facções: uns a meu favor, outros a favor dos signatários da belicosa epístola.

Depois da saída de D. Matilde pensei no melhor que tinha a fazer.

«Se mexo nisto, mais me enlameio. Mas se deixo esta infâmia sem resposta, aqueles que têm confiança em mim vão perdê-Ia e a minha vontade de servir a Deus e ao Mundo estará irremediavelmente condenada! Está decidido: Vou responder-lhes».

Em todas as missas, durante aquela semana, fiz saber que no domingo falaria no largo fronteiro à igreja. No dia aprazado a cidade inteira encontrava-se presente. Todos queriam saber como me defenderia. Eram dez horas da manhã quando comecei:

 - Meus irmãos, o Evangelho de hoje tem como ideia fundamental a frase: «Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.» Talvez eu esteja incluído no número destes últimos, talvez eu seja um monte de palúrdia sem interesse e ocupe este cargo por uma irreverência do acaso! No entanto, Deus é testemunha da minha vontade; eu tenho querido enfileirar ao lado dos primeiros e seguir os pensamentos e ensinamentos do Senhor.

O que vou dizer não se limita somente à minha defesa, ao enaltecimento das minhas virtudes e ao expurgo dos meus defeitos. Nem umas nem outras atingem irredutíveis! Falarei de mim e do mundo tenebroso em que vivemos. Desse mundo, que admite ainda em nossos dias, a discriminação entre os homens; esse mundo que dá a uns o direito de serem invulneráveis e a outros os faz rastejar, lambendo a lama e os restos dos mais poderosos!

A génese de todos os nossos males, ainda é insuficientemente conhecida; mas de uma coisa estamos certos: compete ao homem desvendar esse enigma e transformar tudo o que é mau em bem.

Não podemos exigir que Deus nos ofereça todas as coisas gratuitamente; a nossa função neste mundo é mais grave do que as nossas pobres e frívolas cabeças o imaginam!

O tempo, na sua rotação constante, tem diluído os primeiros princípios, a noção de verticalidade dos seres, tem abastardado as consciências!

Sendo um dos representantes de Deus na Terra, não tive a felicidade de ser indigitado pelo Criador, nem como santo nem como mártir!

Os ataques que me são dirigidos repugnam pela distorção das realidades.

Quem lêsse, de ânimo leve, o que foi escrito, pensaria que sou um foco de disseminação amoral que pulula entre os mais cândidos homens que o planeta abriga!

A verdade e só a verdade, me obriga a denunciar tal documento. Faço-o porque ele indirectamente se reflecte na classe a que estou ligado e lhe vai diminuir o prestígio e fazer perigar a obra de amor e redenção que lhe foi confiada pelo divino Mestre.

Perdoai-me a maneira, um tanto brusca, como estou a falar. Pareço um tanto irritado.., talvez esteja. Mas não é por isso que a minha lucidez é menor. Falo-vos num tom alto para vincar bem que estou envergonhado pelo que se passa nesta cidade... e em todo o Mundo.

De quanto sou acusado, só uma coisa é verdadeira: o eu me ter defendido. 

É por isso que me acusam? É por isso que sou mau padre? É por isso que devo retractar-me e abandonar esta terra que eu amo como se nela tivesse nascido? Parece-me que não. Neste caso teremos de concluir que os eflúvios dialécticos de tão grados subscritores da carta, podiam ter sido aproveitados para melhores fins!

As afirmações que seguem e às quais darei resposta exaustiva para estripar de vez o mal pela raiz, posso ordená-Ias da seguinte maneira: Primeiro, nas ameaças encobertas pretendem insinuar que tentei suicidar-me. Deus lhes perdoe, mas desde a minha ordenação, desde a entrada para o ministério do Senhor, nunca tal me passou pela cabeça. E o diagnóstico dado pelo hospital é bem significativo; afirma que o estado em que me encontrei foi devido a uma indisposição súbita, a qual foi agravada pelo enfraquecimento em que me encontrava.

Embora o recrudescimento da loucura humana seja um facto incontestável, todo o cristão deve ter presente que só a Deus é permitido chamar a si os seus filhos e os seus irmãos!

O suicídio é a negação da personalidade! O homem pode viver cem anos, trilhar durante esse espaço de tempo um caminho de rectidão e de justiça, mas, se no fim da jornada se suicida, podemos concluir que ele foi durante toda a sua existência um frustrado, um despersonalizado que tentou enganar a sociedade com a qual mantinha relações. 

Foi um recalcado, que perdeu em poucos segundos o respeito e a admiração que, minuto a minuto, ano a ano, cimentara com sacrifício e tão penosamente!

Normalmente, quando alguém comete este crime, fá-lo sob o domínio de excitantes; de vinho ou de drogas alucinatórias. Estes desgraçados são muitas vezes atormentados por problemas de homossexualidade, de incesto ou qualquer outro crime contra a Natureza, mas nenhum destes aspectos os desculpa. Há sempre tempo para voltar atrás: um homem desnorteado pelos pecadilhos da juventude, não é um homem perdido. É, sim, um homem à procura de si mesmo.

Assim, o homem ou domina as suas tendências que o prejudicam ou tem de abdicar dos seus direitos perante a sociedade.

A evolução deste mesmo homem seria uma ficção se a comparássemos ao avanço da técnica e da economia. Este absurdo de retrocesso espiritual humano e de avanço técnico ilimitado estamos a atravessá-Io nos nossos dias. É um absurdo e uma realidade palpável com os quais temos de lidar quotidianamente.

Outro ponto que os autores da carta encobrem, mas que naturalmente me apontarão mais tarde, foi a da parte activa que os signatários tiveram numa pequena escaramuça. Como ao princípio afirmei, não sou, infelizmente, nem santo nem mártir e os meus detractores conhecem tão bem como eu que não foi o vosso pastor que os provocou.

«Última e mais grave acusação: Dizem eles que ofendi donzelas com propostas indecorosas. Deus sabe que tal não é verdade, mas eu estou pronto e foi para isso que pedi a todos a vossa presença, eu estou pronto, a que essas senhoras venham dizer publicamente o teor das. palavras que lhes dirigi. Se existe alguém que se sinta ofendida, pode-o declarar imediatamente. E, se provar pela palavra e pela expressão do seu rosto, que aquilo que afirma é verdade, eu tiro de rompante este cabeção e esta batina e ponho-me ao vosso dispor para receber o castigo merecido.

Ninguém aparece, não há acusação pública e real das calúnias propaladas por intermédio dos papéis que circularam de mão em mão?

Tudo isto que vem sucedendo tem-me feito pensar sobre os homens, sobre as convulsões endémicas que sacodem o mundo, sobre a maneira e o prazer que esses homens põem na destruição de outros homens e como os sobreviventes tomam a sua vindicta.

«Perdoai-me o tempo que vos roubo, mas, uma dor penetrante rasga-me as entranhas minuto a minuto, hora a hora! Para que o meu sofrimento seja repartido com equidade, eu tenho de clamar bem alto, de maneira a fazer-me ouvir por todo o mundo, por esse mundo cego, ingrato e funesto que tenta desagregar-se impiedosamente sem ter chegado a conhecer qual a sua finalidade e a sua razão de ser!

Meus senhores! Meus irmãos no consenso universal, na luta que todos travamos para deixar um mundo melhor, um mundo mais perfeito, mais consentâneo, sem guerra, sem fome, sem aberrações humanas!

Meus senhores! É preciso gritar? Eu grito, não me importando que pareça mal, que pareça descabido por sair do remanso a que nos habituámos. Eu grito porque a minha dor está certa! E o meu grito sentido e profundo é: Basta! Basta de tanta idiotice, de tantos enganos, de tantas falsas argumentações, de tantas degenerescências atávicas, de tantos homúnculos!

Basta! Grito com todas as forças, a plenos pulmões, diante de Deus e dos Homens!

Por mais que me diga: Tem calma, não te precipites, sê como a maioria; deixa andar, para ti tens o suficiente! Não consigo conter-me perante a força imperante que me segreda: Tu não podes viver no marasmo, na apatia impotente que te faz andar de braços cruzados à espera que o destino tome a tua vida nas suas mãos como se fosses um pequeno títere sem vontade própria! Avança, avança sem medo de ferir susceptibilidades, sem medo de mostrar ideias tuas, próprias de homem consciente!

Só tenho um norte! Só tenho uma direcção, um ideal que ofusca todos os outros: O ideal do amor, do amor puro, do amor que dá e recebe .de alma aberta, de coração franco, sem mentiras, sem exageros, sem hipocrisias!

Basta meus irmãos! Basta por amor de vossos filhos, por amor de ídolos, por amor de Deus, por algo que ameis verdadeiramente, parai! Parai com as guerras e com a copiosa e estéril libertinagem que invade as casas e se espalha por todos os recantos desde a mais modesta aldeiaà cidade mais evoluída. Semeai os campos. Fazei produzir as vossas fábricas e o vosso trabalho! Recusai terminantemente a pegar em armas contra um irmão vosso!

Eu torno a dizer-vos: Basta de falta de coerência, basta de desonestidades, basta de apoios infantis para agradar a A, B, ou C, basta de palavras sem sentido, basta de jantares faustosos, petulantes, agressivos pelo que contêm de ofensivo a tanta miséria espalhada pelo Mundo!

Há milhões de seres que não ganham num ano aquilo que alguns milhares desperdiçam num dia! E, meus irmãos, é preciso não esquecer que morrem de fome, por dia, dezassete mil seres humanos. Isto não é um crime, é a maior infâmia que pesa sobre a cabeça de cada um de nós!

Basta, meus amigos! Basta, meus irmãos! Vós fizeste transbordar o cálice do meu descontentamento! Eu andava sufocado, mal podia olhar de frente cada um de vós, porque me sentia culpado. Culpado por não ter coragem para vos falar de Homem para Homem.

Hoje, bendigo os meus detractores que permitiram que eu dissesse e continue a dizer o que sem a ajuda deles nunca seria capaz.

Basta meus amigos! Comecemos a nossa luta pacífica contra a estupidez, a ignorância e todos os males que atacam o Homem.

Nesta vida tenho sido um pouco de tudo, e no mundo não passarei, certamente, de uma ínfima parte do nada. Não é isso, porém, que me preocupa, o que me começa sim a preocupar é a passividade bovina, autenticamente bovina com que encaramos as maiores desgraças, os maiores atropelos, enfim, tudo o que de muito mau acontece pelo  Universo que habitamos! Não reagimos, não temos mais que um simples gesto, um lamento fingido e duas ou três palavras de consolação para enganar este ou aquele.

Estou convencido que mesmo o melhor de nós sente prazer, embora momentâneo, com a desgraça do vizinho. E, não errarei muito, se disser que, a maior parte das vezes, até gostaríamos que essa desgraça fosse um «poucochinho» maior! Mas, oh natureza humana! Passado aquele mau momento, aquele desejo insano, aquele pensamento improfícuo, no qual desejámos que a desgraça se tornasse quase irreparável, lá estamos nós a oferecer a nossa ajuda, a levar isto, a levar aquilo, a levarmos as nossas próprias roupas, a oferecermos a nossa própria casa, a lamentarmos o sucedido, etc., etc., etc. Em poucas palavras: Cada um de nós é um animal cheio de contradições! Contradições que nos arrastam a sentirmos grande alegria pelo mal dos outros, num momento, e. no momento seguinte, a lamentarmos sentidamente essa mesma desgraça. E, o que é mais estranho, a sofrermos sem fingimentos, com quem sofre!

Pobres homens! Pobres irracionais-racionalizados, aonde eles chegaram!

Hoje, em dois ou três minutos, matam-se milhares e milhares de pessoas. E o mundo que faz? Sim, que faz ele perante morticínios como os de Hiroxima e Nagasaqui, onde num abrir e fechar de olhos desaparecem pelas portas da eternidade mais de cento e cinquenta mil Japoneses! Que faz o mundo perante a exterminação que se está a passar entre Árabes e Judeus, no final do século vinte? Que faz ele, este doirado mundo em que vivemos? Esquece. Esquece e tapa a cara como se estivesse arrependido e contrito para sempre. Porém, mal passam cinco ou seis anos, aí está ele a cometer os mesmos erros, a repetir as suas ignomínias e, por último, a penitenciar-se, a fazer mil promessas... nunca cumpridas! Hoje, como atrás disse, matam-se aos milhares e... estou convencido que dentro de onze ou doze anos se matarão aos milhões.. Mas estes milhares e estes milhões quem são eles? Sim, quem são eles? Eu respondo entristecido e revoltado comigo mesmo, perante a minha impotência, perante o eu não ser capaz de acabar de uma vez por todas

com este animalismo abjecto, selvagem, primitivo! Esses milhares e esses milhões são crianças, são mulheres, são velhos, são inocentes cujo único pecado é o de terem nascido num mundo de loucos!

Mas, se perguntarmos aos soldados, que empunham as armas e se digladiam, por que o fazem: setenta por cento não saberão responder!

Pobre mundo de estultos e de bonifrates! Quem serão os culpados destas catastróficas carnificinas?

A resposta é fácil e não requer tanto esforço como os politiqueiros querem fazer crer: 

Os culpados, os verdadeiros culpados são os dirigentes dos micro e dos macro Estados...

Esses senhores, espalhados pelo Mundo inteiro, a quem foi entregue esse mesmo mundo por outros seres seus semelhantes, para que eles os governem com amor, com lealdade, com equidade, que fazem eles? Possuídos da loucura do mando, arrogam-se em salvadores de outros povos que não o deles, imiscuem-se na sua política interna e externa com o maior desplante e à-vontade como se estivessem a reger os seus próprios países, nos quais, por quaisquer incongruências ininteligíveis, não são capazes de debelar os simples problemas quotidianos que por eles lavram!

Que fazem então? Possuídos da loucura do mando, repito, arrogam-se em salvadores, em portadores de mensagens idealizadas pelas suas pequeninas e vaidosas cabeças, e o resultado está à vista... o Mundo arde indecorosamente por todos os lados.

Os poucos povos que ainda mantêm a sua calma, a sua dignidade e seu bom senso, vivem aterrados e perguntam-se qual será o dia em que os seus filhos, as suas mulheres e os seus lares serão pasto da chamas da violação, dos sismos da loucura!

Quem pensar um pouco em tudo o que venho afirmando, verá que uma grande parte do mundo, só consegue sobreviver devido à sua fé em Deus. Um Deus universal, um Deus Árabe, um Deus Chinês, um Deus... Sueco, um Deus Russo, um Deus Congolês, um Deus Português... um Deus que se encontra em todas as nações e que é necessário descobrir, que é necessário amar porque só em torno Dele, só imitando-O, os nossos pensamentos, as nossas palavras e as nossas acções serão coerentes, benévolas e próprias de seres racionais que somos!

A minha revolta, os momentos em que saio do caminho calmo e generoso que desejo seguir são motivados, perdoai-me a expressão, por todos os acéfalos racionalizados que o Mundo alberga!

Eu passo em revista todos, todos aqueles que, de um extremo a outro, vão estoirando de fome e de inacção, até àqueles outros que rebentam de indigestões. Percorrendo toda esta feérica cáfila que se vai enganando e matando com um sorriso nos lábios, que tenta alcançar uma hegemonia fictícia à custa de uns e outros; as minhas forças, por vezes, abandonam-me, e tenho de recorrer a Deus para que o meu cálice não extravase e eu não me transforme em ser semelhante àqueles que lamento.

Meus senhores e meus irmãos! Quem pode ficar insensível perante todo o mal que é insuflado no espírito da juventude, essa juventude que dá os seus primeiros passos na vida e que é educada sob o signo do ódio e da violência?... Quem são os culpados? Quem? Nós os homens, nós os sábios, nós os artistas, nós os médicos, nós os engenheiros, nós os militares, nós os burros! Sim, os burros humanizados, que pomposamente envergamos o nome de homens, como se só isso nos bastasse para vivermos! Que tristes nós somos, meus amigos! 

Meus senhores, a realidade é triste, muito triste, mas nem por isso deixa de ser menos verdadeira. Não há sábios, não há artistas, não há... nada, nada! Há sim, uma corja de ignorantes que servindo-se das maravilhas do Infinito se apoderam delas e deixam morrer milhões e milhões de seres em condições difíceis, senão impossíveis de descrever!

Basta, meus irmãos! Basta de guerras! Basta de fomes! Basta de aleijões provocados pelos erros dos homens contra a Natureza! Essa Natureza espiritual e material que eles amesquinham com um desaforo e um delírio inverosímeis!

Os governantes têm de ter muito de santos, de competentes e de justos, só assim se evitará que as nações mais prósperas deixem queimar toneladas e toneladas de cereal enquanto por outro lado as nações mais pobres vêm morrer os seus filhos à míngua de pão!

Não posso, contudo, conceber, que umas nações trabalhem para as outras. Que umas sejam as obreiras e outras vivam preguiçando à espera das ofertas da irmã mais rica. Sou apologista, sim, que terminem as fronteiras entre os povos, que a divisão demográfica seja mais equitativa e que os técnicos possam percorrer o Mundo, aconselhando aqui e além os melhores processos de tirar rendimento do solo. Que esses mesmos técnicos aproveitem o que muito há a aproveitar nas chamadas nações pobres e subdesenvolvidas, pelo aumento racional de fontes de energia até agora inertes e sem qualquer proveito. Que eles, esses técnicos,  não possam ser influenciados pelos politiqueiros de salão que se arrogam o direito de impedir o progresso só porque assim pensam manter o equilíbrio do Mundo!

Estou ainda convencido que as guerras se mantêm porque os grandes industriais de armamentos têm de os vender e, por esse motivo, eles, apoiados pelos seus governos, fomentam, inconscientemente, pequenas rixas que de um momento para o outro se transformam em guerras sangrentas.  

Quem constrói carros de combate, bombas orbitais, foguetões também pode construir tractores, charruas, debulhadoras, enfim, todas as alfaias agrícolas que o mundo necessita e veremos como em poucos anos, a face desta galáxia que nos abriga se apresentará diferente.

O mundo é uma fonte inesgotável de recursos e aqueles que obsessivamente proclamam o contrário, fazem-no, ou porque desejam que as suas palavras sejam tomadas em tom de profecia comentada em todo o Mundo, ou, então, porque são loucos inconscientes e querem-se consagrar por meio de palavras bombásticas!

Vivei, deixai viver e ajudai a viver é o único lema que vos deve nortear em todo o tempo que tiverdes, o favor da vossa existência!

Meus irmãos, meus senhores, reparai como um minúsculo papel pôde provocar tudo o que acabei de vos dizer. Oxalá estejam tão saturados, como eu, da imbecilidade humana e, sem ou com algum esforço, comecem a combater, a partir deste momento, essa negação da vida.

Demorei-vos muito. Não foi minha intenção ser tão extenso, mas a matéria era vasta e não a poderia resumir em duas palavras. Perdoai-me a estruturação do que acabais de ouvir; os motivos saíram ao «Deus-dará»; foi o meu coração que falou e ele desconhece a ordenação metódica dos assuntos: fala pelo sentimento.

Perdoai-me as expressões que vos pareceram ousadas, mas dulcificai-as, começando por elas a vossa redenção e o novo caminho; o caminho activo, aquele que pressupõe movimento e progresso.

Que a bênção de Deus e o Seu perdão desçam sobre todos nós! Que, de hoje para o futuro, sejamos melhores do que fomos até aqui; que não levantemos calúnias infundadas, nem corramos atrás de boatos falsos, mas sim, que procuremos uma vida sã e de amor ao próximo. Que o nosso coração seja vulnerável aos males alheios e que os procuremos remediar desde que peçam a nossa ajuda. Que sejamos como o pedagogo de alta estirpe que põe todo o seu saber à disposição dos discípulos, mas que tal como ele não nos deixemos cair nas exaltações extremistas que nos façam ser demasiado severos ou demasiado bondosos. Aquilo que devemos ser tem de pesar na balança da justiça. É ela que terá de nos nortear por toda a vida! Que assim seja para o bem do Mundo!

 

XXIX

 

O Sol lançava os últimos olhares sobre a serra.

Envolvido nos pensamentos dialogava com as ideias, sem me preocupar com a noite que se avizinhava. A travagem brusca de um carro fez-me sentir que alguém parara a poucos metros.

- Padre.

Sobre o meu corpo caiu o peso do mundo. Ainda tentei dar alguns passos, mas a voz insistiu:

- Padre.

- Leonor - sussurrei.

- Não me tinha ouvido?

Respondi-lhe mentalmente: «Não tive coragem para a ouvir»

- É natural que esteja zangado comigo...  mas depois das suas palavras... venho pedir-lhe desculpa...

- Repare como o dia cai tão rapidamente. - Disse eu, tentando desviar a conversa de um assunto que lhe devia ser doloroso.

- Estou arrependida pelo que fiz. Exaltei-me... portei-me bastante mal. Por minha causa podia ter perdido a vida, a honra, toda a dignidade...

- Não exorbite as suas culpas.

- Podia ter-lhe arruinado a carreira, padre.

- Não é a minha carreira aquilo que me preocupa...

- São as pessoas.

- Nem sei. São, pelo menos, as minhas ideias, o meu misticismo egocentrista, pessoalíssimo. .. desprovido da mais elementar caridade para com o próximo...

- Como pode falar assim! O seu sermão é a completa antítese do que julga dizer-me. . Por que tenta convencer-se que faz tudo por egoísmo, por vaidade, por desejo de se evidenciar?

- Sou... nada mais que fachada. Sou um dos frutos podres que o drama do Universo sustenta e acredita... eu sei...

- Não seja incoerente! Que ideia é essa de querer tornar-se santo em dois dias? Não pode transformar o seu espírito e o seu corpo de um momento para o outro.

- Tenho de transformar.

- Que tontinho! Não vê que não pode. Não vê que não deve.

- Não devo porquê?

- Quer viver só de beleza espiritual?

- E por que não? Por que não hei-de viver, se a minha ideia é essa!?

- A sua ideia não vive isolada...

- Não é impossível atingir o que todos pensam inatingível...

- Só pensa em Deus, padre?

- Penso em Deus e no ser humano. O inatingível é precisamente o ser humano. E eu não posso acreditar que passem mais vinte anos sobre a Humanidade sem que ela se capacite que tem de viver de braços dados, trabalhando para um fim comum!

- Isso está a obsecá-lo. padre. Venha, vamos continuar a conversa dentro do carro. Ofereço-lhe um passeio até à serra.

- Não acho muito conveniente. D. Leonor.

- Outra coisa que o obceca: o demónio do preconceito.

- Em parte... sim e não. Não é tanto o preconceito. . .

- Prometo... Juro comportar-me honestamente.

- Não... não vou.

- Não confia em mim.

- Está bem. Vamos.

- Leve o padre o carro: Aqui tem as chaves.

- Mas...

- Conduza.

Durante alguns momentos o silêncio viveu connosco. Tanto D. Leonor como eu deixámos correr os pensamentos sem mesmo os poder definir e lhes dar valor formal. O carro deslizou suavemente.

- Voltamos para trás? - perguntei à entrada da serra.

- Não tenha medo. Por que tenta separar o espiritual do material? - continuou D. Leonor - O senhor é um padre do ano dois mil. A Igreja de hoje não pode viver de preconceitos, de tradições contraditórias com o tempo actual. O senhor, se quisesse, podia deixar o sacerdócio, viver a sua vida... a Igreja, mais cedo ou mais tarde, tem de sofrer uma nova reforma...

- D. Leonor...

- As suas ideias são semelhantes às que eu me esforço por lhe mostrar. Simplesmente, o senhor, tem medo! Medo de se deixar arrastar pelos seus impulsos, pelos seus desejos... por esse motivo prefere que a Igreja continue espiritualista e evangélica para assim escapar ao contacto com o mundo. A esse mundo a que é capaz de lançar palavras, muitas das quais o senhor não tem a certeza da sua validade. Faz isso para convencer os outros e ao mesmo tempo tentar convencer-se a si próprio.

- Como é inteligente, Leonor.

- Sou-lhe franca.

- Voltemos para trás..

- Parece um ratito assustado. Ontem, enfrentou milhares de pessoas, tomou a forma de um gigante consciente da sua força e certo dos seus ideais. Hoje não faz mais senão gemer. Se quer voltamos... as Penhas da Saúde estão a dois passos.

- Está bem.

- Chegámos. Foi um saltinho. Saímos?

- Não terá frio?

-- Não. Repare... a noite. 

- O ar é cortante! 

- Estamos no ponto mais alto do país. Temos este reino a nossos pés e possuímos todas as condições para ser felizes...

- Voltemos, Leonor.

- Não sente a natureza...

- Voltemos, Leonor. Estes abismos, esta beleza selvagem, estas pedras e o resto de neve...

- Somos os grandes senhores destas paragens.

- Voltemos, Leonor. Se nos vissem, que diriam?

- Sente-se culpado?

- Não... Mas tenho que respeitar...

- Se não tivesse?

- Se não tivesse... seria diferente...

- Poderia gostar de mim?

- Voltemos, Leonor.

- Poderia?

- Eu gosto de si, Leonor.

- Como mulher?

- Como amiga.

- Vamos para o carro.

- Leonor!

- Padre.

- Leonor! - Não me faça isso! Não me beije! Leo... o... nor... uf Tu... comes-me a cara! Vou... Fico... sem uma orelha... Le... Oh! Vamos... Leoo... acalme-se! Por amor de Deus...

- Tu não podes viver sem amor, padre.

- Não me sussurre palavras ao ouvido!

A Leonor prometeu-me...

- Gosto tanto de ti. .

- Foi para isto que me convidou a vir consigo? Largue-me os dedos, não, por favor, não! Não me sugue... não me mordisque os dedos, Leonor eu perco-me? Eu perco-me! Meu Deus! Meu Deus!

- Juro-te, meu amor...

- Não! Vamos embora. Dê-me as chaves.

- Não acredito que te queiras ir  embora.

- Não, não... me... deixe-me! Palavra de honra que quero... Leonor!

- A tua sensibilidade. Onde está a tua sensibilidade? Será que a perdeste ao entrar para o sacerdócio?

- Leonor não me toques, por favor! Vamos embora.

- Eu esperei por ti, meu irmão do amor, meu paraíso infinito... tu és o único... Tu foste o único por quem este coração vibrou. . . serás o primeiro e o único... o único meu amor!

- Não me aperte Le oo...nor.

- Juro-te...

- Leonor querida. Meu amor... perdoa meu Deus, Leonor, Leo... nor. Eu não devia meu Deus, Leonor, eu não... Meu Deus...! eu não... eu não...

Eram seis horas da manhã quando Leonor entrou em casa. Os olhos gritavam-lhe felicidade. Apetecia-lhe beijar o mundo. Esse mundo que tinha possuído e que ficara com ela.

 

xxx

 

Depois da refutação da carta ninguém podia aturar o médico; andava nervoso, excitava-se com poucas palavras. Levantou-se do sofá, onde estivera mastigando ideias, e dirigiu-se para o consultório.

- Maldito padre! - disse entre dentes - Ainda devo ter algum pedaço de vidro na perna. Tenho de lancetar isto.

«Cão danado! A tua exuberância não durará muito. Não descansarei enquanto viveres em sossego. Eu te direi as palavras lindas que babujaste! Em quinze dias todos as esquecerão, meu louco inconsciente!

Palavras de amor, de fraternidade, de disciplina imanente! Louco! Como se fosse possível disciplinar os homens! Não és mais do que um retórico infantil, que lança palavras sem proveito e sem finalidade.

Os Homens são luta, são movimento, são naturezas imbuídas de mutações constantes! Eles são feitos para a vida, a vida cheia de incertezas que lhes molda o carácter e lhes dobra a personalidade! Conhecem a morte e escolhem-na! Não é um padreca qualquer, isolado no centro do Mundo, que fará ouvir a sua voz de conciliação. A sua voz de paz e de amor.

Eu te darei a paz e o amor, padre néscio! Vais ter guerra, guerra sem tréguas e sem quartel que não conseguirás dominar com tanta facilidade como até aqui. Hás-de tornar-te mil vezes pior que os outros! Hás-de amaldiçoar as palavras que disseste! Retractar-te-ás sem rebuço e sem pudor! Hei-de causar-te tal traumatismo que serás tu próprio a entrar de braços abertos, cantando salmos, na trápula que eu terei o cuidado de te preparar! Ai! Uf! Maldita dor! Maldita perna! Tenho que ver o que é isto. Ai! Bem tinha razão. Ainda... ai! Mal...»

- Agora falas sozinho?

 - Deixa-me! - disse Diogo Palhanca para a esposa, sem mesmo olhar para ela.

- É sempre a mesma palavra. Antes de casarmos não te calavas: dizias-me tudo o que de mais belo ouvi. Escreveste-me cartas que eram inesquecíveis poemas de amor. Agora... nunca a mais leve amabilidade, nunca o mais leve...

- Não sejas idiota! Não vês o que estou a fazer? Não me aborreças!

- Só consegues aborrecer-te comigo. Quando estás com os teus amigos e...

- Cala-te! Cala-te, por favor! - Não me calo! Só quando estás com as tuas amigas, com todos aqueles que te agradam, não páras de falar, de rir, de chalacear, de te mostrares amável para com eles. A tua mulher serve-te somente para satisfazer os teus apetites, quando de tempos a...

- Por amor de Deus... cala-te! Já me disseste isso cem vezes!

- Digo e repito. Não me calo! Falarei todo o tempo que me apetecer. Tenho os mesmos direitos que tu, tenho os mesmos problemas que tu... estou farta de servir de espantalho e de peça decorativa! Hei-de falar todo o tempo que quiser e ninguém, entende bem, ninguém me proibirá de o fazer!

O médico foi para o outro lado: colocou o pé sobre um pequeno escabelo e continuou, bastante curvado tentando tirar o vidro, que ainda se devia encontrar na perna.

- Malvado!

- Continuas a ofender-me?

- Deixa-me... falava com o vidro.

- Desculpas! Começo a não gostar das tuas meias palavras, das tuas ordens, dos teus desejos. Estou farta! Ouve bem. Estou farta da tua importância hipócrita e pedante que te faz pairar muito acima de tua mulher e dos teus filhos! Temos de resolver o nosso assunto o mais rápido possível... se estou mais tempo nesta situação dou em doida! Não consigo suportar por muito mais tempo este inferno, esta incerteza, esta tensão acerca do dia de amanhã. Da última vez ainda me convenceste, mas hoje estou resolvida a não ficar nem mais um dia!

- Faz o que quiseres. Irra! És aborrecida! Pegas por tudo e por nada!

- A culpa é tua! Vê o teu interesse. Dizes: faz o que quiseres, sem uma explicação, sem te preocupares a verificar os contras que vão aparecer!

- És tu quem deseja partir.

- Desejo porque me tratas pior do que uma criada! Aqui em casa sou um trapo velho a que limpas os pés sem-cerimónia e sem piedade! Começo a compreender... as tuas palavrinhas doces vão-se escapando, aos poucos, para a Madalena... oxalá eu me engane...

- Estou ocupado. Estou aborrecido. Não quererás guardar as recriminações para outro dia? Por favor...

-Não. Estas deploráveis cenas...

- Agradeço-te, peço-te que me deixes, que não me aborreças, deixa-me.

- Deixo. Deixo sim, mas primeiro terás de ouvir tudo quanto eu quiser. Terás de saber que não sou tão estúpida, tão inculta e tão néscia que não perceba as tuas palavras, os teus mutismos, as tuas sendices! Foram anos de longo inferno; aqueles que passei contigo. O nosso conhecimento nunca passou de intimidades de alcova...

- Nunca te faltou nada.

- Isso não é suficiente. Uma mulher tem que sentir o marido, tem de saber que ela é tudo para ele, tem de saber que ela é a sua continuação e vice-versa. Tem...

 -Malvado vidro!

- Tu nunca viste em mim mais do que um objecto, um objecto de luxo de que te fartaste. Não tinhas inclinação para o casamento? Por que havias de escolher para tua vítima uma mulher simples e indefesa? És um cobarde! Debaixo do teu silêncio só há cobardia e peçonha! Detesto-te.

O médico soergueu-se, bateu as palmas e disse:

- Bela tirada! Final do drama. Os espectadores emocionadíssimos aplaudem freneticamente e a artista sai de cena. Podes sair. Deixa-me. Vai-te embora. Daqui não levas mais nada.

- Cretino, imbecil, histrião que me fazes perder o sentido da educação e do bom senso. ..

- Matilde, não exageres!

- Escusas de gritar! Passarei aqui todo o tempo que me apetecer.

-Não passas! Sai! Sai!

- Deixa-me, não sairei. Estás a magoar-me, bruto, selvagem.

- Eu perco a cabeça Matilde... por favor vai-te embora!

- Não!

O médico, deixou a mulher, saiu para a sala contígua e fechou a porta. D. Matilde deu a volta e entrou pelo lado contrário. Diogo Palhanca debruçado sobre a perna fez que não deu por ela.

- Não me queres ouvir?

- Quero. Mas hoje não, estou mal disposto, não tenho paciência. . .

- Nunca tens paciência, nunca tens um momento para me ouvires, nunca! Há dois meses que não me diriges palavra. Há dois meses que não tenho marido, há dois meses...

- Que não tens relações sexuais, não é isso! É aí que tu queres chegar, não é? És... és imunda! Vai-te! Vai-te! Desaparece da minha vista! Só pensas na porcaria... só pensas...

- Tu é que és imundo, sujo vil! Nunca, nunca mais te perdoarei as tuas palavras! Nunca! És infame... um homem sem vergonha, um...

O médico olhou aterrorizado para a mulher. Ao levantar repentinamente a cabeça, devido ao seu grito exclamativo, erguera os braços. Na mão direita encontrava-se o bisturi. D. Matilde tinha-se curvado naquele instante e ele sentira o fio da lâmina penetrar-lhe no corpo.

D. Matilde deu um profundo suspiro e caiu desamparada, arrastando consigo o afiadissimo estilete.

- Ma-til-de... Ma-til-de - balbuciou o médico.

Diogo Palhanca não sabia o que fazer. Ora esfregava a testa, ora corria aos armários à procura de pensos que não encontrava. Ajoelhou-se junto à mulher, olhou o estilete com os olhos muito abertos e não teve forças para lhe tocar. Depois de alguns minutos de confusão, acalmou, arrancou o objecto perfurante e ligou fortemente o ferimento. D. Matilde respirava a muito custo. Um pequeníssimo fio de sangue saia-lhe de um canto da boca. O médico ao reparar nesse pormenor ficou transtornadissimo. Sabia que a mulher poucas possibilidades teria de se salvar.

 Com os punhos cerrados sobre a testa, o médico encheu-se de pânico e vociferou palavras duras:

«Malvada.! Malvada histérica! Fizeste-me perder tudo! Foste a minha desgraça! Ah, a vida. A pertinácia com que o infortúnio me persegue nestes últimos tempos faria perder um santo! Mas não, não julgues que me derrotaste! Não! - gritava o médico, dirigindo-se a um opositor invisível. Depois, voltando-se de novo para a mulher a sua face carregou-se de ódio, e completamente desfigurado gritava:

«Porquê? Sim, por que havia de ter casado com esta víbora! Que me deste, que me ofereceste durante todos estes anos que coabitaste comigo?

O médico estendeu o punho fechado em direcção à mulher, os seus olhos faiscavam:

«Cabra! Matei-te! Mas tu aos poucos foste matando tudo o que de bom havia em mim. Conseguiste que eu esquecesse os meus sonhos, a alegria de viver entre os meus semelhantes! Que estúpido fui em acreditar que tinha em ti uma companheira compreensiva, sabendo ajudar-me nas minhas dificuldades, compreendendo as minhas lutas interiores e respeitando-as! Em vez disso tu baralhaste essas lutas, tu fizeste com que eu não conseguisse resolver os problemas mais simples... Só para os tolos eu era sábio. Sim, um sábio de trapeira... e tu conhecias a minha debilidade e alimentava-a, velhaca! 

Eu vou para a prisão, mas estou vivo, enquanto tu voltas para o nada de onde nunca deverias ter saído!

Diogo Palhanca estava louco.. O seu olhar percorria objecto por objecto, canto por canto, janela por janela toda a casa. Dirigiu-se para D. Matilde, agarrou-lhe o pulso e reteve-o durante alguns segundos entre os dedos. O coração batia. Pôs-lhe a mão sobre o peito e saiu porta fora.

 

XXXI

 

Sentia-me um farrapo atormentado por pensamentos tenebrosos. Via as mãos rugosas das lavadeiras torcerem-me, voltearem-me, baterem-me com toda a força na pedra dura e eu tinha sempre uns restos de líquido que ainda necessitavam de mais uma torcidela.

«Como foi possível! Como foi possível e como é possível que ainda pense naquela mulher... que vergonha!

Leonor é um país de tentações e eu sou o arremedo de um boneco sem carácter que se entrega às vicissitudes da vida como se aceitasse de braços cruzados um destino abjecto que previamente me tivesse sido imposto!

Canalha! Sou um canalha! Daqui a pouco : estou com cinquenta anos... que lucrei com

a idade e com a experiência? Nada. Continuo um garotão indecoroso!

Foi a primeira vez que me servi lautamente dos prazeres da carne depois de ter escolhido as sendas da. castidade. Leonor não é mulher para desistir do primeiro homem que lhe deu a saborear o passaporte para a eternidade humana. Em virtude disso terei de me sujeitar ao castigo que me devo impor. .. Não, não, penses em subterfúgios, não penses em enganar o teu Deus como enganaste os teus semelhantes: com falinhas mansas.

Vou levá-Ia? Vou fugir? Que faço? Que faço, meu Deus? Oh, Deus! Tu desculpa as minhas infâmias, as minhas cabotinices, os meus desregramentos, os meus planos forjados em surdina e de que eu próprio não me dou conta ou que não sei dar-me conta. Eu devia ser soqueteado até à exaustão, devia ser reduzido ao pó mais ínfimo, e mais miserável, por tudo quanto faço... por todas as minhas torpezas.

Nem sou digno de olhar para Ti e mesmo de pensar ma Ti! Tu desculpa... Não! Castiga-me brutalmente! Flagela-me sem piedade, até eu ser capaz de sentir ódio pelo Teu infinito perdão... até eu ser capaz de me ver eu mesmo... de ver o horror de ser o que sou! Faz isso! Faz isso! Faz isso!»

O real e o imaginário confundiram-se, lutaram, amaram, odiaram e a razão foi-se com razão.

- Padre! Padre! Que tem, padre? Acalme-se! Sou eu o Diogo Palhanca, fui entrando... desculpe... As coisas acontecem sem bem se saber como. Você desculpe aquela burrice! Estou arrependido. .. sabe... precipitei-me, fervo em pouca água e podia, ter sido uma desgraça. Felizmente que o senhor está bem! Padre! Não me ouve? Não me diz nada? Ainda está zangado comigo?

- Quem é você? Por que hei-de estar zangado? Somos cães!

- Está doente, padre?

- Doente? Está doido! Que pergunta idiota!

- Vinha pedir-lhe um favor...

- Doente... favor... humilhação máxima num mundo mínimo. Contradição infinita... igual a zero. Recusado o favor! Ponha-se na rua e vá à...

- Padre! Faça um esforço. Sabe quem está à sua frente? 

- Um cabeçudo.

- Um desgraçado!

- Um cabeçudo desgraçado..

- O homem mais desgraçado que pisa este mundo..

- Que quer o homem mais desgraçado que pisa este mundo?

- Que me ajude.

- E quem me ajuda a mim?

- O senhor tem o seu Deus. .. tem as suas convicções... tem todo o poder humano concentrado na sua crença. Eu ouvi-o padre! Eu rendo-me perante o mais sábio. O senhor sabe para onde caminha!

- Quem? Quem neste mundo inconsciente, sabe para onde caminha?... oh, esta cabeça!

- Venha daí, eu ajudo a deitá-lo. Já se sente melhor? Descanse, não faça grandes esforços. Assim. Isso mesmo. Agora?

- Por que me ajuda? Eu não preciso da sua ajuda. Um cão não ajuda outro. Tire daí as manápulas! Os seus pêlos ainda são mais irritadiços que os meus. Tem graça: somos cães peludos e irritadiços.

- Beba isto, padre. Esteja calmo..

- Você quer envenenar-me, seu cão?

- Juro...

- Sim, quer! Eu sei que quer. Andamos todos a querer envenenarmo-nos uns aos outros... é só uma questão de tempo.. O Mundo está cheio de assassinos. Assassinos! Assassinos!

- Não grite, padre. - Assassinos! Ah, ah, ah! Assassinos! Ah, ah, ah! Assassinos! ah, ah! Você é o cão racionalizado que eu criei. Eu tinha razão. Sempre tenho razão! Ninguém tem mais razão que eu! Eu sabia... você é o meu cãozinho. Os cães falam. Eu sabia, eu sabia... eu sei tudo... sei sempre tudo...

- Oiça-me, padre... Descanse. Sossegue.

Peço-lhe... eu sou cão... sou aquilo que quiser... mas eu matei...

- Matou?

- Matei.

- Cão com raiva... cão perigoso. Rua!

- Estou perdido. Este homem está completamente doido!

- Estamos todos perdidos! Todos! E todos completamente doidos! Ah, ah, ah!

- Padre. Eu sou o doutor Diogo Palhanca.

- Palhanca?

- Sim, Palhanca.

- Já ouvi isso nalguma parte... deixa ver: Palhanca. Pois, Palhanca, palhaço! Pa-lha-ço! É isso Palhaço. Está claro que já tinha ouvido falar, então não houvera de ouvir: Doutor Palhaço. Isto tinha d'acabar assim; todos doutores e todos palhaços... ih, ih, ih! Palhaço palhação, tu és um pateta, e eu sou um parvalhão. Ih, ih, ih.!

- Peço-lhe por tudo, padre...

- De joelhos!

- Eu ponho... eu ponho-me de joelhos... Peço-lhe perdão, padre.

- Padre? Que cão burro! Eu não sou padre, cretino!

- Por amor de Deus, não grite. Daqui a pouco vêm procurar-me, daqui a pouco eles descobrem-me. - Roja-te a meus pés! Ro-ja-te!

- Está bem, padre. Eu faço tudo o que o senhor quiser mas oiça-me. Oiça-me, por amor de Deus!

- Cão! Rasteja, cão!

- Eu rastejo, padre. Matei a minha mulher.

- Tira-me as botas... beija-me os pés... lambe-me os calcanhares... ih, ih, ih... fazes-me cócegas cão!

- Estão gelados, padre.

- Sou um cão gelado, somos uns cães. gelados... não há mais que gelo dentro de nós. Gelo, miséria e podridão. Podridão... muita podridão! Que cães danados!

- Esconda-me, padre. Eles estão achegar. Eles estão a chegar! Eles chegam de um momento para o outro. Esconda-me!

- Eu também queria esconder-me. Esconder a mentira, a peçonha, a vilania, a inveja, o orgulho. Continua a beijar-me os pés, meu filho.

- Peço-lhe por amor de Deus... pelo Deus por quem o senhor luta... pelo Deus...

- Parvinho. Onde está Deus? Eu sou o  teu deus. Tu és o meu deus, somos todos uns cães deuses... uns deuses danados. Ah, ah, ah!

- Não pode dizer isso! Se... se este homem deixou de compreender a única palavra que o obcecava... estou perdido. Ele está doido! Completamente doido!

- Ah! cão, beija-me os pés!

- Maldito! Maldito! Estive eu a humilhar-me, a servir de histrião e tu! Cão! Cão!

- Agora bates-me? Agora rasgas as vestes do teu senhor? Ajoelha-te!

- Eu já te digo se me ajoelho! Onde arranjarei um bom cacete? Vais ver! Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! Uh, uh, uh! Cão! Onde está um bom cacete, cão?

- Na cozinha.

- Na cozinha, hem!

- Doutor.

- Como?

- Que faz em minha casa, doutor? Por que estou descalço? Por que tenho os pés húmidos? Sinto frio, doutor.

- Padre...

- Por que... anda com a tranca da porta da cozinha na mão?

- Fui... estou...

- Está a fazer o quê?

- Já lhe disse, padre: Deixei a minha mulher às portas da morte.

- O quê?

- Matei minha mulher.

- E... está em minha casa?

- Fugi... eu não sei que faço... compreende... não posso estragar a minha carreira... compreenda... - - Matou e... e...

- Foi sem querer... embora... as mulheres sabe... como isto é... talvez se salve. Mas está mal. Muito mal.

- Por que estou descalço?

- Eu calço-o, mas ajude-me.

- Ajudo.. Vou em descida: manchei a pureza dos sacramentos... falhei na vida. Está escrito: morrerei como um falhado... como qualquer irracional... como homem... fui um fracasso... nunca consegui manter a dignidade por mais que umas escassas horas... está bem.

- Posso contar consigo?

 - Quer fugir?

 - Sim, quero abalar o mais depressa do país.

- Tem razão. Isto não é país p’rá gente. Também fujo. 

- Também foge?

- Nós passamos a vida a fugir! O senhor, não foge?

- Mas eu tenho uma razão! Matei... ou deixei muito mal minha mulher. Não deve escapar.

- E... você... quer escapar?

- Sente-se bem, padre?

- Não seja parvo! Isso é lá pergunta que se faça numa altura destas! Continue, seu bruto!

- Desculpe. Eu tenho de fugir. A fronteira é a dois passos... O senhor conhece todos os contrabandistas, é amigo deles... em duas horas estou a salvo...

- Quer...

- Tenho de querer! A minha carreira... tenho uma obra a realizar, quero, tento descobrir...

- E descobre?

- Descubro. Ajude-me, padre. Vá chamar o Serralho. Eu sei que o Serralho faz o que o senhor lhe pedir... ele conhece os cantos à região... mesmo que não passássemos hoje, ele escondia-me e... passávamos amanhã...

- O Serralho?

- O compadre do Clemente. Baptizou-lhe a filha na Senhora do Incenso.

  - Uma filha da Senhora do Incenso? Não é possível! Não é, possível!

 - O Serralho do sítio onde aparecem as mulheres com os espíritos.

- Espíritos...

- O senhor pediu-me para eu lá ir.

- Quem disse que era?

- O Serralho.

- Que digo ao...

- Serralho.

- Que digo ao Serralho?

- Que tem de me passar para o outro  lado.

- Para quê?

- Eu ainda dou cabo deste safado! - gritou o médico - Para que havia de ser! Para Fugir! Fu ...gir! Fu...gir! - Fugir!!!

- Fugir, está doido! Fugir? Ninguém pode fugir; Todos querem. Todos! Mas ninguém consegue. Ninguém! Estamos todos presos à Morte.

- Eu tenho de conseguir! Você diz ao  Serralho ou eu... padre! Olhe que eu estou perdido!... 

- Estamos todos perdidos e somos todos .. apanhados. Todos! Ah, ah, ah! Este queria fugir! Pateta! Cão pateta e doido.

- Vá para o diabo com as suas idiotices!

- Chama o Serralho ou não? 

- Para quê? ..

- Faça um esforço. Concentre-se.

- Para quê? .

- Eu perco-me cão! Mas tu também cá não ficas! Sabujo! Sabujo infecto! Vou-te matar... vou-te matar com estas mãos...

- Que faz?

- Chamas o Serralho?

- Quem é o Serralho?

- Maldito! Maldito! Padre maldito! Grande cão! Onde pus o pau? Está ali. É escusado levantares as mãos! Nada te poderá salvar... cão! Cão maldito! Maldito padre! Zás! Zás! Zás! Zás!

 

XXXII

 

Li no jornal o atentado e não acreditei; o doutor Diogo Palhanca não podia ter sido vítima do diferendo entre Árabes e Judeus. Depois, Leonor e D. Matilde confirmaram-me a triste notícia. Leonor veio despedir-se. Duas lágrimas na voz diziam-me quanto lhe devia custar esta fuga.

Os pensamentos saíam comigo do hospital e enquanto transpunha a porta e rumava sem destino as palavras de Leonor ganhavam forma:

«Por que se mortifica, padre?»

«Por que vai para tão longe Leonor?»

 «Lourenço Marques está a dois passos.»

«Tem razão. O pensamento encontra-a em menos de um quarto de segundo».

«Não fique com esses olhos tristes, padre.»

«Também me lamenta?» .

«Por que havia de o lamentar, não me diz? O senhor procurou-se desesperadamente. A culpa não é sua. É um insatisfeito que não encontra explicações para as suas perguntas. O senhor vive de sonho e fantasia, eu... gostei de si... talvez por isso mesmo tentei descê-Io à realidade... não consegui...»

«Leonor. Agradeço-lhe tudo o que me deu.»

«Tentei acordá-lo, pequeno sonhador.»

 «Amo as pessoas e o mundo que rodeia...»

«O senhor ama as pessoas, mas coloca-as num plano superior. As pessoas não são deuses, padre! Capacite-se disso. Reduza as pessoas a si mesmo... o senhor deseja muito mais do que é capaz.»

«Falhei em tudo, Leonor. Tenho a sensação de que fui toda a vida um garoto falhado, insatisfeito e incoerente. Amei todos os ofícios, todas as profissões... quis ser tudo aquilo que elas representam e não me realizei em nenhuma delas.»

«E lamenta isso? Eu admiro esse seu desejo, essa ansiedade de perfeição.»

«Falhei em tudo.»

«Não diga isso! Por que se destrói, conhecendo o seu ideal.»

«Que ideal, Leonor.»

«O amor.»

«O amor ?»

«Sim, o amor, porém não consegue realizá-lo, não é capaz de lhe dar a forma concreta que ele deve ter. Esse amor está misturado com a Natureza, com as pessoas, com os seres inanimados... o senhor ama tudo. No dia em que consiga dar-se de alma e coração a uma destas partes... ter-se-á encontrado.»

«Decidi pedir a minha resignação, Leonor, sei que mais uma vez falhei.»

«Não deves fazer isso. Milhares de pessoas esperam-te. Tens ainda muito para dar. Não faças isso. Compara-te comigo e vê a distância entre o teu vasto mundo e a estreiteza do espaço em que eu me movimento. Não fui, não serei nada. Só me senti válida quando... tu sabes quando. Tu consegues insuflar vida aos indiferentes. Tu foste o único que me soubeste despertar da apatia em que estava mergulhada. Contigo vivi, contigo amei, contigo senti-me. Tu deste-me tudo num curto espaço de tempo. E se eu não te sentisse...»

 «Falhei, Leonor».

 «Ninguém conhece os nossos momentos de felicidade.»

«Conheço-os eu... conhece-os Deus.»

«O teu Deus é uma parte de ti próprio. Tu procuras uma coisa que anda dentro de ti. Como é maravilhoso quereres ser bom, quereres ser homem... lutar, cair, rastejar... levantar... isto é o Homem. Tu tens de continuar!»

«Espera, Leonor».

«Adeus. Não digas nada... conheci-te... amei-te... sou quase totalmente feliz...»

«Leonor!»

«Tu trazes felicidade. Tu não me pertences. Tu és de todo o mundo».

«Leonor! »

«Adeus meu pequeno idealista.»

Numa leve corrida Leonor afastou-se de mim enquanto pelo rosto, grossas lágrimas humedeciam os locais por onde passava. Coisa estranha. Tive a impressão nítida de ter ouvido o seu pensamento dizer-me: «Oh, meu amor! Tu não sabes... mas eu levo-te comigo. A tua continuidade está no meu sangue, o teu ardor pulsa nas minhas entranhas, a tua felicidade e a tua insatisfação levá-las-ei para sempre».

Procurava na serra um lugar onde pudesse viver longe dos homens e do mundo sem estar sujeito aos favores e à crítica de quem lhe apetecesse... fugia de um perseguidor que vivia em mim.

Já há muito caminhava pela montanha. Os pensamentos atropelavam-se, saltavam, andavam pelos extremos: era santo, era mártir, era eleito, era hipócrita, era a... encarnação do homem dos nossos dias: sequioso de poder, mas infelizmente cego.

O meu espírito, cheio de contradições, não se fixava em algo de concreto.

De tempos a tempos ouvia-me: «Tem vergonha! És um fugitivo, és um fugitivo! Um reles prófuga que tem medo, medo de lutar até ao fim. Tu és o homem cego e descrente.»

A escalada era difícil e a voz atormentava-me à medida que me afastava da cidade. «Como é possível desceres tão baixo, seres tão infame? Como queres encontrar paz no coração dos outros homens se tu próprio vives ódio, orgulho, inveja! Toma um partido: a apatia é a morte do ser humano! Todos caímos. Grita ao mundo à tua verdade, penda ela para onde pender! Volta! Volta!»

Volta, para quem? - Interrogava-me ansiosamente, desesperadamente à procura... à procura...

Gotejando o fel do corpo sentei-me num pequeno muro.

De coração calmo, de olhos limpos, voltei-me para a planície. O espectáculo era soberbo.

Conversei com a Natureza e resolvi em dois segundos aquilo que não conseguira em quarenta e seis anos.

«Tu desculpa meu Deus. Para atingir um fim é necessário acreditar-se plenamente... ter um suporte inabalável. Acredito na Tua existência, mas, não tenho a certeza da minha potencialidade creditiva... talvez acredite, não acreditando... não sei... desculpa... o problema é muito difícil e o meu pensamento está preso. Agora mesmo ia fugir, fugir sem saber para aonde, sem saber de quê. Esta paragem mostrou-me que fugia às responsabilidades. Volto. Modifico a minha atitude. Tal como agora o faço, também um dia se Te encontrar não necessito de ser padre para Te amar e respeitar.

«Os padres estão a fechar o seu ciclo, a transformação tem de se processar. O mundo precisa de homens... Homens que tenham a coragem de enfrentar os seus erros sem estarem agarrados a varinhas mágicas... «Adeus. Bem hajas por todo o amor e tudo o de bom que me deste e fizeste ser. Perdoa-me... eu sei que Tu compreenderás... Se existes dá-me a Tua benção e faz com que o novo lar, que vou construir, seja o início de um novo mundo. Se não existes... obriga-Te a existir porque tenho necessidade de Ti e da Tua amizade.»