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TU CÁ, TU LÁ

 

NOTA PRÉVIA

 

Devido aos constantes pedidos do livro “TU CÁ, TU LÁ” e não tendo intenção de o reeditar, aproveito a Internet para satisfazer a solicitação dos leitores.

O livro foi publicado em 1962, sem qualquer receio pelas consequências que daí adviessem. Nunca me reconheci de esquerda ou de direita. Sempre me senti um ser humano a lutar por outro ser humano e a tentar perceber o porquê das diferenças que nos separam e nos envergonham.

Em 1968, Sartre, seis anos depois da saída do”Tu Cá, Tu Lá”, dizia: “ao intelectual clássico, opõe-se o novo intelectual que nega em si o momento intelectual para tentar encontrar um novo estatuto popular; o novo intelectual procura misturar-se nas massas populares para fazer triunfar a verdadeira universalidade”.

Adiantado, assim no tempo, ao Guru do Existencialismo, utilizei a linguagem própria do povo para que ele recebesse a mensagem, a compreendesse e a utilizasse como melhor entendesse. É uma linguagem popular onde eu próprio me envolvo e com expressões utilizadas na época: escrever em confusão para encontrar a via do "apetite pela leitura".

O livro esgotou-se. Eu nunca fui incomodado.

É preciso dizer que a censura funcionava para os jornais; cortaram-me exactamente oito artigos. O livro só era alvo de apreensão se fosse muito publicitado e se as editoras insistissem no tema desenvolvido.

Para as Editoras, a apreensão de um livro, representava bons lucros: “livro proibido era o mais apetecido”.

Como nota esclarecedora direi que me servi sempre escrita para “obrigar” o povo a ler. Verifiquei, com outros livros, que algumas pessoas, de idade avançada, chegaram a ir para a escola para saber o que os livros diziam. Escrita simples, directa e com o objectivo de enviar uma mensagem e uma força para alguém que, desamparado no meio de tantos doutores, encontrava muito poucos que o defendessem.

Dada esta explicação espero satisfazer assim a curiosidade de todos aqueles que se interessam por conhecer os meus livros publicados.

O livro “TU CÁ, TU LÁ” foi distribuído pela editorial Aster, a todas as principais livrarias do país.

 

TU CÁ, TU LÁ

 

A IDEIA

 

Os tempos que circulam, fazem-nos pensar seriamente na vida que cada um leva, ou seja qual o caminho que ele, o nosso semelhante, está trilhando. E isto, ainda que pareça contradição, não é o chamado meter o nariz na vida alheia, com o sentido deformado da vulgar quadrilheirice. Esta necessidade de nos conhecermos uns aos outros, de procurarmos saber como vive, como pensa, como age o racional que está ali à nossa frente e que nunca nos foi apresentado é simplesmente a preparação da solidariedade humana. Sem ela, nunca, mas nunca - disso fiquem  bem cientes – pode existir nem prosperidade nem paz.

O livro que segurais entre mãos é tentativa de uma síntese, ainda que superficial, da condição humana. Se ela foi bem ao mal feita não é a mim que compete dizê-lo. Sois vós que tereis de pronunciar-vos.

A leitura espera-vos; com licença, eu retiro-me.

Pena, 1962

 

I

 

A audiência tinha terminado sem ter caído no goto fosse a quem fosse.

Manuel barbas fora condenado a duzentos e cinquenta escudos de multa, mais as custas e selos e o diabo a quatro. A verdade é que o pobre homem seguiu direitinho à grelha por não ter nada de seu a não ser mulher e dois filhos acabados de desmamar. E tudo isto porquê? Por que se condenava assim um pacato cidadão, um homem amante do trabalho e da família, sempre respeitador, sempre bastante educado no seu bom dia e boa tarde, saído daquela boca tacanha de semi analfabeto, em virtude de ter que ajudar os pais quando o tempo da escola devia ter sido seu. Tudo isto, porque mandara o patrão bugiar, quando este farto de ofender, porque achava tudo quando fazia mal feito lhe chamou “grande chavelhudo”. O pobre não aguentou mais; pobre sim, mas honrado tanto o Manuel como a mulher; e vai-se a ele com o rabo da enxada que a não lho tirarem da vista turvada pelo sangue e pela irritação ou se escavacava o cacete ou lhe partia as costelas.

"Ora o diabo! Que fosse ofender quem ele quisesse e deixasse o trabalhador em paz. Se não estava contente com o serviço que o pusesse a andar sem lhe dar sequer quaisquer satisfações; mas agora, chegar ali e enche-lo de nomes só porque vinha com a mosca, ou porque a vida não lhe estava correndo muito bem, isso é que não! As outras pessoas não têm culpa das más disposições de cada um."

Depois foi o arco-da-velha, sempre a mesma coisa, patrão com dinheiro, trabalhador ganhando vinte mil reis mal coados e bem suados e desprotegidos e toca de ir malhar com os ossos à prisia.

O advogado defesa, que em abono da verdade fora um amigo fixe pois não lhe levara um tuste, bem pleitou a causa: que na terra somos todos iguais, que todos temos os mesmos direitos, que devemos a nossa maior ventura à fraternidade que reina entre as pessoas, que sendo o Estado corporativo, baseado na igualdade dos cidadãos perante a lei, não havia razão de se proteger um rico à custa de um pobre e patati, patatá, para aqui para ali, lá conseguiu que o homem só fosse condenado ao que aludimos; como nem isso tinha, zás, voltou à enxovia de onde tinha saído.

E se estava um dia! Aquele em que foi novamente enjaulado... um sol esplendoroso, um sol português como no resto do mundo ninguém, por mais pintado, é capaz de encontrar, o sol que até faz arrebitar um morto e espevitar o cheiro do rosmaninho; cheiro que naquele aziago dia, sem o zumbido das moscas a aborrecer o parceiro, pairava ao de leve por cima de todas as cabeças sem distinções absurdas e anacrónicas. E toda a gente da pequena vilória teria certamente o seu primeiro dia feliz daquele ano, pois o tempo tinha andado enfarruscado até aquela altura, se não tivesse havido a condenação do Manuel barbas.

A mulher, ao ouvir a sentença, largara a chorar que nem uma desalmada não se conformando com o pensava ser uma injustiça, mas que não ousava gritar. Porém lá no fundo, muito no fundo, mesmo sendo uma alma simples e boa, recta e amante dos deveres que a lei impõe e as consciências puras aceitam, amaldiçoava o dia em que o marido tinha ido sachar batatas para o campo do Sr. Inácio.

Não tinha coragem de pedir o dinheiro emprestado para ilibar o homem da culpa só remível a metal sonante e por isso mesmo, talvez mesmo só por isso ela chorava desesperadamente. Os filhos, quais velhinhos, muito trôpegos e mal se podendo ter de pé, se quisermos comparar quanto os extremos das idades se tocam e por que às vezes se diz das pessoas de muitos anos que voltaram à meninice, agarrados às saias rabudas, choravam também como num coro a três vozes, em que qualquer delas é desafinada.

Os vizinhos, as pessoas amigas, os conhecidos, todos a tentavam consolar; não vendo eles, pobres atrofiados de espírito, que o melhor meio de o fazerem era juntaram-se, agarraram na miséria de dinheiro em tinha ficado toda aquela sujeira do senhor Inácio e vamos de soltar homem; mas não, nada disso lhes passou pelas acanhadas mentes e aquela alma sem mácula e de coração limpo lá voltou sem o seu Manel para a choça, que ela, com artes mágicas, quase fazia parecer uma casa.

O marido não aguentou passar algumas noites sem o calor da mulher e o gorjear dos filhos. E a verdade, somente a verdade, sem dizer água vai e com bruxedo ou sem ele, em dez dias, deu o triste pio no meio daquelas quatro paredes sem qualquer espécie de adorno, meio amareladas e com uma janela parecida com as das gaiolas dos grilos.

Quando o carcereiro levantou o alçapão para lhe levar o almoço, oferta generosa da Justiça a quem lhe cai sob a alçada, deu com o homem mais rijo que nem uma pedra. O bom do guarda ficou tal maneira embatucado com a malfadada sorte dos seus semelhantes, parcos de haveres como ele, que ali ficou, pasmado e quedo como uma coruja em dias de vendaval e quando o azeite não abunda, até que, os guardas, preocupados com a sua demora e pensando o pior, o vieram encontrar junto do prisioneiro que deixara o mundo dos vivos. Estava perto do cadáver, com a malga de caldo na mão e parecendo ter-se-lhe varrido o juízo. E tinha. Andou mais de um mês sem tugir nem mugir para quem quer que fosse e quando abriu o bico foi para dizer que nunca mais guardava ninguém, que os aguardasse quem os lá metia se quisesse. Disse e fê-lo; dinheiro, ganha-se em qualquer parte desde que se saibam o usar tanto as mãos como a cabeça. E, ala que faz tarde...

O povo não queria acreditar.

- O quê, o Manuel Barbas? Oh homem, tu estás taradinho e deixa-te de mangações com coisas sérias, isso é lá possível!

- Já te disse. Possível ou não, com verdade ou sem ela já foram chamar o médico para lhe fazer autópsia ou lá o que é essa tampa de abrirem um homem depois de morto e o tornarem a fechar depois de lhe olharem as tripas, como se aquilo tenha alguma coisa que ver. Digo-te que é tão verdade como eu me chamar António. Antes o não fosse, não...

- Eh pá! E eu a lembrar-me que andei com ele na escola, que jogámos os dois ao berlinde, ao peão e à marca, que tantas vezes fomos fazer as ceifas juntos, para uns filhos da mãe como aquele que lhe arranjou este lindo par de botas e agora, catrapus, aí está ele de pernil esticado, fazendo tijolo de costas e eu aqui fresco como uma alface. Que porca de vida! Quando menos se espera, aí vai; raios partam isto! Quando havemos de ser nós próprios a criar-nos e descriar-nos? Quando? Andam só a inventar bombas e outras mixordices para darem cabo do canastro uns aos outros, mas olha que não inventam nada que não deixe ir um homem abaixo das canetas como este foi; olha que não inventam, não.

Está aqui um tipo ao sabor da corrente, queira ou não queira; entretanto chega a hora e vai-se; olha! Abóbora, abóbora, para esta gaita.

- Temos de ir ao funeral. Sabes a que horas é?

- Julgo que ainda não está marcado. Mas vou saber e se quiseres envio-te lá o miúdo a casa avisar-te.

- Se não te custa.

- Fica assente, logo que souber a hora exacta mando-te dizer.

- Até logo e bem-hajas.

- Adeus.

O enterro foi o mais concorrido de há quarenta anos segundo os dizeres dos oráculos da terra. Lembravam-se e ninguém poderia esquecer, do enterro do senhor Damião. Mas esse foi outro caso, loiça fina. O homem arranjara fortuna; trabalhara toda a vida, retirara-se da cidade segundo se dizia à boca pequena por não colaborar nalgumas trafulhices em que altas personalidades o queriam meter. E, toca de trabalhar e de fossar de outra maneira; até que, tendo fortuna razoável e não sendo casado, ao sentir a morte caminhar a passos largos em sua direcção, como cão esfaimado no encalço do osso fosse arrebanhá-lo, fez testamento.

Chamou o presidente da Câmara, chamou o prior, chamou um empregado de comércio, um agricultor e um advogado. Com a assembleia reunida, sem mais delongas, expôs-lhes o motivo por que lhes tinha pedido para comparecer: - “têm aqui papel e tinta, alguns bolos caseiros e boa pinga nos quartos ou salas para onde forem distribuídos se assim concordarem. Lá abrirão cada um o seu envelope que aqui têm e responderão à pergunta que nele está formulada.

Com a anuência de todos encaixou-os cada um em seu lugar para responderem à seguinte questão: “quais são as pessoas, no seu entender, mais necessitadas da vila?”.

Feitas as respostas, comidos os bolos e bebida a vinhaça, sem um comentário, mas com forte aperto de mão pleno de agradecimento, dado com toda a pujança do último alento da vida e convidativo à retirada, foi-se despedindo de um a um, sem os deixar apoiar verbalmente o que tinham escrito.

Seleccionando vinte nomes de entre os mais necessitados lá do pequeno burgo, fez o seguinte testamento: “deixo ao João, ao Faustino, ao Acácio etc. e tal, isto e isto com a condição de não poderem vender nem trocar, nem arrendar enquanto vivos, as sortes que lhes ofereço para que, com este principio de vida, delas se sustentarem e progredirem como é justo que viva e suba na escala do mundo qualquer ser humano.”

Feito isto, cerrado o testamento, esperou que a suave morte para contrabalançar os espinhos bem duros da vida lhe viesse dar o esquecimento das maldades e das intrigas da terra. E ela veio, a morte, veio e ele, senhor Damião, não se fez arrogado. Farto do mundo até à raiz dos cabelos já ele estava. Levou um enterro de estalo, ninguém por mais abelhudo que fosse o poderia negar. O do Manuel Barbas não lhe ficou atrás; que gentio!..Até vieram padres das aldeias vizinhas, coisa que só acontecia quando algum nababo, por ironia do destino, deste destino que se está marimbando para as riquezas das pessoas. Logo chega a hora da morte, aí esticam o pernil como qualquer pobretanas sem terem podido corromper o espectro da igualdade na forma triste de um cadáver.

Em abono da Justiça, as pessoas nem sempre são egoístas, torpes, animalescas; por vezes, nas vezes mais belas, mas também nas mais raras, das suas passagens pela terra, têm coração. O único erro nesses momentos é só o de prestarem um pouco de atenção aos seus semelhantes, depois de eles terem largado este mundo de mexericos.

A viúva ficou passada de todo; não queria acreditar; não, isso não é possível, “o meu Manuel, forte como um toiro de cobrição, ir-se assim abaixo das pernas!... , por amor de Deus, não me esteja a atormentar a alma senhora Aninhas...

- Já lhe disse mulher, acalme-se, não há outro remédio, paciência, é a vida. O preciso agora, é olhar pelos pequenos.

- O meu Manel? Nunca, não senhor, está enganada, ninguém melhor do que  eu o conhece; olhe que vivo com ele há três anos, e por isso sei bem que não pode morrer por cá aquela palha; então não vê ali os nossos dois filhos? Aquilo é o fruto do conhecimento das pessoas que se intendem; não senhor, não senhor, e por favor não me consuma.

- Ó mulher, por favor, entenda-me, faça um esforço – e fez e entendeu mesmo. Quando a realidade nua e marrana enxergou, sem dizer chus nem bus, ficou estendida como uma defunta que o foi, passados dez dias depois do marido.

O enterro também foi lindo e o padre fê-lo de graça porque não havia a quem pedir dinheiro e se não o fizesse podia ser uma carga trabalhos. A Joana para mais era uma boa mulher, ainda que seguisse à risca o ditado: “primeiro as obrigações e depois as devoções” e era certamente por isso, pela falta de tempo que não ia à igreja. Confortado com esta sã ideia, lá a conduziu à última etapa no caminho que todos, mas todos, temos que percorrer no último suspiro da vida.

O Sr. Inácio foi o bode expiatório daquela tragédia. O povo enfurecido, açaimado durante anos, rompe o bafio putrefacto que o envolvia e com forquilhas e varapaus intimou o cevado com forma de gente, cheio à custa do suor dos que, com o sangue do rosto o faziam respeitado e temido até aos olhos dos graúdos, a abandonar a pequena vila, pacata e arejada pelos ventos purificadores da Serra e dos pinhais.

O pequeno déspota, bem deu por paus e por pedras porém nem a guarda nem ninguém lhe valeu. As autoridades compreenderam sagazmente que era um figo meio podre que era necessário afastar ainda que com isso ficassem lesados: acabavam-se os presuntos, o vinho maduro e as idas à cidade a convite do senhor Inácio, o qual era dos poucos que tinha carro. Contudo, nada disto temeram perder, iluminados por instantes pelo verdadeiro sentir da vida, fizeram vista grossa quando o povo, em massa, convidou sua Ex.ª a fazer as malas, o meteu no carrinho e adeus minhas encomendas.

Bem barafustou, bem arengou sobre a sua culpa involuntária, nada lhe valeu; calados como ratos em marcha fúnebre indicaram-lhe o caminho com as pontas bem afiadas das forquilhas acostumadas a endireitar estrume.

Perante a evidência, duas malas de roupa e alguns berloques de utilidade e até mais ver senhor Inácio.

Quando o sentiram longe, calados como tinham ido, calados voltaram, sem nada estragarem sem a ninguém ferir, como pessoas conscientes do bem e do mal, como alguém que conhece perfeitamente que nada lucra em incendiar e maltratar seres inanimados ou mesmo animados deste que tanto não seja necessário para a sua própria defesa.

 

II

 

Quem tomou conta dos pimpolhos no meio daquela confusão babilónica que se seguiu aqueles tristes acontecimentos, foi uma vizinha das pobres vítimas da incompreensão humana.

A senhora Teresa ficou com os miúdos, porque além de gostar imenso de crianças também fora muito amiga dos pais dos cachopos e custava-lhe ver que os levassem dali. Como não apareceu ninguém de família a reclamá-los o presidente da Câmara farto de a ouvir pois argumentava com toda a dialéctica campesina que por ser a mais lhana se torna a mais difícil: “que sempre estavam melhor lá na terra do que irem para uma cidade, que os rapazes até podiam ficar atrofiados com os ares que se respiram nesses molhos enormes de pessoal e de casas, e para aqui para ali, porque toda a vida desejara ter filhos, mas que o “seu home” e ela nunca se compreenderam lá muito bem para arranjarem um filhote e que agora com a idade muito menos, que não havia quase esperanças de vir qualquer coisa ao mundo com parecença de gente e mais isto e mais aquilo.

- Ai quere-los? Então leva-os, atura-os, limpa-lhes bem as ventas e vê se os trazes asseados.

- No tenha dúvidas, hão-de andar que nem um brinquinho. – E levou-os e andavam na medida do possível; naquele possível feito pelo espírito dócil ou rebelde que todos os catraios demonstram na tenra idade e que às vezes, a maior parte das vezes fica pela vida fora, e não pelos muitos cuidados maternos.

A Teresa e o marido queriam aos ganapos tanto como às meninas dos olhos, porém, mais duas bocas a sustentar assim de uma assentada era um bico-de-obra. E vá trabalhar, de mourejar como uns galegos para que nada faltasse aos seus filhinhos recebidos sem as dores do parto e sem as aflições paternas, sem o nervosismo e os passos descompassados do momento a que podemos chamar bem crítico, enquanto os “mais que tudo” não vêm respirar cá para fora os miasmas ou o ar desinfectado dos primeiros tempos da sala de partos.

Um, cava para um lado, o outro, toca de lavar roupa, ou esfregar casas ou como mulher-a-dias nos lares dos mais afortunados

Os garotos, fora das vistas dos pais adoptivos, faziam o que todos fazem na sua idade e segundo a inconsciência divertida de todas as crianças em qualquer parte do mundo, seja qual for a sua tez ou maior ou menor pressão atmosférica.

A Teresa que gostava de os ver que nem uns amores danava-se toda quando chegava o declinar do dia e os encontrava mais sujos que nem uns bácoros. Como eram finos como corais, tudo o que viam aprendiam num abrir e fechar de olhos, se por casualidade o que viam não se tornasse a repetir; mas como a vida é feita de repetições mais ou menos semelhantes, não era preciso esforçarem a massa cinzenta para fixarem o que os seus conterrâneos mais graúdos faziam. A linguagem de salão própria das vilas, das aldeias e das cidades, era como um rosário bem aprendido na catequese mesmo sem o auxílio das orelhadas da catequista. E na sua ingenuidade de gaiatos vá de desfiarem e de se insultarem mutuamente com os piropos ouvidos na rua, segunda casa de quem é pobre.

Os pais, ao princípio, achavam muita gracinha às asneiras expelidas inocentemente, mas a pouco e pouco iam ficando preocupados com o chorrilho contínuo de cumprimentos que um e outro se faziam.

Bem pensaram a melhor maneira de debelar o mal, o que se afigurava difícil em virtude de os vizinhos acharem piada e impedirem assim a acção repressiva, por constante e inconscientemente apoiarem as crianças.

– Assim é que se fazem homens, deixai-os para aí dizer duas laironas, mandar tudo isto à fava, que não é por aí que vem mal ao mundo.

E não era, se eles as dissessem e se aprendessem aquela polida linguagem; porém, por cá aquela palha, estivessem onde estivessem, toca de mandar uma cuspidela para o ar, no desconhecimento completo do ditado popular que é um aviso para as pessoas que falam do seu e do alheio: “cuidado, não cuspas para o ar, que te pode cair na testa”

A Teresa bem se ralava. Contudo os conhecidos continuavam: "isso passa quando entrarem para a escola, os professores lá se encarregarão de os endireitar." E entraram, mas não chegaram bem a verticalizar; torceram um pouco a puxar para a direita, mas ficaram sempre um nada arrevesados.

O mestre que lhes calhou pela porta, era um rapaz novo, cheio de vida, pleno de pujança e de boa e verdadeira vontade de oferecer o seu melhor. Revendo-se e recordando os seus bons tempos escola nos próprios alunos, compreendendo-lhes os anseios, vendo as lutas íntimas de cada um como se fosse ele mesmo senti-las, como se os papéis se invertessem e ele fosse o aluno e eles os professores.

Paternalmente, mas sem pieguices, com uma psicologia toda feita mais do seu eu pessoal do que dos parcos conhecimentos que o tinham obrigado a encaixar na cabeça à custa de bastantes berros de alguns professores feitos a martelo, ao conhecer o valor real do Zé Barbas e do Vítor Manuel, propôs-se tirar o maior partida daqueles órfãos, de inteligências e espertezas invulgares, meio inconscientes por serem novos, mas já com uma dose de defeitos bastante enraizada. Como eram ainda muito jovens esperava, com facilidade, dominar aquelas tendências perniciosas feitas pela imaginação e pelos ouvidos, lentamente, no convívio com a multidão boa, mas mal dirigida.

A preparação para o embate com a realidade da vida, para o verdadeiro despertar das consciências com o ensino das primeiras letras e com a demonstração pela pequenada, de que foram enviados ao mundo não para um constante divertimento e uns chutos numa bola, mas sim para trabalharem afincadamente para uma melhoria visível do lugar que lhes foi oferecido e onde estavam, ainda que isso nunca tivessem aprovado ou recusado.

Quando começavam a endireitar, de um dia para o outro, o professor vai-se embora chamado a cumprir os deveres para com a Pátria, ele, o pobre que os estava cumprindo como poucos e com que benefício. Chamado a cumprir deveres bem diferentes, deveres, que quase todos os países impunham para se defender de outros países criando assim, uns e outros, um clima propício para se desfazerem. No entanto, lá foi no dia aprazado. Que remédio senão amochar. E lá andou, foi assentar praça, chupar durante dezoito meses, pelo menos, a vida comunal da caserna onde o contacto com o próximo nos faz compreender melhor os nossos semelhantes e onde se fortifica o olfacto.

O mestre que o veio substituir, um mês depois, viu-se e desejou-se para dominar aqueles ganapos endiabrados. Trinta dias à rédea solta, sem dirigente e com a bola de trapos nos pés, a saltar ao eixo ribaldeixo, a andar às cavalitas ou a jogar à cavaquinha, quem é que os segura?

O bom do velhinho via-se numa fona.

A idade, que lhe pesava, fazia-o acarretar métodos obsoletos de ensino e vá de distribuir tapona a torto e a direito, canada para este lado e para aquele, como melhor caminho para endireitar aquela cabrada – segundo a sua própria expressão. Mas qual carapuça! Não endireitava nada, parecia que se punham piores! A sensibilidade, a forma de conduzir seja quem for, está na maneira como se usam as palavras e não com directivas violentas; isso são meios que nem para selvagens se usam. Está bem que uma lapada bem assente no momento oportuno nunca fez mal a ninguém; mas ela só deve servir de aviso e não de meio para se alcançarem bons resultados. Quem é criado murro e pontapé, tem de por força virar em revoltado e usar dos mesmos sistemas para com o seu semelhante quando crescer. Porém, o nosso homem, habituado durante anos à algazarra, às traquinices mais irreverentes da pequenada, habituado a fazê-los sair da Escola só ao anoitecer, pensando que assim fazia um bem e não o erro crasso de cansar as crianças e de as fazer aborrecer o ensino, nada daquilo lhe fazia confusão e era a melhor maneira de matar o tempo; uma orelhada para aqui, um tabefe para acolá e quando mal se descuidava estava na hora das migas. Se, não fizessem barulho e não fizessem tropelias, certamente que seria ele quem estranharia e por certo era capaz até de lhe dar o mal murcho. Ali estava a temer a reforma por causa do hábito de há tantos anos a fazer sempre o mesmo. Depois, em que é que havia de arriar?

As crianças devem ser crianças quando são crianças e homens quando forem homens: era a sua teoria e por mais bizarro que pareça ela está certíssima, a maneira como preparava os miúdos para irem subindo as escadas da juventude até à maioridade é que não estava totalmente certa; e como não estava, quais seriam os bombos da festa? Os rapazes seus alunos. Quem é que havia de ser, se não eles?

Ano após ano, o Zé e o Vítor, com bons ou com irregulares professores, ficavam sempre na vanguarda em todas as lições por melhores adversários que tivessem naquele estudo meio infantil meio a sério

"Era o destino," dizia quem tinha conhecido os pais. Foram enjeitados pela sorte de conhecerem quem, com a conjugação das suas células os tinha trazido a tão agitado e bilioso mundo. Em compensação eram finos como ratos e marotos como não existiam iguais, contudo, isso até lhes dava graça; a graça que, aos filhos dos menos endinheirados, é difícil de encontrar pelos seus semelhantes, fortes em numismática; por aqueles que só sabem sorrir e fazer festas aos miúdos bem vestidos, àqueles que nada lhes falta e, que talvez por isso, tão patetinhos parecem; como que passando já por uma angústia prematura de nada precisarem de fazer, para transpor o círculo vital e de tédio que começaram a ser envolvidos. Mas a estes é preciso agradar por causa dos papás e vá de os enfastiar com perguntas e gracejos.

Quando os pais, a muito custo, uma vez de mês a mês, compravam uns arremedos de bifes de carne de terceira, aí apareciam os dois farçolas, de palito na boca, a imitarem o Sr. Álvaro de Sousa que todas as pessoas sabiam que comia carne às terças-feiras por vir palitar os dentes para o café, até que, no meio de um pscht, pscht também demonstrativo de falta de polimento chamava o empregado para lhe pedir a conta, a qual era composta por um café em copo com cheirinho. Os pobres pensavam, na sua vacuidade de conhecimentos, que era assim como o senhor Sousa que deviam proceder, porque era rico. Eles, como quaisquer outros miúdos, doces ingénuos, que naquela idade da imaginam que os endinheirados e mesmo os sem vintém mais matulões devem ser sempre imitados. Aí vinham todos pimpões, escarafunchando os dentes, radicando a falta de aperfeiçoamento com que os não nascidos em boas maternidades, começam a esgravatar na vida e que só depois, muito tardiamente e alguns mesmo nunca chegam a entender, e bastante a custo vão largando quando compreendem que não devem fazer isto ou aqueloutro porque vêem fazer a pessoas com melhores meios de vida, mas com muito menos cabeça.

A senhora Teresa andava cada vez mais preocupada.

Apesar de lhe custarem muito criar, os cachopos eram a alegria da casa. Tinham cada uma que só ao diabo lembraria!

Então os badamecos, na primeira sexta-feira do mês, não tinham despejado dois frascos de tinta do calçado na pia de água benta e à hora do terço, de sociedade com mais quatro companheiros da escola com as quais iam fumar beatas para o barrocal às escondidas dos pais? Foi um sarilho! Quando as velhinhas, no meio de dois ámen, se lembraram de cochichar alguma pequena maledicência propalada pelas línguas do pequeno burgo, simultaneamente, de boca desmesuradamente aberta, dedo em riste e de olhos arregalados, diziam em coro:

- Ai vizinha como está. - Foi um sarilho, sou eu, que lhes garanto. Primeiro, ainda riram obrigando o padre a olhar para elas de sanho azedo, mas depois, oh raio! Aí é que foram elas. Encheram-se do demónio e toca de irem à cata dos mafarricos. Estes, rindo bandeiras despregadas, pés para que vos quero, desandaram mais lestos do que pequenos laparotos em dia de abertura de caça.

Nada lhes valeu, os pais também riram a princípio, mas a seguir, , com as coisas da Igreja não se brinca, com essas e com aquelas em que possamos ofender as ideias e crenças de cada um. Lá na escola, vá que não vá. O professor que os ature, mas na Igreja isso é que não.

Tiveram muita laracha, porém como o Sr. Prior também não tinha gostado da brincadeira no pátio sagrado, levaram uma surra que os deixou dois dias de molho; e com tanto azar que calhou logo a ser sábado e domingo, dias em que não havia escola. Já era pouca sorte! Mas também não foram à missa. Se estavam doentes por causa da malhusca, também não estavam bons para aturar um dos causadores das nódoas regras.

Os dias foram passando e com eles os anos e a senhora Teresa, cada vez mais amadorrada porque a escola primária estava a terminar.

Toda a gente lhe dizia para mandar os miúdos estudar, "que eram espertos, que tinham estas qualidades e aquelas, que era uma dor de alma ficaram por ali." Contudo, ninguém se oferecia para pagar a mesada no liceu, lá isso é que não, todos davam conselhos, mas pagar, está quieto.

O Dinheiro custa muita ganhar e dá-lo ou emprestá-lo sem garantias, há poucos que o façam, e esses ainda são alcunhados de trouxas. Quem somos nós, para criticar as acções que as outros pessoas façam de louváveis, quem? Mas deixamos as perguntas difíceis.

De matutar em matutar, pelo sim pelo não e a conselho do professor, lá se resolveu vender uns bacoritos que tinha destinado a criar, e, com muitas recomendações, juntamente com os outros garotos, aí desandam eles para a cidade, vestidos com o facto domingueiro, bem escovadas e de marrafa com risquinho ao meio, fazer o exame de admissão. Foram, e fizeram tal figura, que os senhores doutores lhes perguntaram:

- O vosso pai é o professor da aldeia, não é?

- Não senhor, nós não somos filhos de ninguém. A senhora Teresa e o senhor Joaquim é que nos aturam como eles dizem: mas é como fossem nossos pais, quando a gente faz qualquer coisa mal feita, até nos batem, por isso é como sejam.

- Os professores riram de resposta desembaraçado e claríssima, mostrando desenvoltura e nenhum acanhamento, como, se irem à cidade e falarem com a gente grada, fosse o pão-nosso de cada dia. Riram, porém, não lhes perguntaram se os pais adoptivos, que os aturavam, viviam bem ou mal e se iam ou não para o liceu. Como não perguntaram, eles também não disseram e como disseram, se desprotegidos foram desprotegidos chegaram.

- Então, passaram?

- Passámos sim senhor.

- Qual foi o melhor?

- A gente sabemos sempre a mesma coisa.

Com o “agente sabemos sempre a mesma coisa”, por ali ficaram as modas e a Teresa a dar voltas ao miolo e a passar mal as noites de tão consumida que andava por não saber o que havia de fazer à sua vida por causa dos miúdos. Quem as pagava era o Joaquim pois a Alma da breca não estava quieta um bocadinho! Mal se deitavam, daí a dois minutos começava a dança, ora agora se voltava para aqui, ora agora se voltava para ali; era o cabo dos trabalhos!

- Vê lá se estás queda.

- Ó homem tem paciência, deixa-me cá, que moída ando eu sem saber que sorte vamos dar aos catraios.

- Mas então pensa de dia porque a noite fez-se para dormir quando chega a hora.

- bem,   bem.

Mas lá para dentro, na sua alma rude e simples continuava:

" O que é que hei-de fazer dos rapazes? Agora é uma lástima deixá-los. Já tiraram a admissão, são espertos que nem uns alhos..., têm que ir estudar: o Jequim ganha vinte e dois mil reis, eu ganho quinze, tudo isto anagalhado, bota trinta e sete por dia. É capaz de dar. Oh Raio! Se desse era uma alegria! Tenho que saber quanto é que me levam por sustentar estes azougados mais lindos e mais espertos que existem cá no povoado."

E perguntou, perguntou e encheu-se de lágrimas. O mínimo que lhe faziam pelos dois miúdos era um conto e duzentos e viva o velho! Depois, livros, cadernos e a fatiota, era uma espiga.

Tanto chorou, tanto gemeu, sem que nenhum lucro obtivesse, a não ser o de aliviar um pouco mais as suas mágoas, que, firmemente convencida que de nada lhe valia para ali esbandalhar lágrimas, tratou de pôr a massa encefálica em movimento e toca de magicar para descobrir onde havia de arranjar o resto dinheiro para fazer dos rapazes alguém na vida. Fazer deles, a quem ela queria como filhos das suas entranhas, senhores professores ou doutores. Lá padres é que não. O Sr. Prior já tinha falado com o marido – “se deixasse ir pelo menos um para o seminário, depois podia ser o amparo deles quando fossem velhos, ele se encarregaria de tudo, não pagavam nada, falava com o senhor bispo e o rapaz entrava de certeza”.

- Cantigas senhor Prior, cantigas. Não senhor, bem-haja, mas não quero que meus filhos andem para aí dizer ladainhas e de mão estendida, não senhor, muito obrigado, eles lá se haviam de arranjar; uns dias com mais fartura outros com menos, mas para as sopinhas sempre havia de chegar. No entanto, que perguntasse aos miúdos, eles é que eram os interessados.

Na sua santa crença o bom do prior da pacata vila, ao fisgar os miúdos à mão bem os tentou convencer com palavrinhas doces, mas, ou porque a surra que tinham chupado, na qual o padre tinha sido causa indirecta, ainda estivesse bem presente ou porque a inclinação para o sacerdócio, naquele momento nada lhes dissesse nas suas pequeninas mentes, o certo é que, brincando com a batina do pachorrento vigário lhe disseram redondamente que não. E escapuliram-se fazendo-lhe uma vénia agarotada e rindo o riso simples, e sempre alegre das crianças.

Sem a protecção do prior a Teresa não descortinava a quem havia de recorrer, mas tantas voltas deu ao caco, tanto pensou, que pesados os prós e os contras, no meio da sua analfabética, mas escorreita maneira de ver os problemas, que chegou a esta conclusão:

" Tenho de os mandar para uma casa onde recebam órfãos ainda que isso me custe, meus queridos filhos! Mas sempre é melhor do que vos deixar por aí sem destino. Assim sempre é melhor enfiá-los lá do que andarem na galdérice, sem eira nem beira. Custa-me, mas paciência. Eles, um dia mais tarde, hão-de reconhecer que é para bem deles e não para o meu. Nada de chouchices que só os ganapos é que são prejudicados." E dito e feito; mãos à obra.

Falou com o presidente da Câmara e com o presidente da Junta de Freguesia, e tanto pediu, tanto andou que o Vítor e o Zé seguiram de escantilhão para a Lisboa onde as buzinas dos automóveis se fazem ouvir com os seus sons estridentes em vez de usarem os faróis, maneira muito mais educada e muito menos incómoda de se pedir uma ultrapassagem ou de avisar um transeunte distraído. Lisboa onde, de vez em quando, se nota alguma rua mal cuidada em que os papéis esvoaçam pelo chão como a dizer: não temos caixas suficientes para nos obrigar! A Lisboa onde e com grande admiração, por estarmos num meio com justa fama de civilizado, se vê, de tempos a tempos, um porco, porque o indivíduo que faz isso não pode deixar de ter outro nome. Cuspir, ruidosa e esverdeadamente, para o chão, lançando num desprezo sujo, pela vida alheia, os bacilos infectos que a sua carcaça alberga. Lisboa, a cidade mais bela e mais perfeita de toda a Europa e não sei se do resto do mundo, ainda que pense que sim, no momento em que todos os que a habitam derem um pouco do seu esforço para a conservarem limpa e tão a asseada como ela o merece.

 

III

 

Logo de manhãzinha um banho bem frio, bem embrulhado, cheio de risos alegres e refrescantes, o riso franco que dá uma consciência limpa, incutia nos rapazes uma força potente, plena de viço e de vontade de trabalhar.

Nunca na sua vida tinham tomado tantas chuveiradas, nem mesmo quando iam para a ribeira e formavam pequenas cataratas, para sentirem o prazer que proporciona a água caindo em torrente e encharcando a pele desde a raiz dos cabelos até aos dedos dos pés.

A casa da vila, térrea, com duas divisões apenas, mal dava para lá se mexerem dentro, quanto mais para sustentar o luxo de uma banheira ou mesmo de um balde esburacado, que Ihes pudessem encher o bandulho de água bem fresca e saborosa.

Como as plantas, quase murchas por míngua de rega, os rapazes repuxaram com o regime, meio colegial, meio pensionato e estavam uns verdadeiros matulões para a sua idade. 0 comer a horas certas e à base de uma dose de calorias  muito superior da que os pais lhes podiam proporcionar, produzia também os seus efeitos e eram bem patentes. Em notas, continuavam na barreira da frente, assim como em travesseirada. À noite, depois de o perfeito estar nos braços do mitológico morfeu eram uns autênticos barras em esventrar almofadas; os botões, esses então eram as primeiras vítimas, ao segundo ou ao terceiro assalto não, conseguiam resistir e desapareciam. Umas a seguir às outras, sem a abotoadura, aí estavam os instrumentos de batalha.

Por capricho do destino, quem lhes havia de calhar como um dos professores? Imaginem? 0 senhor Inácio, que faltando-lhe duas cadeiras para ser formado e tendo mandado os estudos bugiar quando a batata e o feijão davam mais que o canudo, regressou, embora forçado, para aquilo que os pais Ihe tinham indicado. Acabou mesmo por se formar e ali estava como professor de ciências naturais.

Os miúdos que nunca o tinham visto nem mais gordo nem mais magro, nada lhe notaram de anormal nas atitudes para com eles. Mas o mesmo já não sucedia com o senhor Inácio, perdão, ponhamos os pontos nos ii, a cada um o que é seu, com o doutor Inácio.

Ao fazer a chamada pela primeira vez para tomar conhecimento com quem se havia de se haver durante um ano inteirinho, deu um estremeção ao ler o nome «Barbas». Deu; e de pensar em pensar, mal acabou aquele primeiro encontro todo feito de conselhos sobre estudo, direito como um fuso, por meio daqueles corredores fora, vá de ir à secretaria espiolhar os processos do Zé e do Vítor. Tida a confirmação das suas suspeitas, veio a luta, a luta interior, a luta psíquica, a luta do homem, a luta do bem e do mal, ainda que bem e mal não passem de meras concepções da humanidade, daquelas concepções que servem para distinguir algo, mesmo que esse «algo» a que hoje chamamos certo, chamemos amanhã errado e vice-versa.

0 doutor Inácio num gesto, de Homem com letra maiúscula resolve peremptoriamente proteger os dois manos, ou melhor, substituir o verdadeiro pai dos irrequietos diabretes, como alívio para o seu pensamento atormentado pelo mal que, involuntariamente, causara num momento de irritação e pelo qual sofreria toda a vida.

Pois bem, propunha-se fazer-lhes distinguir até onde pode ir uma brincadeira e onde deve acabar, ensinar-lhes o melhor caminho para escalar o tempo de vida e mostrar-lhes, que somos tanto mais felizes quanto mais fizermos ou contribuirmos para a felicidade das outras pessoas.

Um mundo de promessas intrínsecas, plenas de consciência, cheias de humanidade, num homem que inadvertidamente e num dia de má catadura provocara duas mortes.

Os anos corriam uns atrás dos outros e, com ajuda ou sem ajuda, nunca fizeram uma prova oral os filhos do Manuel Barbas e da tia Joana enquanto calcorrearam os anos que os levaram às portas da universidade.

Nesta altura é que a porca torceu o rabo, se me permitem. E os rapazes, estavam-se vendo lançados para o meio da multidão, votados a um emprego público, quais servos achincalhados pela acefalia dos chefes, quantas e quantas vezes inferiores a eles em cultura, aperrados a um ritmo monocórdico de dezenas de meses sobre dezenas de meses, onde se habituaram um dia a fazer determinado serviço de determinada maneira e muitos, muitíssimos trezentos e sessenta e cinco dias ou trezentos e sessenta e seis passam sem que aquelas almas sejam capazes de expelir uma ideia inovadora que possa simplificar o método caquéctico.

Não senhor, sem que os chefes máximos ordenem, eles, pobres míopes espirituais, não são nem sequer capazes de enviar uma sugestão, para que os superiores vejam o seu trabalho simplificado e tragam sempre os seus serviços na vanguarda da técnica mundial. Mas quê, com o dístico «isto já assim se faz há vinte ou trinta anos e porque é assim, assim continua e continuará da mesma maneira». É escusado que ninguém os demove e tanto faz dar por paus e por pedras que nada se modifica. Eles, os novatos, os cheios de boa vontade, esses têm de vergar se não querem cair em desgraça; e aí começa a sua aprendizagem de máquinas automáticas, quais carneiros que um dia ensinaram a tosar erva e nunca mais lhes deram outra comida.

Quando se preparavam para um concurso público, depois de um brilhantíssimo sétimo ano, foram chamados ao senhor director que lhes comunicou que podiam continuar a estudar sem a preocupação de um emprego.

- Meus filhos, tenho uma boa notícia para vos dar. Alguém cheio de valor e que conhece a perca que o país sofre pelo facto de grande parte das vezes não se aproveitarem alunos como vós o tendes sido, alguém que prefere o anonimato aos agradecimentos servis que lhe prestaríeis, oferece-lhes a mensalidade para poderem continuar a estudar. Desta maneira, tu, José Augusto, tens à tua disposição na secretaria o dinheiro da matricula e tu igualmente Vítor Manuel.

- Senhor director, muito obrigado, mas não podemos aceitar. Muito longe chegámos nós e neste momento já podemos enfrentar a vida sem qualquer receio de perdermos a batalha. No próximo mês vamos a um concurso e...

- E... batatas, desculpai se vos falo assim e se me oponho a que façais semelhante tolice.

Se a vossa formação cultural é muito superior ao que os vossos antepassados nunca imaginaram, a verdade é que a vontade de ganhardes dinheiro e de adquirirdes uma independência fictícia não vos deixa discernir o seguinte:  começais por empregaditos públicos levando pontapés no quiosque a torto e a direito dum  bicho careta qualquer. Isto é falar-vos francamente e sem quaisquer cerimónias, e tal e qual como se estivesse a falar para um filho meu...

- Obrigado, muito obrigado responderam ambos.

- ...Começais por ganhar um conto setecentos e cinquenta, fora as descontos o que vem a  dar um conto seiscentos e picos. Ao fim de doze anos e numa hipótese cem por cento, optimista, ganhareis um pouco mais ou um pouco menos de quatro mil escudos caso a hipótese muito perquelitante falhe ou não. Ora bem, quando terminardes o vosso cursozinho e isso, sim, é o ajuizado, daqui a cinco ou seis anos é precisamente isso que ides ganhar e com a possibilidade de a vossa situação ir sempre melhorando. Agora notai, o tempo, o dinheiro e o saber que perdeis se vos propondes para um cargo de empregado principiante, sem qualquer futuro que jeito tenha à vossa frente. Pesai bem todos os prós e os contra, e dizei-me se não tenho razão.

Quando aceitamos algo que vemos que não é só para o nosso bem, como para o bem geral, para trás orgulhos esparvoados, próprios de pessoas que não têm um palmo de testa. E vós felizmente e eu sou testemunha, sempre demonstrastes tê-la. Ainda hoje me lembro, meus mariolas, da sentença que aplicastes ao Bernardino, lá no vosso tribunal de estudantes onde todas as praxes a sério eram respeitadas e, o qual, de todas as vossas ideias, era o que mais me agradava por vos desenvolver na polémica que borbulhava quando defendíeis ou acusáveis algum dos vossos camaradas que caía sobre a pata da justiça como dizíeis, lembrais-vos?

- Lembramos sim.

- Bela sentença. O Bernardino, que se intitulava ateu, um dia arreliado com uma falta de castigo que o professor de moral lhe marcou por se portar incorrectamente na aula, não foi por isto?

- Foi sim.

- ...Escavacou o Santo António que estava ao cimo do patamar, por sinal bem perfeitinho esse Santo António. E a vossa sentença foi inexorável e sem apelos nem agravos: «Que seja condenado a pagar os emolumentos do processo: três chouriços e um garrafão de vinho e ainda a colocar uma vela todos os dias durante oito, a Santa Quitéria a protectora dos parvos para se lembrar, durante toda a vida, que devemos respeitar as crenças das outras pessoas, para que elas respeitem as nossas.» Bela lição e mais bela ainda porque eu sei bem, meus marotos, que acreditais tanto em religião como ele, mas, felizmente sabeis distinguir até onde devemos chegar ou o que devemos olvidar para não fatigarmos nem as outras pessoas nem a nós mesmos. Depois desta lenga-lenga toda, aceitem o oferecimento sem olharem para trás, pois que ele vem de uma pessoa cheia de bons e altruístas sentimentos. Se não o fosse também eu teria dúvidas em vos propor o que acabei de explanar e era mesmo capaz de nem vos dizer nada;

- Convencidos resolveram passar então aquelas férias até à abertura das aulas, com os pais adoptivos.

A vila continuava na mesma, nada parecia ter mudado em sete anos, nem mesmo os pais, na maneira de viver. A mesma casa térrea de duas divisões, as mesmas enxergas de palha de milho, as mesmas quatro cadeiras de palha entrançada, enfim, os mesmíssimos hábitos com os eternos trinta e sete escudos.

A alegria foi enorme, plena de espontaneidade e os rapazes viram-se e reviram-se naquele meio há tanto tempo abandonado e quase esquecido. Olhando tudo quanto os rodeava, promessas mudas, promessas quase de salvação humana desde que chegassem a ser alguém na vida, fizeram mutuamente sem nada comunicarem entre si.

Os banhos continuavam como há sete anos a faltar, a luz idem, o calor, entrando a vaporadas, era sufocador naquela casa mais abrigo de momento do que lar onde viviam seres humanos, com cabeça, tronco e membros de espinha vertical e com a corrente pensante que nos faz supor diferentes dos ouriços cacheiros, dos camelos ou dos pardais; porém, ali no casebre, tudo minguava. As coelhas nas suas tocas ainda têm o pêlo da pele para as forrarem, para as aquecerem, e resguardarem assim os filhos do rigor do tempo; mas os pobres já não podem infelizmente proceder da mesma maneira, têm um pêlo mais cabelo que pêlo e muito insuficiente para poderem atapetar a casa ou mesmo só um minúsculo quarto, quando existe quarto. E aí temos o chão terroso e húmido ou escaldante conforme a estação que lhes serve de abrigo ou de inferno.

Ouviram as baboseiras mais incríveis da gente simples do campo, mas maldosa nos seus dias não, talvez por não saberem distinguir por falta do conhecimento do mundo, até onde vai ou até onde deve ir uma conversa.

Lembravam-lhes o passado para lhes fazerem sentir como tinham sido os seus princípios, como se eles os pudessem olvidar depois de terem gasto ali na vila os primeiros onze anos da sua vida, os anos que melhor ficam esculpidos no pensamento até à morte. Porém, pela primeira vez ouviram falar do senhor Inácio o causador da desgraça da senhora Teresa.

- Desgraça!

Desgraça, ruminavam ambos, barriga ao alto, lado a lado, no colchão duro e barulhento pelo estalar da palha; mãos fora da manta de ourelos, olhando a escuridão, respirando compassadamente. Ambos se sabiam acordados, contudo, nem um nem outro imaginavam, nem por sonhos, que o mesmo pensamento os envolvia.

- Desgraça! Teria sido mesmo uma desgraça? Se os pais não tivessem morrido, o que seria da sorte deles? Dois iletrados, comendo todos os dias uma malga de caldo com couves, dia sim, dia não, uma pançada de feijões pequenos e assim por diante. Lá a comida ainda era o menos, o pior era ficarem só com a quarta classe; era o mesmo que serem dois iletrados. Aqueles quatro anos de escola não enchem o ventre a ninguém! Talvez dois escravos do trabalho honesto, duro, suado, mas mal pago.

- Desgraça! Talvez dádiva generosa do mundo irreverente para com os brinquedos que somos todos nós.

No fundo, muito no íntimo, agradeceram, de mãos ambas, aos pais o sacrifício da partida da terra deixando-os no meio da teia humana, num mundo pleno de incógnitas.

Foi talvez um bem para todos, eles, os pais, deixaram de ser servos, deixaram de mendigar o dia de amanhã. E eles, filhos, estavam-se encaminhando para a redenção desse dia.

Assim, nestes pensamentos, adormeceram na suavíssima calma que a imaginação agradável proporciona, sem pesadelos fatigantes ou sonhos descabidos de qualquer logicidade.

0 cantar do galo, pareceu-lhes o badalar da sineta na capital adentro dos muros do colégio e, em dois pulos, levantaram-se para irem com o pai dar um dia de jorna na quinta do senhor Leitão. Ele, bem os não queria levar, mas tanto insistiram que lá foram de cambulhão, de enxada ao ombro, como dois bons profissionais. 0 rendimento dado foi igual ou superior ao do pai. Rapazes ginasticados, tendo praticado desportos saudáveis, apesar de não estarem habituados ao serviço, não lhes foi penoso, antes pelo contrário.

0 senhor Jequim estava babado com os filhos. "Ele, que no seu vesgo ver de homem rude julgava que os rapazes se envergonhassem dele como alguns que bem conhecia lá na terra que se envergonhavam dos pais, grande corja de bestas que nada seriam sem esses entes simples e bons que os trouxeram ao mundo, estava orgulhoso, todo, inchado com os maganões. Olha que era obra! E a verem-se para aí tantos pindéricos enfatuados, que não tendo onde cair mortos se os pais os desamparassem, esses pais que trabalham que nem uns moiros para que eles sejam alguém na vida e aquelas bestinhas, ainda se envergonham dos seus progenitores!

Ah, raio! Quem me dera que eles fossem meus filhos a valer, que a minha Teresa os tivesse lançado ao mundo com a ajuda cá do meco! Mas é a mesma coisa, raios me partam se não é. É como se a “minha” os tivesse parido."

E consolado com estes pensamentos, o trabalho, se pelo hábito já não lhe parecia pesado, ainda mais leve se lhe tornava.

Na sua alma boa e sã o amor brotava completamente com aquela criação da natureza, sempre caprichosa nas suas ofertas, dando a uns demasiado e parecendo esquecer-se de outros.

As alcoviteiras da terra, que ao princípio murmuravam, que os rapazes, quase doutores se deviam envergonhar do Joaquim e da Teresa, quando lhes chegou aos ouvidos que eles acompanhavam sempre o pai em qualquer trabalho que houvesse, voltaram o bico ao prego e toca a bradar que o mundo estava doudo de todo. "Então já se vira alguma vez pessoas quase doutoras a cavar? Devia ter sido o Joaquim que lhes havia de ter dito que não os podia sustentar e os esgraçadinhos por amor e por gratidão, enquanto não regressavam a Lisboa, vá de alombar com a rabiça do arado ou com a enxada.

Não havia dúvidas, o mundo estava pelas ruas da amargura."

Tanto falaram, tanta posta de pescada deitaram cá para fora, que não havendo um coro numeroso, felizmente, e porque este péssimo hábito está nas últimas, e não tendo também mais nada para inventar, as suas línguas viperinas e desvirtuadas, pela falta de conhecimentos de fraternidade, acabaram por se calar e tudo morreu como tinha nascido: com a boca aberta dos papalvos, deformados pela parvalheira e pela ignorância humana.

 

IV

 

Mal obtiveram o canudo, o José com o curso de Direito e o Vítor com o de Filosóficas, foram convidados imediatamente a ocupar o lugar de assistentes nas respectivas faculdades. Porém, pouco tempo por lá se haviam de gastar; uma remodelação ministerial inesperada mas necessária e oportuna chamou-os a condutores do povo. Um como ministro da Educação, o Zé, o outro como ministro da Saúde e Assistência Social.

Guias do bom povo Português, ávido de compreensão e de esperança no aparecimento da rectidão e da justiça em cada ser racional.

A senhora Teresa e o homem aí vieram de trouxa aviada juntar-se aos filhos.

Os novos ministros tinham mandado construir uma moradia no bairro do Restelo e para ali, juntamente com os pachanas dos pais adoptivos e duas criadas, foram viver perante o olhar apardalado do Jaquim que nunca tinha tido tantas «comunidades», como ele próprio dizia na sua analfabética, mas expressiva linguagem.

O bom do campónio a alturas tantas não aguentou mais e apanhando o doutor José a jeito disparou-lhe:

— Tu desculpa ó Zé, mas eu mais a cara metade não nos afazemos cá com estas «côsas» e temos que nos ir embora ainda que gostássemos muito de estar ao pé de vocês; mas tu sabes, a gente não foi feito para grandezas e o diabo é que por mais que nos esforcemos não somos capazes de nos habituar. A gente já está acostumado à choça e eu tenho andado meio alapardado cá com tudo isto, até parece que me canso mais do que andar a pôr couves todo o dia.

Esta coisa de criadas, de mantas no chão para não se fazer barulho, «», a gente até tem medo de bulir nas coisas.

Tu desculpa, mas nós vamo-nos daqui para fora e antes que nos «deia» para aí alguma pasmaceira que fiquemos viradinhos da nuca para o resto da vida.

E sabes, há falta de pessoal para a azeitona e eu não quero morrer de preguiça.

Não vês a Teresa como ela está? Lá, anda sempre a cantar e aqui parece um mocho; e não é por se sentir mal ao pé de vós, bem o sabeis. Para mais o senhor Leitão prometeu-me trabalho durante todo o ano e a Teresa também lá tem as suas freguesas. Isto quem não aparece esquece e a gente precisa uns dos outros pois se não fosse assim éramos como os animais; e olha que às vezes parecemos quando andam para aí esses almas da breca a matarem-se uns aos outros.

Então não é uma dor de alma ver como os homens se odeiam em vez de se ajudarem?

— É sim senhor, mas fora de tudo o que o pai me disse, sabe bem que já trabalhou o suficiente. Como agora não precisa de trabalhar para mais ninguém deixa-se cá estar mais uma temporada e verá como se habitua.

— «, », ninguém me tira esta da ideia; isto de corpo direito nunca deu bom pão. Estamos mais uns oito ou dez dias e viva o velho. Tem paciência, mas tu não me arrincas isto da cabeça.

— Pense bem. Talvez ainda mude de opinião.

- É escusado; já está pensado.

Sabendo que era desnecessário insistir, o ministro desistiu de argumentar e falou com o irmão.

— Os pais, querem-se ir embora.

— Então?

— Dizem que lá na terra é que estão bem, que corpo ao alto nunca deu bom pão e mais uma série de argumentos, que me demonstraram a resolução inabalável de nos deixarem.

O que pensas fazer?

— Sei lá, deixá-los ir; não os podemos cá segurar.

— Mas partirem assim, sem mais nem menos, de um dia para o outro!

— Eles já cá estão há perto de três meses.

— E que é isso no tempo!?

— Bem, na verdade, no tempo, não é nada, porém na vida de uma pessoa deixa-me que te diga é alguma coisa, poucochinho é certo, mas é.

— Deixa-te de brincadeiras e fala a sério.     

— Mas eu falo a sério!

— Está bem então, mas diz-me o que pensas?

— O que penso? Que sim, que têm razão, que somente os vadios não gostam de trabalhar, só esses apreciam andar de corpo ao alto a aborrecer toda a gente. Mas falando mesmo a sério digo-te que não seria desajuizado comprarmos alguma quintarola ou algum pedaço de terra para poderem largar o pesado nome de criados e passarem ao levíssimo de patrões. Sempre é outra coisa do que estarem sujeitos a quem quer que seja.

Concertadas as ideias, escreveram para o único procurador que existia na vila expondo-lhe o que queriam.

A resposta não se fez esperar. Para agradar aos senhores ministros seria capaz de ir procurar uma quinta até à casa do Diabo, porém, não foi necessário. O doutor Inácio tinha uma à venda e ele comprou-a imediatamente, por coincidência a mesma onde o pai dos ministros arranjara aquela carga de trabalhos que o levara à prisão e depois ao descolamento terrestre.

A Teresa e o homem deram por paus e por pedras, que ser patrão custava muito, que não queriam, o que iam fazer da casinha deles e isto e aquilo, mas por fim lá se resolveram a experimentar a nova graduação que lhes vinha pela porta simplesmente porque num dia, já há alguns anos atrás, tinham ajudado dois catraios, agora senhores ministros a acertarem o passo para a vida que tão arrevesada lhes tinha principiado e eles nunca o esqueceram.

A gratidão, ainda que não seja uma obrigatoriedade eterna para aquele que foi socorrido, é pelo menos um forte laço de amizade, o qual só se quebra quando motivos poderosos e difíceis de suster lhe dão o golpe final.

Na vila começou o falatório mesquinho e ridículo dos pequenos centros onde a carência de assuntos para alimentar uma conversa é enorme. Depois está claro, tem de servir o que aparece no momento e aí estava.

— "Isto de se ser ministro é uma grande chuchadeira, todos são iguais, nenhum entra para lá com intenção de enriquecer, mas ou são os ares ou são as circunstâncias e mal se para lá enfiam tem-se logo dinheiro para comprar uma quinta e que senhora quinta! E uma casa em Lisboa com tudo o que é bom. Até quatro casas de banho, quatro! Para que querem eles tanta lavança, para quê? Eles, que nos primeiros anos foram criados sem uma sequer e que, quando queriam despejar a tripa, iam para os barrocos onde o ar fresco e saudável parece convidar ao arrear das calças!?

Olhem que isto da importância que a gente arrebanha com a «inducação» e com o que escorre por fora é uma grande coisa!"

Contudo, as críticas eram pronunciadas a meia voz, não fossem os irmãos ouvir e desabar por aí alguma vingança ministrial. Mas ou não ouviram ou se ouviram fizeram orelhas moucas.

Passada a insânia maligna, as casas abastadas da povoação, que tinham raparigas casadoiras, começaram em pensar na melhor maneira de as levar como amostra, quase dádiva, que não se importariam mesmo de transformar em oferta aos azougados rapazes os quais, alguns anos antes, teriam esbofeteado e corrido a pontapés se tivessem olhado ainda que fosse só de esguelha, para suas desconsoladas filhas, ou lhes tivessem pedido algum favor. Felizmente e para sossego de todos, nunca tal tinha acontecido pois o orgulho que nasce em todos, pobres e ricos, brotara também nos braços dos pais adoptivos que nunca abrandaram para que nada lhes faltasse, para que nunca tivessem que se rebaixar perante um semelhante com mais dinheiro.

A saúde que os protegera e a feliz sorte de terem saído pobres ensinara-lhes a conhecer quanto custa a vida a um pobre mortal que traz ao mundo como única riqueza a pele que carrega de cima dos ossos, e os caminhos livres para dar largas aos passos e aos pensamentos.

Foram estes começos que os levara a guindar-se aos postos que, então, esperançadamente lhes eram confiados. Se nada lhes faltasse era muito provável a sua transformação em pacatos burgueses com a única preocupação de não passarem as horas das refeições e da dormida.

Pela primeira vez, desde há muitos anos, podemos mesmo dizer, muitíssimos anos, a vila vivia agitada. Agora com dois ministros no poder é que era agarrarem-se. Se deixavam fugir aquela oportunidade nunca mais tornavam a apanhar outra igual.

O círculo «Fraternidade Penamacorense» foi criado depois de muitas arrelias e desentendimentos.

Se uns lutavam de boa e desinteressada vontade para verem a sua terra um pouco mais lembrada e com aspirações a uma vida mais desafogada da sua população, pelo aparecimento de indústrias, com o arranjo das estradas sem as quais nunca poderia progredir e com a feitura de um hospital decente, os outros, os molengões, aqueles que, nem tendo filhas para apresentar, nem falta de quaisquer meios de subsistência, a não ser o do aborrecimento por nunca nada terem feito e por nada fazerem, queriam que o círculo fosse à fava! Os bons carros que possuíam não os deixavam distinguir as boas das más estradas em virtude da comodidade que oferecem; a azeitona, a cortiça e o vinho estavam sempre vendidos. Ora, que se lixassem mais o círculo; que formassem os outros um ou vários já que precisavam de apaparicar os borra-botas do Vítor e do Zé Barbas. E uma ponta de inveja, a má semente que conspurca o mundo, fazia-os falar e não só não cooperavam como ainda, com suas palavras, lançavam o desânimo o que era muito pior do que afastarem-se pura e simplesmente.

Para trás e para diante, para a esquerda e para a direita, a verdade é que o círculo se organizou com todos os aborrecimentos próprios e crónicos, como tudo o que este povo, cheio de tradições, emocional e sempre amável, tocando por vezes a raia da selvajaria quando se sente enganado, quando dando o melhor do seu esforço e da sua amizade franca e sincera se sente iludido por quem franca e desinteressadamente confiou. Então, é desaparecer, a emoção transforma-se em brutalidade, a boa razão muda-se quase em cretinice e prefere deixar-se morrer do que ceder perante o que ele pensa ser uma injustiça ou que é mesmo.

No dia da primeira reunião, feita toda de vontade, assentaram-se as bases essenciais para que o círculo era criado.

«Progresso e Educação» seria a divisa que servia de tópico para desenvolver.

O senhor Leitão, propôs-se preparar o discurso para quando fossem falar aos ministros. As bases foram votadas e aqueles bons e são parlapatanas, vincaram bem o que o seu patrício havia de desbobinar:

— Tu dizes o que a gente precisa e mais nada. Nada de gaguejares, pão pão, queijo queijo.

Eles são gente conhecida e mesmo que o não fossem, não comiam ninguém. Falas e logo vês. É a falar que a gente se «intende».

— Pois é, mas nenhum deles é ministro das comunicações, quando lhes lembrar cá os caminhos.

— Pois não, mas falam com ele, tu sabes muito bem que quando o patrão é o mesmo, os empregados tratam-se por tu cá, tu lá e se não tratam é porque alguns são parvos e se julgam mais que os outros e isso não deve ser o caso dos ministros porque se fossem tansos não assentavam lá o traseiro.

Ai não, que não assentavam! Vê lá tu os cagarretas que por lá têm passado. Às vezes é cada um que até o Chico tonto era capaz de botar melhor figura.

— Não me venhas cá com tretas. Todos badalam, todos dão ao chocalho, mas quando para lá vão às vezes ainda fazem pior, e sabes porque lhes acontece isso? É a língua; nada neste mundo é mais castigado do que a língua, o falarmos mal dos outros e nós fazermos a seguir o mesmo.

Olha, e digo-te mais; eles que os lá põem é porque lhes foi reconhecido valor, se depois saem furados, isso então, é outra cantiga. Não me queiras tu convencer que se mete ali um pulhazito qualquer só para encher o papo e prejudicar o Zé povinho! Não, essa não me enfias tu.

— Pois escuta, se não metem, então imitam muito bem. Que lá têm passado grandes ceguinhos, isso não restam dúvidas. E tu sabe-lo tão bem como eu.

Destes, ainda não podemos falar, mas o que for soará.

— Anda cala-te. E não te esqueças da linguazinha.

— Está bem, está bem. Está descansado que não esqueço. Mas olha que o que me faz falar e às vezes, anda que eu bem o reconheço, um bocado azedo, é o amor que tenho a isto tudo. Então a «gente» não podíamos fazer deste país, que todos amamos, um lugar de felicidade para quem cá habita, e mesmo para aqueles que vêm do estrangeiro cá passarem uma férias sossegadas? Podíamos sim senhor. Então com a breca, porque esperamos? Olha que não é difícil!

— Isso parece-te a ti! Mas olha que tem muito que se lhe diga.

— Pois a mim, não me diz nada para te ser franco. Tu, quando tens lá no quintal alguma árvore que não te dá coisa alguma ou quando os galhos estão secos, o que é que fazes? Corta-los naturalmente. Pois com as pessoas deve acontecer o mesmo; quando não dão o rendimento previsto nada de contemporizações; rua e breda direita. Está claro, depois de se lhe terem dado todas as possibilidades para poderem vingar.

— Sim, sim, isso é tudo muito lindo em conversa, mas na prática às vezes não pode ser assim.

— Não pode, mas deve!

Com interrupções de toda a espécie lá foi andando aquela primeira reunião em que também foi debatida a futura volta do doutor Inácio à vila. O homem dava-se mal na cidade e o diacho da saudade ou lá o que é este mal, ia-o roendo aos poucos. Tinha escrito ao Presidente da Câmara, pedindo-lhe o enorme favor de auscultar, por intermédio dos seus ramos, o povo e fazer-lhes compreender que um homem pode errar uma vez na vida.

A criação do círculo, aparecera que nem ginjas, porque aí, estavam representados todos os indivíduos da terra, até mesmo pessoas que nada mais tinham do que a roupa do corpo e o direito à vida, ali foram representados. O necessário era terem a quarta classe.

Como a ocasião se proporcionava, o Presidente da Câmara expôs o assunto.

Nessa altura reinou silêncio profundo, naquele salão enorme da Casa do Povo, e por momentos existiu a sensação de que a sala tinha ficado vazia.

O povo, este povo que tanto sabe amar como odiar, talvez fruto da tendência climatérica, da atracção pelos extremos, via bem quanto o doutor Inácio tinha sido castigado.

Por pior patife que se seja, não há ninguém, que de tempos a tempos, não deseje voltar à sua terra natal, recordar um pouco da sua meninice nas casas, nas gentes e nos campos que a circundam. E se não voltam, começam a mirrar a mirrar e adeus doce encanto da vida. Para mais, quem, senão ele foi o obreiro da criação das aspirações sintetizadas naquela associação?

Ninguém sabia que tinha sido o doutor Inácio a causa indirecta da subida dos rapazes nas escadas da vida, porém, o fluído telepático que se exala das pessoas, tinha-lhes sussurrado algo a cada um.

Não fora ele, que num dia em que eles pensavam primeiro infeliz, mas que agora já não tinham bem a certeza de como o classificar, levara o Manuel Barbas à barra do tribunal que fizera com que os filhos alcançassem semelhantes lugares?

Que volte! - responderam em uníssono.

Assim, como desassombradamente o expulsaram anos antes, assim, anos depois desassombradamente o recebiam. "Para o diabo os rancores, os ódios antigos."

O contrito sincero tem sempre um lugar no seio da humanidade. E, quando não tem é porque os homens viraram irracionais ou são possuídos de deformações abúlicas.

Os habitantes, daquela pequena terra, não podiam ter, como seus representantes, tais anormalidades e felizmente não tinham.

 

V

 

A vida no Ministério da Educação, era o símbolo do trabalho árduo. O ministro, que nunca sabia a que horas entrava ou saía, tinha dispensado o motorista e era ele próprio, sem receio de que os parentes lhe caíssem na lama, quem conduzia o seu pequeno carro.

O respeito, mais feito pela admiração que não pelo medo, votado pelos seus funcionários, era o exemplo frisante de quem se impõe pelo seu valor e não por suas despóticas maneiras.

Ao tomar posse de tão delicado cargo, chamou directores de serviço, chefes de repartição, chefes de secção, primeiros, segundos e terceiros oficiais, aspirantes, contínuos, motoristas e paquetes aos quais falou de igual para igual e da mesma maneira e em termos simples, sem arrebiques escusados.

— Os senhores são seres pensantes, cabeça, tronco e membros, em que a cabeça e a vivacidade de cada um permite ver inovações ou planos diferentes de bom seguimento dos serviços em que estiverem destacados. Pois bem, o ministro é igualzinho a vós e não qualquer sobrenatural, e está sempre pronto a ouvir os vossos pontos de vista. Somente, antes de os apresentarem, lhes pede o favor de os ponderarem bem para honrarmos a frase «Poupar tempo é aumentar a vida».

Quando eu errar, nada de vénias hipócritas colaborando na má visão do assunto que quero aprovar ou que inconscientemente aprovei. Desempenadamente, sem qualquer receio, porque todos somos iguais e por isso mesmo todos estamos sujeitos a errar, apontem onde está o bolor dessa falta. Se isso não fizerem, e me apoiarem nos momentos das minhas falhas, fracas, sem qualquer utilidade e que podem prejudicar muitíssimas pessoas, podereis acreditar, que nem eu, nem vós fizemos nada para a elevação deste povo de que somos parte integrante. E mais, aqueles que hoje me rendem preitos e me dobram a coluna vertebral, amanhã apelidar-me-ão de grande tratante ou de mentecapto pelo menos.

Sejam homens na verdadeira acepção da palavra e não biltres vulgares, manobrados por cordelinhos.

À ansiedade de fazer tudo de repelão, vinha-lhe a calma para ponderar e estudar profundamente todos os assuntos, para os pensar repetidas vezes como fazia entender aos seus subordinados.

Via e revia os problemas humanos muitas vezes, e fazia-o nestes, não porque à primeira vista parecessem difíceis, mas sim, porque só ao cabo de muito se analisarem se pode chegar a uma conclusão. Todos sabemos que o pensamento varia de pessoa para pessoa, e sem se encontrar um meio intermédio de satisfazer, pelo menos a maioria, o estudo que se fez foi um falhanço total.

O Sol que timidamente entrava no gabinete atapetado, parecia ao franquear aquela janela temer provocar qualquer ruído que pudesse perturbar aquele sossego todo feito de trabalho e de meditação; e o doutor passava dias sem saber se o tempo estava frio ou quente, húmido ou seco.

A reforma do ensino tornava-se urgente e ele necessitava de a forjar com todos os seus utensílios e com todas as suas forças não só materiais como psíquicas.

A plagiação dos métodos europeus em que o ensino primário varia de seis a oito e onze anos, não lhe dizia nada. A maneira de dizer: «O nosso povo é um povo diferente» fazia-o pensar. Ele bem sabia que todos os povos, divididos em Estados ou em Nações, são todos diferentes, porque se o não fossem, não conseguiriam ser nem Estados nem Nações. Sê-lo-iam talvez sim, mas encaixados noutros. Brotavam-lhe ideias aos magotes, porém, quando lhes tomava bem o peso, via sempre que algunss gramas lhe faltavam e que o sistema podia falhar por este ou aquele motivo e assim, nestas congeminações tentava descortinar uma directiva que pudesse coordenar o viver climático e o viver substância de um povo com poucos mais recursos do que um Sol esplendoroso, um mar cantante, um céu bem azul e uma vontade férrea dos seus habitantes transformarem todos estes elementos da natureza para que eles possam dar o mínimo para sobreviver.

Faziam-se sentir a falta de casas para estudantes junto das universidades, casas, onde além da vulgaríssima cama para descansar, o aluno tivesse pelo menos uma sala para um pouco de cavaqueira desanuviadora do esforço despendido durante o dia, pela recordação das traquinices de cada um, em mais novos, para assim, quando no declinar da vida à lareira ou tomando Sol juntamente com os netos, poderem recordar imediatamente estes felizes momentos passados; porque esquecendo-os, eles sabem que os velhinhos se nada têm para contar, se nada na vida passada lhes lembra, se tornam embirrentos pegando por tudo e por nada; e ninguém nesta vida quer chegar a semelhante ponto, ao ponto de fatigarem toda a gente.

Estes pensamentos e outros semelhantes atormentavam-no profundamente. Ainda em plena força da juventude, a cabeça pendia-lhe já sobre o corpo como espiga bem cheia de grãos de trigo. O rapaz de há quinze ou vinte anos desaparecera completamente. O estavanado Zé Barbas deixara de existir para dar lugar ao ministro José Barbas, consciente das responsabilidades que lhe sobrecarregavam os ombros, o seu carácter e a hombridade de quem conhece o que lhe é exigido e que sabe quanto a má visão de qualquer assunto pode acarretar graves problemas se não de efeito próximo, mas sim num futuro mais ou menos chegado.

A toleima, a vaidade enfatuada que por vezes é o apanágio dos indivíduos nascidos do nada e guindados a altos lugares pela sorte ou pela esperteza, não o tinham apodrecido e se, distraído pelos pensamentos que o levavam a ajudar e a criar uma humanidade mais feliz, não cumprimentava este ou aquele, todos sabiam o motivo porque o não fazia; distracção, como poderiam dizer, atenção concentrada.

O caso do irmão por bastante invulgar e por aparecer ainda que raríssimas vezes em pessoa, de sensibilidades extremas, trazia-o bastante apreensivo.

Vítor Manuel, depois de dois anos no ministério onde conseguira fazer em pouco tempo uma obra notável ao demonstrar a grandes industriais e a grandes lavradores, que, felizmente o compreenderam na maioria, que construindo lares para os seus empregados, dando-lhes uma casa decente, não só tinham mão-de-obra sempre assegurada, como proporcionando-lhes mais conforto, o rendimento seria muito superior, por não se sentirem tão postos de parte pelo patrão, como ainda, porque poupando calorias eles as poderiam empregar no serviço a que estavam destinados; conseguiu fazer triunfar o bom-senso e deu-se um bom passo em frente para resolver a crise habitacional e até para a extinção da vista degradante de algumas barracas miseráveis onde os trabalhadores habitavam junto da berma das estradas, onde anteriormente nacionais e turistas estrangeiros ficavam embasbacados olhando para um dos princípios da degradação do género humano.

O apetrechamento hospitalar foi todo estudado e o assunto parecia quase resolvido quando o ministro teve qualquer coisa parecida com um esgotamento cerebral, pois os médicos nunca souberam bem definir o que tinha sido ainda que a aparência de esgotamento estivesse patente, mas com características fora do comum, o que o levou a afastar-se definitivamente do ministério.

Quando melhorou parecia outro, novas ideias borbulhavam naquele cérebro truculento, iria para padre. A miséria que vira e que tentara debelar mostrara-lhe o caminho, padre, seria padre.

Quase incógnito entrou para o seminário, para os estudos teológicos em virtude do seu adiantado grau de cultura. Pouco tempo seria servo da Santa Madre Igreja.

Passou o primeiro ano agarrado ao estudo, numa ânsia desmedida de conhecer qual o nosso lugar no mundo, até onde pode ir o nosso conhecimento, como nos devemos conduzir, o que podemos desejar e onde está o princípio motor da criação.

Sem respostas concretas para as suas dúvidas, no segundo ano enveredou para outro caminho. Para o estudo dos seus futuros colegas; e então, veio a desilusão total. Viu-os a alguns desnudados das amabilidades celestes. Um, logo que se ordenasse, comprava uma lambreta, outro um automóvel, outro fazia planos caseiros e assim por diante, antes, muito antes de pensarem a melhor maneira de conduzir o rebanho que lhes era entregue.

Não pôde entender que entre os cordeiros do Senhor pudesse haver ovelhas ranhosas e tanto pensou, tanto ouviu, tanto magicou que para não lhe dar outra macacoa semelhante à que o encaminhara para ali, resolveu abandonar seres tão materialistas e tão pouco espirituais.

Sem dizer daqui te escrevo, sem mesmo dizer água vai, desapareceu do país.

O irmão, tentou por todos os meios encontrá-lo. Tudo foi inútil, todos os esforços saíram gorados. O aspirante a profeta partira e não deixara rasto.

A força da insatisfação entrara nele com todos os poderes. Tomou-o, possuiu-o o desejo de encontrar o ponto princípio e o ponto fim da existência e foi isso, só isso, o que a bem pensar já não é nada pouco, que o fez desaparecer. Todos o sabiam, porém, era difícil para aqueles que o tinham conhecido, desde que ainda andava de cueiros e de chucha na boca, desempoeirado e amalandrado como não havia outro a não ser o irmão e agora transformar-se daquela maneira!

Sem sombra de dúvidas que o micróbio pensante tem ainda os seus quês, é ou não verdade? A evolução do pigmento idealista continua a ser um bem difícil problema de palavras cruzadas. É ou não é assim? Então, porque perdem tempo com porcarias que só servem para fazer mal e não tentam dissecar profundamente o espírito humano? Encolhem os ombros? Não sabem? Também o ministro da Educação fez o mesmo, encolhendo os ombros como um desabafo de vencido.

Mas a vida não é só feita de pensamentos tenebrosos e aborrecidos, ela é também feita de distracções que lhe estão ligadas naturalógicamente.

José Augusto Barbas, a quem o potencial da vida, de tempos a tempos fazia lembrar que tinha de desviar a corrente da consciência da papelada que lhe atulhava a secretária para pensar no casamento, com estes safanões da doença e das decisões do irmão andava de tal modo com a mioleira à razão de juros que mal se acendia a luz vermelha a mostrar-lhe que devia não esquecer um dos deveres que a natureza impõe e os racionais acatam com prazer de multiplicar a espécie, era logo extinta pelo caso de esta ou de aquela irregularidade no seu ministério e que a todo o custo jurava pôr cobro ou por outro qualquer assunto de suma importância.

Os convites para bailes, recepções, jantares, beberetes e outras comezainas parecidas, formavam pilha de equilíbrio duvidoso. A resposta era sempre a mesma quando não se esquecia de a mandar. "Pedia desculpa de não comparecer, mas fazia-se representar pelo subsecretário". No entanto, naquele dia, fatigado, completamente estoirado pela trabalheira tida durante seis horas a fio e com a lamparina bem espevitada, olhou fixamente o convite que se mostrava a dois palmos do nariz: «Chá dançante com fins caritativos e que se prolongaria por toda a noite na casa da condessa de Araújo». Olhou, tornou a olhar, contudo o nome não lhe dizia nada, também não era problema de maior interesse. Depois de pensar e repensar, de relembrar o seu nascimento e de o comparar com a sua actual posição, depois de ter dito de si para si:

«Se eu fosse o labregozito a que estava destinado pelo nascimento e pela preparação inicial para a vida, em vez de mandarem convites davam-me era pontapés nos fundilhos.

Pobres pais, o que teriam passado antes de me gerarem e a sorte que lhes estava des­tinada.»

Ricos e pobres, espertalhões o acéfalos, oásis e desertos! O mundo tem as suas irreverênciazinhas, ai tem, não me podem restar quaisquer dúvidas; o mal é não haver quem lhe tire as cócegas e o não deixe ter veleidades malucas, umas vezes são tremores de terra, outras são furacões, outras são maremotos, eu sei lá, é o diabo à solta! E não há o filho de uma velha que o faça meter na linha!

Olhem que é triste estar aqui um ser pensante com cabeça e olhos para ver tudo isto e ficar de braços cruzados a ver morrer os seus semelhantes, enquanto que a distracção não o faz ir também na maré. É triste, é sim senhor, estarmos sujeitos à força dos elementos e não termos ainda potência para, mal víssemos aproximar estas catástrofes, lhe dizermos:

«Êh! êh!, mas que conversa é essa? Voltem lá pelo mesmo caminho que vieram e com o rabinho entre as pernas porque senão, vai aqui haver o diabo com forma de gente!» Mas não. Ainda não chegam só estas calamidades para darem cabo do canastro ao pobre Zé ninguém como ainda inventam bombas H, atómicas e  daqui a pouco meteóricas ou qualquer coisa assim parecida.

«Vou ao baile, está resolvido, vou e enquanto não encontrar a futura esposa, tenho que aceitar convites para bailes e recepções; aceitarei tudo, vai ser um fartote! Será por alguns meses uma das minhas actividades a que me dedicarei somente com o coração e dois gramas de massa cinzenta.»

O Sol tinha-se escondido, o cinzento do céu, de nuvens esfaroladas, pela primeira vez desde há cinco anos, chamou a sua atenção.

Num desejo fantástico de recordar a sua paixão de moço, desceu em direcção ao rio, a esse Tejo prateado e manso como um lago em dia de calmaria, o Tejo que só de olhá-lo a tristeza se transforma em sonho e a má disposição em simples devaneio monótono.

Tomou um cacilheiro como um pacato burguês, indiferente aos olhares admirados dos que o rodeavam e que de dedo em riste, um dos maus hábitos que ainda não se largaram totalmente, exclamavam em surdina:

— Eh pá, olha o ministro da Educação! Aquele não tem caganças, parece ser uma inteligência!

—É, é um tipo fixe.

— E o irmão também o era. Parece que se foi embora por alguns lavradores que arregimentam pessoal para a ceifa não quererem arranjar cómodos próprios para essa gente.

— Olha que não. Ele teve foi um desaparecimento de memória ou coisa assim parecida.

— Já te disse e é assim como te falo. Os tipos, agarraram-se com unhas e dentes e ele não conseguiu fazer nada. Senão, olha para o gentio que vai para a ceifa e para a apanha da azeitona e vê como dorme numa promiscuidade abençoada!

— Ó pázinho tem juízo, então eu não sei que muitos lavradores construíram bastantes casas.

— Pois construíram, meu filho, mas houve muitos outros que se estiveram nas tintas!

— Lá isso não sei. Eu cá de políticas não percebo nenhum. Mas espera aí, agora me lembro; já me estavas a querer enfiar o garruço.

— Sim, então que foi?

— Agora, esses cavalheiros da apanha e da ceifa, já não costumam ficar nas quintas para onde vão trabalhar. Sabes o que fazem?

—Diz.

— O patrão, ao terminarem o trabalho do dia, manda-os pôr num atrelado ou num meio de transporte qualquer, na terra mais próxima onde vão pernoitar com o tocador para darem uns passos de dança enquanto não chega o sono, e depois cama que se faz tarde e no outro dia é dia de trabalho. Assim é como se faz agora.

— Talvez.

— Talvez? É certo, essa te afianço eu. Só agora me lembrei que o meu tio Serafim anda nestas andanças e que já tinha falado nisto.

As conversas deste género, pululavam por todo o lado, naquele pequeno barco. Pudera!

Um ministro é sempre um ministro e um ministro tem algo que se lhe diga e muito, mesmo muito para dizer. Se não diz e se não faz, ainda que a isso seja alheio provoca desilusões em muitas almas.

De olhos fixos na Lisboa abarcada desde o Castelo de S. Jorge à Torre de Belém, a Lisboa feita de altos e baixos, tão maravilhosamente bela, tão suave e tão altiva no seu casario multicolor; José Augusto era o protótipo do abstracto.

Como é possível Lisboa, que albergues no teu interior o joio deste povo!?

O cacilheiro, com uns safanões, acostara e a multidão, espreitando pelo rabo do olho, via o ministro numa espécie de êxtase, provocado pela mente, perscrutando o infinito no finito das coisas:

Passo a passo, maquinalmente, cabeça baixa, ar pensativo, saiu do barco, dirigiu-se a um restaurante, sentou-se e depois de ter encomendado o jantar sem prestar atenção aos salamaleques do criado-mor que afastara propositadamente o seu subordinado para servir ele em pessoa o senhor ministro. Este, cada vez mais enamorado da bela cidade, olhava, olhava, com os olhos sôfregos que o esfomeado faz luzir ao desejar ardentemente o pitéu que está na sua frente, mas ao qual lhe é vedado tocar. Olhava Lisboa como se fosse a primeira vez que a visse e não a milésima ou mais. Na verdade, ela é inigualável e agora, ao escurecer, cada vez mais cheia de sombras, de céu azul pintalgado de nuvens como posadora profissional ajeitando o quadro que o artista embevecido pinta com deleite. De repente, as sombras transformam-se em luz, em miríades de pequeninos pirilampos esvoaçando a diferentes alturas.

O Tejo, qual espelho orgulhoso da cidade que nele se vê, mostrando-lhe todos os seus contornos à distância, com a lua de bochecha inchada aloirando-lhe as formas, dá-lhe um cunho muito seu.

Como um autómato, de colherada em colherada, ficara-lhe o hábito do leito, sempre preferira uma boa pratada de sopa às entradas à francesa, de garfada em garfada terminou o repasto, pagou, gorgeteou e andou para a Lisboa dos seus sonhos. Contudo, antes de partir, o dono da casa, solícito, de sorriso bonacheirão, dobrando cem vezes a espinha bem guarnecida de tecido adiposo e numa maravilhosa demonstração de servilismo, nem oito nem oitenta, perguntava ao senhor ministro se tudo correra bem, se não desejava mais alguma coisa se lhe concedia a honra de oferecer um Madeira ou um Porto; senhor ministro para aqui, senhor ministro para ali.

Acordando do sono letargal, anuiu a beber um Madeira e felicitou o dono do restaurante pelo modo como tudo estava preparado. Contudo, disse-lhe a meia voz: faço votos para que todos os clientes sejam tratados como o ministro.

— Certamente, certamente senhor ministro, a gente prima pelo bom, só assim se arranjam óptimos fregueses!

— Com um aperto de mão despreten­sioso, com o sorriso plebaico que lhe brilhava sempre quando via algo mais do que papéis à sua frente, despediu-se.

Tomou o cacilheiro de regresso já pronto a largar, com uma ideia que tentava reter a todo o custo:

«Hoje, vou a um chá de caridade, um bocado atrasado, mas ainda tenho tempo com certeza para me aborrecer» — isto era quanto pensava, mas no capítulo do aborrecimento saíram-lhe os cálculos furados.

 

 

VI

 

Se um trambolho qualquer, lançado distraidamente por um cosmonauta em viagem de recreio, tivesse caído na pacata Lisboa, não teria por certo produzido maior barulho do que ocasionou, o ministro José Augusto Barbas, ao ser introduzido nos salões da condessa.

O passo descontraído, o olhar agaiatado, qual reposição de outrora, o cabelo sem brilhantina, mão em posição de ataque à cata da dona da casa, que pressurosa, encantada com este convidado da última hora, que não chegara nem sequer a acusar a recepção do convite, e que por tal motivo nem por sonhos o imaginara, viera pôr a sala em reboliço.

Distraidamente não beijara a mão à condessa mãe, nem a de qualquer outra componente do cházinho.

Isto de uma pessoa nascer sem trazer gravado nas costas: eu vou ser doutor, ministro, industrial, empreiteiro ou pedinte, não estava bem. Se toda a gente trouxesse marca já não sucedia aquele desastre. Contudo a um ministro é sempre perdoável, mas parece mal, não é verdade?

Não beijar a mão à condessa, era lá possível! Tanto que era, que foi. E não tenham dúvidas que, se a gente viesse com os escritozinhos no costado, indicando o caminho que cada um trilharia neste vale de lágrimas para uns, e campo de espectáculos para outros, que é o mundo, fazia-se a separação como quem escolhe feijão frade e já não havia enganos de qualquer espécie. Porém, a técnica reprodutora ainda não descobriu esse meio avançado de prevenção e... bem, a verdade, e apesar da pequena indelicadeza se bem que, quase involuntária, o ministro fez um sucesso levado da breca.

— Ó filha, tu nem calculas; é cheio de encanto, aquilo sim, aquilo é um homem. Sem peneiras, terra a terra, tu cá, tu lá e doce, tão doce! Um homem de verdade.

— Vê lá não te derretas.

— Não te admires.

— Dançastes com ele, sentistes bem a sua presença?

— À distância filha, só à distância, dançar com ele era tabu e não consegui. Todas queriam experimentar o que era baloiçar nos braços de um ministro novinho em folha e solteiro; estás a ver, com estes predicados, pareciam moscas. Olha, atiravam-se a ele como gato a bofes. Inacreditável, simplesmente inacreditável!

— Então, e... tu, nada.

— Nadinha, palavra de honra que não consegui mais que tocar-lhe na manga esquerda do casaco! Aquelas sanguessugas não o largavam, mas digo-te que lhe hei-de pedir para me receber lá no ministério.

— Para quê? Tu és doida ou estás, a começar? Mas, tu falaste em casaco, então o homem, de quem se fala, não levava fraque?

— Nem levava fraque, nem beijou a mão a ninguém! Aquilo é um homem às direitas, nada de modas atrasadas e de pedantismos, isso só serve para se perder tempo e a paciência. A pôr colarinhos, a tirar colarinhos, eu sei lá. Ó filha, tu sabes lá os trabalhos que os homens passam com aquelas velharias dos séculos passados!

Mas digo-te que hei-de tentar estar com, ele.

— Que lhe vais dizer, santinha?

— Não sei bem ainda, mas talvez, que gosto dele, o admiro, que todo o mundo o admira e que eu sou parte integrante do mundo.

— Isso já ele sabe. Não sejas tonta, não o aborreças. Preocupações a mais já ele deve ter.

— Mas meteu-se-me esta na cabeça e tenho-lhe que falar por força! Nem que eu tenha de ir a todos os chás de caridade que aparecerem. Prometo-te que não o hei-de aborrecer.

— José Augusto, em abono da verdade, fora um autêntico folião. Sem as regras protocolares, esquecido completamente da sua posição, embebido e embalado por dezenas de suavíssimas mãos que o solicitavam, nunca mais pensou no ministério, nem na papelada, nem em reformas.

O «chá cup», o chá Porto, o chá Madeira e o chá-chá, levaram-no à barra. Às cinco da manhã dançava com a condessa mais nova, sua companheira inseparável, o twist.

- Assim, senhor ministro.

— Por favor, condessa, trate-me por José Augusto.

— Pois bem, José Augusto, o «twist» começa pelo balanceamento dos braços, assim, veja, depois, as pernas bamboleando de um lado para o outro, com movimentos acentuados das ancas e da coluna vertebral; olhe bem, assim.

Isso mesmo. Não mexa os pés do mesmo sitio. Formidável! Estupendíssimo!

O baile terminou a altas horas.

Os periódicos no dia seguinte podiam ter feito uma boa tiragem explorando o acontecimento, contudo, olvidaram-no, não porque José Augusto lhes tivesse assobiado aos ouvidos para que não fizessem alarde do seu à vontade, mas sim, porque em toda a gente e em todos os sectores contava com um amigo. Com todos podia estar tranquilo porque a sua honestidade o impunham e o que ele fizera, muitos milhares de mortais o faziam; com a única diferença de que nem todos são ministros.

Meio azamboado por aquele prefácio de entrada em contacto com a sociedade de preocupações camufladas e disfarçadas nestas diversões, sem alfarrábios mas com muitíssimas formas, fazia-o divagar esbanjando ideias de momento.

"Diverti-me! Diverti-me! Foi uma noite em cheio, sim senhor! Quem o havia de dizer! Dim, dam, dom."

Cantarolando, passava a mão pelo queixo, via-se ao espelho da casa de banho, esticava bem o pescoço e de mão na garganta, puxando bem a pele, mirava-se e remirava-se como que admirado com o que se tinha passado e da cara amarelenta e dos olhos iterícicos.

"Dim, dam, dom, estás com uma cor terrosa, meu velho! Ai ai ai, dim, dam, dom."

Deitou-se, o quarto girava à sua volta em velocidade supersónica. Mal fechava os olhos, zuc, parecia-lhe que tudo ia cair a todo o vapor; círculos coloridos, rodopiavam, rodopiavam formando um prisma de muitas cores, com predominância do cinzento muito escuro a atirar para preto. Abria-os, arregalava-os descomunalmente e segurava-se à cama com ambas as mãos.

" Miúdas! Miúdas! Miúdas! Ena tanta gente! ... É desta vez.

A condessa é bem girinha! Gluc, gluc! Já deve ser entradota, mas bem conservada e dizia cada uma, gluc. O malvado do twist deu-me cabo da tramontana e pôs-me o corpo num feixe; não, aquilo não é dança de gente! Mas a Teresinha, ai a Teresinha, um amor, um autêntico amor!"

Com estes pensamentos e com mais volta menos volta lá se deixou dormir. Mal tinha pregado olho;

— Senhor doutor, ó senhor doutor.

— Hum... Hum...

— Então não se levanta?

— Hum... Hum...

E esticava desmedidamente os braços, levantando um pouco a cabeça no doce prazer de proporcionar maior elasticidade aos músculos, usando, como qualquer burguês, o velho método de lançar a preguiça para trás das costas. Sendo ministro era de carne e osso como qualquer seu semelhante pior ou melhor vestido.

— Já telefonaram três pessoas.

— Oh! ai.

— Então, sempre quer o cafézinho na cama?

— Ai Joaquina, Joaquina. Deixa-me dormir, deixas, sim?

— Então e há-de ficar assim? Era num instante enquanto o enfiava pela goela abaixo.

— Não mulher, não, obrigado.

— Sempre ficava mais confortado. Custa-me tanto vê-lo ficar sem nada no estômago. Perante a tagarelice da boa velhota, não teve mais que ceder, levantando-se em seguida.

Ao fazer a barba, ia recordando por entre o esbatido do sabor a papel de música, misturado com o hálito refrescante proporcionado pela pasta dentífrica:

" Que noite, que noite! Não pode ser, devia tê-las feito lindas não haja dúvida! Estou mesmo a ver os jornais, vai ser o bom e o bonito!"

Mas não foi. A compreensão humana estava ganhando terreno. Que os desregramentos sejam tornados públicos para aqueles que os cometem se sentirem vexados, sim senhor. Mas que um caso esporádico seja tomado como opróbrio da pessoa que o cometeu pela primeira vez, nunca.

Ao entrar mais tarde no ministério, facto que toda a gente estranhou, mas sem que alguém comentasse o caso com o vizinho do lado, foi visitar secção por secção para olhar bem todos os funcionários que não podiam ir a chás de caridade, porque a caridade tinha-os esquecido e o ordenado mal chegava para a renda da casa e para o comer. No vestir, as mulheres faziam os milagres. Mas milagres, quantas e quantas vezes com que sacrifícios, com quantas lágrimas e aborrecimentos?!

Não restavam dúvidas, a emancipação da mulher em Portugal, mais cedo ou mais tarde, era evidente. E a razão saltava à vista. Todos os casais em que marido e esposa estavam empregados, viviam razoavelmente, os outros apertadamente. E a emancipação fazia-se porque a mulher deixou de ser o bicho do mato, sempre encafuada em casa, para contactar, com acerto, com ideias e com factos para a valorização humana.

Regressou ao gabinete. Hoje, não faria nada. Os papéis, se amontoados estavam, amontoados ficaram.

Feriado. Decretara descanso. Um dia de folga depois de cinco anos de trabalho não faz mal a ninguém e não há o perigo de se apanharem maus hábitos.

Olhando o jardim fronteiriço, testa encostada à vidraça para acalmar o calor de que estava possuído, continuava a ladainha matinal.

" Foi uma grande noite, foi uma grande noite!

Não cheguei a conhecer no íntimo qualquer pessoa que me foi apresentada ou com quem dancei. Mas foi muitíssimo bom, muitíssimo bom!

Está resolvido, até ao fim do ano tenho que me casar. Estamos em Fevereiro; até Dezembro­ tens que arranjar mais um entretenimento, meu velho.

A condessazinha é simpática. Porém, fuma, fuma, fuma como uma locomotiva a carvão. Mas parece boa pessoa. Mas a idade? Isto é uma encrenca!

A Teresinha é bem bonitinha! Talvez dezassete, talvez dezanove; e a maneira como dança o twist, uf! «», dá cabo do rapaz enquanto o diabo esfrega um olho. Isso não pode ser.

A Leonor, vinte e dois, vinte e três, um ar púdico, quase candura em botão, pode ser.

Dancei três vezes com ela, de vez em quando sentia a sua pequenina mão apertar-me a minha com toda a sua minúscula força. Nunca levantava os olhos e quando lhe falava, num gesto de agradecimento pelas minhas palavras, tlac, uma apertadela de mão e um encosto peitoral mais violento.

Boa pequena, não restam dúvidas.

Ou eu me engano muito, ou ela é filha do industrial Azeredo que meu infeliz irmão convenceu, em curtas penadas, a fazer uma obra social como não existe ainda segunda. Talvez. Tudo pode acontecer."

Quando as ideias começam a borbulhar e as sensações volitivas lhes dão razão, o desejo toma-se uma ordem imperativa e não há ninguém que o sustenha.

O doutor José Augusto Barbas, depois de alguns dias, em que o trabalho não lhe luzia nem um centésimo do costumado, habituou-se à ideia do facto a consumar.

Casamento, casamento, casamento era a sua obcecação entre umas correcções às propostas a apresentar ou um ofício para um organismo chorudo e que tinha de assinar.

Contra o hábito, lia por vezes uma coisa oito ou nove vezes sem ter percebido nada do que acabara de vistoriar, olhando. Arreliava-se, andava cansado, tudo lhe corria ao contrário do que imaginara. Eu sei lá, um conjunto de factores conjugava-se para o levar a dar o Nó fatal.

Começara a aceitar todos os convites onde teria probabilidades de encontrar a filha do industrial e, em verdade, topava-a sempre.

A luta para dançar mais vezes com a já imaginada futura esposa do que com as outras admiradoras ministeriais, era exaustiva.

— Senhor ministro, tenho um assunto muito importante a revelar a V. Ex.ª Posso dançar a seguir com o senhor?

— Certamente, certamente; - respondia com sorriso amarelo, mas muito bem disfarçado. Lá no interior ficava pior do que uma barata.

Óh filha, o ministro é cá uma destas brasas! E sai-se com cada uma!

— Dançaste com ele?

— Dancei; maravilhoso, maravilhoso. Maravilhoso e sabidão.

— Presa pelo beicinho!

- Também tu ficavas. Ouvi dizer que vai ao baile da Faculdade de Letras para conhecer problemas no próprio local. Contudo, parece-me que antes, inaugura não sei o quê. Tu sabes, qualquer coisa que eles inventaram, para dar mais pompa ao acto.

Se quiseres ir...

— Aceito. Já agora também quero conhecer pessoalmente essa especialidade.

— Mas repara que é dificílimo de caçar. Tens que te valer de todos os expedientes. Dos lícitos e dos ilícitos.

— Valerei.

Porém, José Augusto remava em direcção a Leonor e Leonor nadava em direcção ao ministro; e, ainda que com muitas dificuldades os encontros podiam-se considerar bons, atendendo à enormíssima concorrência.

A notícia soube-se em fins de Maio.

O doutor José Augusto Barbas casaria em Outubro com a maravilhosa Leonor Azeredo de Castro.

O acontecimento, comentado em todos os palmos de terra, habitados neste país, era fruto de todas as conversas. Também num pequeno território como este, a um espirro dado por José Augusto em Lisboa, os do Porto responderiam com toda a facilidade dizendo: "Saúde e bichas, senhor ministro". A que ele, com aquela fleuma que lhe era peculiar, diria: "bem hajam." E toda a gente meteria o nariz no que estava a fazer, sem mais interrupções, até nova espirradela.

Leonor levava como prenda e dote de casamento, uma herdade enorme junto de Évora, um pequeno barco, um automóvel e dois mil contos para as primeiras impressões.

O ministro punha, segundo a voz abafada da coscuvilhice: O título ministerial e o físico incorrupto, pleno de toda a sua força potencial nunca antes desbaratada em qualquer espécie de cabotinice ou acto menos próprio de alguém que deseja ter filhos sãos de corpo e escorreitos de pensamento.

O casamento realizou-se em Outubro como fora marcado e, ainda que tivesse sido um acontecimento de truz, deixou muita gente desiludida. E eu já lhes vou dizer porquê.

O casal, numa medida que devia só ter partido do ministro pois, segundo as linguazinhas esparvoadas da ignorância; tinha os gostos estragados para determinadas coisas, em vez de seguir em viagem de núpcias para o estrangeiro, porque é chique, porque é gaiteiro, porque é... parvoíce de quem pleita uma causa destas sem conhecer bem o nosso país, sejamos francos e sem papas na língua, porque o papão já ficou há mais de um quarto de século atrás. Mas com este desabafo já nem sei onde íamos. Ah, sim! Pois, em vez de seguirem para o estrangeiro a estafar a dinheirama ganha com tantas gotas de suor pelo industrial e pelos seus empregados, não senhor. Resolveram passar o mês de férias, que o titular da pasta da Educação tirara para o encaixe nupcial, visitando o país.

A paisagem e o colorido da região compreendida entre Alenquer, Olhalvo, Cadaval e Óbidos foi o prefácio da primeira noite feita de timidez, de indecisões e do arrojo oferecido pelas dádivas totais e que tiveram por cenário a calma pousada de Óbidos; toda ela e o burgo, envolvido pelas muralhas, com ruas estreitas e floridas, relembrando os séculos primeiros da nossa emancipação.

Na dia seguinte, direcção a Peniche onde apreciaram o labutar dos pescadores logo de manhãzinha.

Almoço na pequena ilha da Berlenga. Novamente Óbidos, Caldas da Rainha onde visita­ram o Museu José Malhoa, o Hospital rainha D. Leonor e onde compraram, para comerem pelo caminho, as afamadas cavacas das Caldas; fizeram compras de loiças típicas e partiram com destino a Alcobaça. Visitaram o mosteiro datado de 1152, e mandado construir por D. Afonso Henriques. Templo considerado único no mundo pelas suas dimensões e estilo gótico primitivo cisterciense, com 110 metros de extensão.

Foram, muito aconchegados, prestar homenagem a outros grandes amantes que tanto tinham sofrido alguns séculos atrás. Visitaram, no cruzeiro da igreja, os túmulos góticos de D. Pedro e D. Inês considerados como os mais ricos naquele estilo. Passaram à cozinha para verem correr o rio Baça e lembraram que a junção das duas correntes, Alcoa e Baça, próximo da povoação, lhe deram o nome. Na sala dos reis, apreciaram os quadros e azulejos que se referem à construção do templo se os Portugueses ficassem vitoriosos na batalha da tomada de Santarém.

Na Batalha, e ainda com dia, percorreram o mosteiro do mesmo nome (Igreja de Nossa Senhora da Vitória), o qual era dos frades dominicanos e que começou a ser construído em 1388 em estilo gótico. O marido recordou-lhe que o edifício foi construído como celebração da batalha de Aljubarrota, na qual os Portugueses demonstraram bem o posterior ditado: «que um homem vale tanto em sua casa que, mesmo depois de morto, são precisos quatro para o tirar» e a tosa que pregámos no invasor foi digna de registo.

Na capela do fundador visitaram os túmulos de D. João I, de D. Filipa de Lencastre e o de seus filhos, D. Fernando, D. João, D. Henrique o navegador; o homem que fez brotar da terra mais terras, e o de D. Pedro, o filósofo. Depois, os túmulos de D. Afonso V, D. João II e de seu filho D. Afonso que morreu tão desastrosamente. Foram às capelas imperfeitas destinadas a ser panteão real e onde se encontra o túmulo de D. Duarte. Já quase noite, rodaram em direcção a Fátima onde viram a basílica e a capela das aparições.

Leiria, com seu castelo fundado por D. Afonso Henriques em 1135, esperava-os e seria o seu lar por mais uma noite.

As ruínas de Conimbriga e, mais adiante, a alguns quilómetros, Coimbra com sua universidade transferida para ali por D. João III, tem como notável, a sala dos Capelos, a capela e a biblioteca; as duas últimas em estilo D. João V. Viram a famosa torre, a Sé velha, românica, do século XII e a igreja de Santa Cruz onde se encontram os túmulos de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I. Passaram ao Museu Machado de Castro e, rodando sempre, deram ao velho mosteiro de Santa Clara quase submerso e o convento de Santa Clara a Nova com o riquíssimo túmulo de rainha Santa Isabel. A quinta das lágrimas, onde D. Inês chorava as ausências do seu amado D. Pedro, não podia ser esquecida, assim como o jardim Botânico e o Penedo da Saudade.

Leonor interessou-se por saber o que era a «Praxe Académica» e o marido, que a tinha estudado, como esmiuçava tudo quanto estivesse ligado à juventude, explicou-lhe: «Constitui Praxe Académica, o conjunto de usos e costumes, tradicionalmente existentes entre os estudantes da cidade de Coimbra e os que forem decretados pelo conselho de Veteranos.

Só o estudante de Coimbra está, em princípio, vinculado à Praxe. Porém, os estudantes de qualquer outro estabelecimento do país, quando acidentalmente em Coimbra e usando capa e batina, ficam de igual modo a ela passivamente ligados.

A hierarquia da Praxe, em escala ascen­dente, é a seguinte: bichos, pára-quedistas, Caloiros, semi-putos, putos, quartanistas, quintanistas e veteranos, encimada com o Dux-Veteranorum.

A Praxe começa três dias antes da abertura oficial da Universidade e finda, normalmente, na hora do primeiro toque matutino da Cabra e no primeiro dia de Queima das Fitas.

As categorias de bicho e caloiro têm a designação genérica de animais e as de semi-puto ou superior a de doutores.

A hierarquia dos animais, em ordem descendente, é: bicho, cão, polícia e caloiro».

Por último, nomeou-lhe as insígnias da Praxe: moca, colher e tesoura; e disse-lhe que a Cabra, relógio que existe na Torre da Universidade, tem aquele nome porque em determinadas horas não toca.

Continuaram a romagem em direcção à Figueira da Foz, onde a praia, nesta época do ano, quase deserta, se mostrava em toda a sua magnitude.

O Luso com as termas e jardins e o Buçaco com o palácio, as matas soberbas, plenas de frescura e de beleza, quase paradisíaca, completada com a magnífica vista da Cruz Alta.

Aveiro com os seus saborosos ovos moles, o farol da Barra com trezentos e oito degraus, o túmulo de santa Joana, a paisagem da ria, a seca do bacalhau e os característicos barcos moliceiros.

Do Porto admiraram a vista que se desfruta sobre Vila Nova de Gaia com o rio e as pontes; a Torre dos Clérigos, os jardins do palácio de Cristal e, nos cais de Vila Nova, alguns barcos Rabelos que, segundo me tem soado aos ouvidos, estão em vias de desaparecer; o porto de Leixões, a serra do Pilar.

Barcelos, a beleza harmoniosa dos jardins, o rio com a piscina encaixada e, por isso mesmo, a mais saudável que podemos desejar, os seus galos, tão típicos e tão característicos, que o mundo inteiro os reconhece.

Viana do Castelo onde do alto do Monte de Santa Luzia se vê uma das mais belas conjugações da Natureza que, mesmo em nossas mentes, se possa idealizar: aterra, o rio, o céu e o mar em harmonia perfeitíssima. E os trajos típicos? E os bordados de toda a gama? E a Câmara Municipal? E a fonte do mestre João Lopes?

Monção, maravilha em flor e em frescura, com o seu palácio da Brejoeira.

Braga, com o Bom Jesus e o Sameiro.

Guimarães e o castelo, berço da nacionalidade, a torre de menagem do século XII, a capela de S. Miguel do castelo, românica e da mesma data, o paço dos duques de Guimarães, a Penha e S. Torcato.

Felgueiras, com as mulheres bordando à beira da estrada.

Amarante com a ponte, a casa de Seixedo, as igrejas e depois a paisagem deslumbrante do Marão onde a pousada os esperava para passarem dois dias.

Vila Real, o solar dos condes de Mateus, a casa natal de Diogo Cão, a torre de Quintela e a paisagem que se desfruta junto da cemitério de S. Dinis sobre o monte da Meia Laranja, paisagem, que me faz quebrar o coração quando lembro, que o poder descritivo é tão fraco, que nem uma amarelenta ideia vos posso oferecer daquilo que, íntima e intensamente, desejo que os vossos olhos um dia possam admirar, se ainda não tiveram oportunidade de ver.

Mil e mil vezes me choro de as garatujas que planto no papel, e que às vezes até a mim me custam a ler, não sejam visagens televisionáticas que vos possam satisfazer senão cabalmente, pelo menos, dar uma minúscula ideia do real.

Bragança, o castelo, o Domus Municipalis, e convento de Castro de Avelãs.

Guarda, a forte, feia, fria, farta e franca cidade egitaniense, além de lhes ter oferecido um magot esvoaçante de capas negras, outra segunda Coimbra em miniatura, cheia do riso e da alegria esfuziante dos estudantes que a povoam, mostrou-lhe a Sé e o castelo Afonsino do Jarmelo com as sepulturas antropomórficas e cabeçais medievais.

Manteigas e o seu vale mágico.

Covilhã com suas fábricas de tecidos e a serra da Estrela ali a dois passos.

O Fundão com seus panoramas, assim como Alpedrinha com seus solares e fontanários.

O ministro ainda pensou dar uma saltada a Penamacor. Porém, como a estrada do Sabugal e a partir de Vale de Lobos para lá, estava numa miséria, preferiu não oferecer essa triste visão de desmazelo à mulher e fez por esquecer.

Castelo Branco, com o antigo Paço Episcopal, os seus jardins e o seu bulício, bastante notável para uma cidade de província.

Vila Velha de Ródão com as portas de Ródão.

Castelo de Vide, o castelo e as ruas do velho bairro.

Portalegre, cidade de palácios e conventos. Estremoz, com suas loiças e costumes típicos, o seu artesanato, a sua torre de menagem.

Vila Viçosa, o palácio ducal, os conventos, o castelo, o panteão dos duques de Bragança e a porta do Nó.

Évora, a cidade museu, como é apelidada e com razão. Com a Sé do século XII, o templo de Diana, dos séculos I, II, ou III, a Universidade de 1551, o palácio de D. Manuel nos jardins públicos, o seminário do século XVI, o claustro do convento de Santa Clara, a igreja e o convento dos Loios do século XV, a igreja de S. Francisco e a sua capela dos ossos, o largo das portas de Moura, várias fontes, portas e monumentos na cidade em que se encontram traçados os estilos Manuelino, gótico, mourisco e renascença.

Leonor delirava com o Portugal que não conhecia e que só agora começava a compreender em toda a sua força, precisamente por o ir dissecando aos poucos. Mas isto que lhes estou a contar, assim desnudado da realidade dos lugares por onde passaram, em virtude de não me ser possível transplantá-los para o papel, com muita mágoa minha, como há pouco lhes disse, de maneira que todos pudessem deleitar a vista por todo este país, de adjectivação ainda não inventada para o classificar, tal é a magia que dele ressalta, tocou Leonor no seu mais fundo. As características das diversas regiões faziam-na pensar se estava dando a volta a muitos ou a um só pequeníssimo território.

Beja, a torre de menagem e o convento da concepção.

Monte-Gordo, com seu hotel de piscina e praia, onde ainda tomaram. uns agradabilíssimos banhos sob os raios do sol Algarvio.

Tavira, com as fábricas de conservas, as armações para a pesca do atum, naquela época do ano já desmontadas, e as suas ruas velhas.

Olhão, qual bairro árabe de casas cubistas e brancas, tão brancas, que mais parecem salpicos de neve na longa planície.

Faro com a catedral e a ilha em desenvolvimento.

S. Brás de Alportel com uma paisagem magnífica.

Loulé e, em maior profusão Quarteira, cheias de chaminés de gosto requintado e de um sabor típico inesquecível.

Lagos, de praias em abundância, separadas umas das outras por tabiques, transformados em rochas e ainda tão mal conhecidas, com suas grutas onde os pombinhos se banharam, naquelas apelidadas de sala de estar e sala de jantar, tal é a sua largura. Em Lagos fizeram compras de artigos típicos e encheram-se de figos, de dons rodrigos, de uma chusma de doces Algarvios!

Sagres, com o promontório e a fortaleza onde Henrique, o Navegador, estudava o envio das caravelas à descoberta de outros mundos, é bem um local para novos pensamentos, para outras ideias sem serem as do dia a dia.

Santiago de Cacém e as suas vistas.

Setúbal, com sua fruta, seu convento, seus estaleiros.

A Serra da Arrábida com seus panoramas para o mar, esse mar muito azul e muito límpido. A serra com seu convento.

Por fim, eis o Tejo que Leonor e o marido, naquele suave embalar de barco pequeno, deleitando-se, atravessavam pensando.

Agora tinham a certeza do que, no princípio do mundo e quando o motor primeiro fazia as partilhas, disse para os ajudantes: parem lá com isso! Esse é um bocado à parte. É um naco de terreno, que quero guardar, para um povo teimoso como não haverá outro, mas que será sempre leal e hospitaleiro.

Será um país que desenvolverão construindo estradas, aeroportos, gares marítimas. e que, depois de muito terem tirado ao solo, desenvolverão as indústrias, altura em que o povo entrará no apogeu, tendo todos trabalho bem remunerado e conhecendo que a concórdia e a verdadeira amizade entre os seres racionais gera a felicidade.

Porém, uma das suas fontes de riqueza, a qual será reputada como das principais, será a do Turismo. Para isso, eles farão do seu país o paraíso onde todas as pessoas, de qualquer continente, se sintam como as mentes idealizam o bem-estar.

Leonor, que ao princípio teria preferido o estrangeiro, ficou contentíssima com a escolha do marido. Para mais, e à semelhança de muitos patrícios seus, conhecia melhor a Espanha e a França do que o seu país. Ficara radiante, não restavam dúvidas. Sempre pensara encontrar o seu povo muito diferente, quase meio selvagem, para as regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos, mas enganou-se; tudo sorrisos, tudo amabilidades e sensibilidades, na maneira chã de contactarem com as pessoas.

Quando paravam numa terriola qualquer, vinha a garotada a olhá-los, primeiro, meio assarapantados, depois mais afoitos apontando para o carro luzidio.

— Olha, aquele és tu!

— Eh, pá, não apontes que é feio.

— Ora! Se tivesses um carro como este, o que fazias?

— Mas não o tenho!

—Mas, se tivesses.

P’ra qu’é que eu o queria. Não sei guiar!

— Mas, se soubesses?

— Ora, deixa-me, já disse que não sei, e pronto!

— Eh, pázinhos, chegai-vos p’rá qui todos, ii, que carantonha que tu tens e que pança!

— Está quieto e calado que parece mal.

Leonor, embevecida com tanta simplicidade, olhava-os amorosamente.

Quantos anos tens?

— Eu?

— Sim, tu.

— Tenho sete, e este tem seis, e aquele sete, e aqueles não me lembra.

— Então, não tiveram escola?

— Tivemos sim senhora, mas já acabou. Este, ainda lá não anda. Ainda é um caganito.

Ai sou! Já sei contar até cinquenta.

— Olha que grande avaria!

— Está-te cá a meter comigo! Olha, Hum!

— Deixa-o, ele é mais pequenito que tu.

— Pois é minha senhora, é uma pitorrazinha.

—Hum!

— Só com um assopro até voava.

Ai voava? Então, atreve-te.

— Deixa-o e diz cá, o que fazem teus pais?

— Trabalham.

As conversas ficavam pouco mais ou menos por ali porque, entretanto, o ministro chegava da sua visita extra-oficial à escola do pequeno burgo ou do lugar propício, onde, fora das vistas mundanas, pudesse verter águas.

— Que tal se portaram os nossos homens?

— Compraste rebuçados?

— Comprei, mas só havia dos de meio tostão. São um bocado enfezados mas paciência!

— Que pena! Mas não encontraste outros? Até me envergonho de os dar.

— Envergonhas? Pensa que eles não são fidalgos e que ficam tanto ou mais contentes com esses do que com outros quaisquer, pois sempre comem mais e a quantidade para estes inocentes é que tem valor. Foram habituados nessa medida e enquanto isto não mudar têm que continuar assim. E, acerca de rebuçados ou de qualquer outra coisa, põe isto na tua maravilhosa mente: qualquer analogia que queiras fazer entre uma pequena terra como esta e Lisboa é simples sonho.

— Querem rebuçados?

Nem resposta, moita-carrasco. Porém, lá estava o olhar guloso, cheio de afirmações, mas também de orgulho, em cada face dos filhos deserdados da fortuna. O pensamento dizendo que sim, com toda a força, sem contudo conseguir fazer vibrar o corporal.

O silêncio era bem sintomático. «Quem cala, aceita».

— Quantos são ao todo?

— Somos, um, dois, três,

— Tira daí, que tu não sabes contar.

— Mania!

— Vê lá se queres? Dois, quatro, seis, oito. Somos oito.

— Qual é o mais velho e o mais ajuizado?

— O mais velho é aquele, mas o mais ajui­zado sou eu. Isto diz o senhor professor, que eu bem finjo que não ouço, mas entendo-o bem. Não é verdade?

Os outros pimpões, olharam-no com ar afirmativo e um deles lá desembuchou, talvez mais para apressar a distribuição do que por ter vontade de confirmar o que o companheiro tinha acabado de dizer.

— Bem, então, toma lá e faz a distribuição igualmente por todos; devem calhar uns dez a cada um. Se sobrarem dois ou três, dá-os aos mais novos. De acordo?

— De acordo. Bem haja, minha senhora.

Bem haja. - disseram em coro.

— Vamos, meu amor? Adeus, estudai bastante e sede sempre bem educados.

— Adeus, adeus, adeus, ade...

Adeus, diziam as suas mãozinhas, de dedos gorduchos, sorrindo despedidas, adeus, diziam bocas e corações sem mancha.

O ministro partia sempre com o espírito inundado de uma tristeza contente.

Via os pequenos seres, meio inconscientes perante o que é a vida, e qual a sua finalidade, rirem, sorrirem apardalados com as inovações do progresso e com os senhores que lhe ofereciam rebuçados sem estenderem a mão.

O mundo continuava a ser muito estranho:

Se acossados pela fome pediam algum óbulo, levavam respostonas que os deixavam mudos e meio revoltados.

— Vai-te embora, rapaz! Não sabes que não se pode pedir?

— Mas eu tenho fome.

— Tu o que queres é comprar bonecos da bola. Põe-te ao fresco. Não ouviste? Desanda.

Que remédio senão desandar. Quando não pediam, inesperadamente, vinham senhores e senhoras da cidade e era encherem a barriga de rebuçados e de sentirem o olhar doce, quase protector que há tanto tempo estavam desacostumados.

Por que será que as pessoas da cidade são mais humanas do que as dos meios pequenos? E, ali à soalheira, se deixavam ficar parados, matutando naquilo que não compreendiam, enquanto um dos companheiros não os desassossegava para nova brincadeira.

Passados momentos, já nem se lembravam que por ali tinha passado alguém que os acarinhara e lhes falara de igual para igual. Só mais tarde, quando da rememoração dos tempos passados, eles voltam a pensar nos carros luzidios e nas anónimas personagens que neles viajam e, então sim, nessa altura ficam verdadeiramente gratos e se esforçam por os localizar e lhes agra­decer o bem que proporcionaram.

 

 

VII

 

Sete meses depois do casamento, José e Leonor continuavam vivendo naquela harmonia só realizada pelo amor e compreensão. Pouco tempo mais, porém, viveria o ministro em paz; naquele sossego que todas as pessoas anseiam por encontrar, sintetizado em alguém que seja o corpo ideal para a transmigração perfeita, alguém que entenda as nossas lutas e canseiras, alguém que nos compreenda completamente e seja a perfeita continuação de nós mesmos, alguém que saiba rir quando rimos e saiba guardar silêncio quando meditamos.

Arrasado pelo trabalho, regressava a casa mal terminava a última nota ou assinava um derradeiro despacho.

A mulher, numa recordação viva do tempo que levemente passara em solteira e que seria normal esquecer depois de casada, incompreensivelmente, deixava a casa e ia para o lar de uma ou outra amiga.

O ministro, primeiro triste, depois aborrecido, notava com mágoa profunda o desbaratamento da vida da mulher.

Após o matrimónio, ela dissera-lhe:

— José Augusto, tenho-te a pedir um favor.

E meigamente juntava-lhe as mãos em torno do pescoço e aninhava-se toda no carinho e na quentura suave dos braços do marido. Um grande favor, muito grande, muito grande; tão grande, que nem sei mesmo se deva.

— Diz, meu bem, meu amor, minha vida; - pedia o ministro beijando os cabelos em suspenso e muito finos da mulher. -Diz, meu amor, sabes que coisa alguma te posso negar.

— Prometes?

— Sabes que sim, meu bem terrestre.

— Juras?

— Concordo.

- Este dois anos a seguir ao nosso casamento vamos fazer os possíveis por não termos filhos.

E, ternamente, puxava-lhe a cabeça meio inclinada, beijava-lhe a face, mordiscava-lhe a orelha esquerda, beijava-lhe as fontes e os lábios, sussurrava-lhe doçuras, tentava provocar as reacções que toldam o pensamento e nos fazem comparar aos animais.

José Augusto com um rebate de arrependimento pela promessa apanhada no meio do «ron­rom» amoroso, escondendo os olhos nos cabelos da esposa, para ela não ler as nuvens, que subitamente caíram neles, frestas indiscretas da alma e do pensamento, prometeu, sufocando a rouquidão da voz, a porta quadrilheira do pensamento verbal e das irreverências humanas.

Leonor, ou porque não quisesse perceber o fluído telepático, que certamente lhe dizia quanto aquela restrição de alcançar o que o amor tem de mais sublime, de mais nobre, o motivo principal por que dois racionais se unem e que por tudo isso, nunca por que quer que seja, se deve condicionar; ou porque talvez não compreendera, agradeceu-lhe efusiva quase histericamente.

— Oh, Zé, Zé! Zé maravilhoso, havemos de ser muito, imensamente felizes, seremos a mulher e o marido ideais, estou certa disso, querido. — E ronrom para aqui, ronrom para ali, beijo deste lado, beijo daquele, beijo do outro, punha-o em vibração, todo treme treme.

Porém, o ministro, mesmo com altos e baixos fisiológicos, já não tinha a mesma certeza do primeiro dia, das primeiras horas de casados, dos dias em que a conhecera ou que não conhecera, mas em que a desejara, em que tinha idealizado não a mulher com a fortuna com que a recebera. Não. Necessitava sim da esposa amorosa, compreensiva, da esposa que lhe traria filhos ou não, segundo o entendimento dos órgãos genitais e nunca, segundo a determinação preconcebida de conceber ou não conceber.

Molemente, os braços descendo sobre os braços, um ósculo na testa, como quem diz: fui muito bem levado, um sorriso forçado no qual pôs toda a sua boa vontade, um beijo nos olhos, um murmurar labial e um beijo profundo fecharam o pedido da não criação e selaram o primeiro contrato ilegal entre marido e mulher.

José Augusto, que durante esses primeiros meses, apesar da restrição forçada, vivera quase feliz ou mesmo completamente feliz, principiou a ficar sombrio, macambúzio quando, ao regressar a casa, não encontrava a mulher. Nos primeiros tempos em que isto assim decorria, tentou por todos os meios, procurando todos os pontos nevrálgicos, dar a conhecer à esposa que não estava nada contente por ela aparecer depois dele, por fumar desalmadamente, pelas constantes reuniões a que ia, por parecer esquecer que tinha um marido que a adorava e com uma posição na sociedade a respeitar, qual chefe corporal e mentor da juventude portuguesa. Mas mesmo que não tivesse essa posição seria o mesmo; Leonor devia compreender que estava procedendo erradamente. É certo que mulher não é sinónimo de escrava, mas também o não é de cabeça de vento.

Nada, nada parecia entender.

Quando chegava, depois de ir mudar de vestido, dirigia-se ao pequeno escritório-biblioteca, sala de estar do ministro.

— Muito trabalho?

— Sim, algum.

— Está um frio insuportável.

O ministro, olhava-a introspectivamente, meio amoroso, meio reprovador, para, numa esperança retroactiva, lhe fazer ver que o seu lugar era em sua casa e não o entrar e sair de automóvel, para entrar e sair na das amigas.

— Deve estar, deve.

— Deve? Está.

- Talvez tenhas razão.

— O quê, não sentiste?

— Nem sequer me apercebi do tempo, para te ser franco. Saí do Ministério e vim direitinho para aqui para sentir a presença agradável de minha mulher. E foi talvez essa ideia que me deu calor e fez que eu não desse pelo tempo.

Leonor, tirando um cigarro, perna cruzada, coxas descobertas, cabelos soltos, sentou-se em frente do marido. De repente, levanta-se, ajoelha-se na alcatifa diante dele, põe-lhe os cotovelos nas pernas, tira-lhe o livro das mãos, agarra-lhe a cabeça e beija-o sensualmente. O doutor parece não reagir, mas ela não desiste, sabe bem como levar a água ao seu moinho. Tenta novo ataque alvejando novos centros sensitivos e ainda que sinta as reacções do marido, ainda desta vez não consegue levar a melhor.

Sem nada dizer, sentada nas pernas, com a cabeça de José Augusto sempre presa, o que o obrigava a uma posição incómoda, olha-o fixamente, torna a soerguer-se, mesma reacção e posição inicial.

— Está zangadinho o meu amor, está? Não seja assim, não? Um beijo grande, muito grande, sim?

O marido continuava olhando-a com ar distante, com o olhar vago que faz compreender às pessoas que estão perto, que elas são a razão do tumulto interior no reflexo desses olhos.

— Responde.

José Augusto desprendeu levemente o braço esquerdo da mulher e com a mão esquerda agarrou a pequena face amorenada, entre os seus dedos. Em movimentos ascendentes, descendentes e laterais acariciava-a ternamente; ia até aos cabelos, brincava com o dedo indicador por sobre a orelha pequenina e bem feita e continuava olhando-a fixamente.

— Amo-te muito, mesmo muito.

— Também eu, José.

— Verdade?

— Sabes bem que sim.

— Então...

— Diz.

— Então, faz por me compreender.

— Mas eu compreendo-te, meu amor. — E agarrando-lhe a cara entre as mãos, beijava-o com sofreguidão.

— Eu sei que gostas de mim; contudo, não é só isso que satisfaz um ser humano. Peço-te que me compreendas.

— E eu compreendo-te.

— Onde estiveste hoje? Perdoa a pergunta.

— Fui a casa de Margarida.

— Fazer?

— Jogámos um pouco a canasta mais as amigas do costume, tomámos chá, conversámos e aqui estou. Achas por acaso que fiz algum mal?

— Não, meu amor. És capaz de desviar o fumo do cigarro? Obrigado. Não, não fizeste mal algum. Mas, por acaso, reputas de alguma utilidade esses teus chás canasta, essa tua conversa com as tuas amigas que, desculpa, as penso bastante fúteis, sem outro qualquer interesse a não ser o de terem dois palminhos de cara engraçados, mas que teimam em estragar carregando-os de cosméticos.

— Oh, José!

— Tem paciência, os teus cigarros, sim, pensas tudo isso de alguma utilidade?

— Porque és assim? Como querias que passasse o tempo? Tu estás sempre encafuado no Ministério. Quando vens para casa ainda trazes papelada para ver, nunca tenho companhia, sinto-me tão só!

E a sua cabecita, de lágrimas bailando-lhe nos olhos, apoiava-se nas pernas de José Augusto e seus roliços braços tentavam envolvê-lo, ainda que fossem demasiadamente pequenos.

— Não sejas assim, não? Amo-te tanto, tenho tanta admiração por ti, tanto orgulho, tanta amizade!

— Acredito, mas responde francamente. Reputas de alguma utilidade essas tardes?

Passo o tempo. Julgo divertir-me.

— Mas têm utilidade? Enfim, qualquer coisa por onde se lhe peguem?

— Relativa, passo o tempo, divirto-me um pouco, não me aborreço durante aqueles curtos momentos. Não tenho nada para fazer!

— Pois bem, amanhã vou visitar uma escola para atrasados mentais. Queres ir?

— Mas já combinei onde estar amanhã.

— Telefona. — E as suas mãos tentaram realizar o resto, levantando-lhe a cabeça com os dois polegares, olhando-a, beijando-a, quase debicando, tentando, em estudo psíquico, dobrar aquele interior feminino, ainda um pouco volúvel, ainda esquecida de que com o casamento terminavam todas as concessões de solteira a menos que o marido esteja de acordo.

— Amanhã não, outro dia.

— Está bem, outro dia. Já tens mais dias marcados?

— Sim, tenho, deixa-me ver: hoje é terça, a quantos estamos hoje?

— Oito.

- Dia oito. Nove Cassilda, dez Manuela, onze Teresa Maria, doze; olha, tenho a semana toda ocupada.

— Bem, muito bem, muito proveitoso. Esta semana é tua, continua a ser tua.

— Não sejas sádico, não? Sabes quanto te quero. Porque me tentas fazer mal? Nunca me tinhas pedido para que eu não fizesse isto.

— Tens razão e não te quero fazer mal algum, antes pelo contrário. Porém, a outra e as outras semanas passam a ser minhas, melhor, passam também a ser minhas.

Estamos casados há quase dois anos, não é verdade?

— É.

— Pois bem, está bem. As outras semanas passarão também a ser minhas, concordas?

— Sabes bem que sim. — Sorriso amarelo e um beijo amolengado e sensaborão.

— Vamos jantar?

— Não tenho muito apetite.

Agarrando-a pelos braços, ergueu-a à altura dos joelhos, uma inclinação para a esquerda e hope! Sentada neles, lábios muito unidos, um ronrom maior, muito maior e o segundo contrato estava celebrado e com muitas possibilidades de continuar.

Noc, noc. Noc, noc. O jantar está na mesa.

— Ah!

— Está na mesa.

— Está bem. Ana, está bem.

— A sopa arrefece.

Aquilo é que era empata!

Os hábitos do marido em culinária, pelo menos tinham singrado. E assim, continuava a sopa em vez dos pequenos aperitivos; de melão com presunto, das cenouras rapadas, da salada mista, eu sei lá, de umas poucas de mexordices juntas e sem algo de interesse para o estômago.

Sopa, a sopinha era bem a entrada Portuguesa e que ainda, e embora não sem custo, se mantinha de pé em casa do ministro.

 

 

VIII

 

 

Com um ataque cardíaco, no preciso momento em que, sem papel na mão e com o à-vontade que sempre lhe caracterizara a vida, mesmo nos momentos de grandes preocupações, se preparava para falar, morreu o ministro José Augusto Barbas.

As suas aspirações, o seu grande amor ao país, a loucura apaixonada pelos problemas da educação, o desejo de fazer sempre melhor e melhor, tudo, tudo isso acabara em dois segundos: o curto espaço entre o levantar e o cair para o lado, perante o olhar esgazeado do director da escola que ele ia pessoalmente inaugurar em virtude do subsecretário estar doente.

Quando as senhoras se deram verdadeiramente conta do sucedido, gritinhos a medo saíram de seus frágeis e delicados peitos e ouviu-se em seguida o ruído semelhante que uma misturadora costuma fazer em funcionamento; o choro brotou espontâneo.

Corridas de um para o outro lado, empurrões para a esquerda e para a direita, vozes gritando: afastem-se, afastem-se por favor, não vêm que é necessário muito ar.

Esperanças vãs; com ar ou sem ele, o ministro partira sem se despedir. Sempre lhe fugira o pé, sempre, até mesmo no último momento, desaparecera sem dizer água vai.

Seria o calcanhar a fugir-lhe ou seria o prelúdio da renovação e do desagregamento dos conceitos ridículos da sociedade e que só servem para se perderem horas de vida nesta curta vida?

A estudar bem o tempo que passara na terra, ninguém notara nele incorrecções, quando se tratava de algo de útil para o seu país, para os semelhantes que dele necessitavam, fossem eles de cor ou não, e seguissem o seu credo ou outro qualquer. As praxes convencionais, que parecia quebrar inadvertidamente, a pensar-se bem nelas ver-se-ia que não transportavam proveito para ninguém. O beijar a mão a esta ou àquela senhora, além de ser anti-higiénico, não lhe dizia nada de especial a não ser, símbolo de pedantismo afectado; o dobrar a espinha até ao chão para cumprimentar o doutor tal e tal, o usar fraque em vez de casaco, nas cerimónias oficiais e assim por diante, falando de outras ninharias semelhantes, como ele lhes chamava; as quais, fazem mentalizar quem recebe estes salamaleques, quase sempre hipócritas, de seres superiores a quem todas as homenagens são devidas; o pobre, que não lhas faz, porque não se lembra ou por que a distracção não ligou imediatamente coluna vertebral, é que paga as favas e pode bem contar que na primeira ocasião em que o senhor Fulano lhe possa ser bom, não hesitará duas vezes.

Leonor não soube da morte do marido senão vinte dias depois.

Encontrava-se numa casa de saúde, incomparável com alguns hospitais de quartos interiores, sem ventilação, com camas pelos corredores, cheios de doentes tapados por pseudo-colchas meio imundas e de lençóis encardidos, em suma, de uma série de nenhumas condições de sanidade; essa casa fazia lembrar aqueles palácios dourados que a nossa imaginação de criança nos apresenta e onde a alvura, dada pela limpeza, pela desinfecção e pelo Sol que parece querer chamar à vida as pessoas, foi o local escolhido para ali mesmo receber o fruto da ligação entre Leonor e José.

Leonor estava em período de gestação e bastante mal.

Razão tinha para desejar um filho só passados dois anos. A vontade tinha-lhe sido feita, por acaso ou sem acaso, mas o desejo e a promessa tinham sido respeitados. A verdade e, passado o prazo, e outra vez por acaso ou sem acaso, sentiu o pequeno feto dentro de si mal findara o tempo do contrato que celebrará com o marido e, agora, ali estava esperando entre as dores terríveis que a atormentavam, misturadas com o prazer imenso que iria causar ao marido ao lhe oferecer um pouco do «eu» duplo, concretizado no bebé que iria abarcar o mundo com as mãozinhas.

Os últimos dez dias foram os piores, temia-se uma cesariana a todo o momento. Ao esgotar-se o décimo primeiro, uma encantadora miúda, muito rechonchudinha, de olhos vivos, muito abertos, apareceu com o sorriso, com que a inocência encara a vida e esperneando com toda a pequenina força que lhe permitiam os seus frágeis membros motores, qual sede de liberdade depois de duzentos e setenta e poucos dias encolhidos.

Ao saber do sucedido, ao conhecer que ao marido não fora ao menos dado o prazer de olhar parte do seu ser, a parte que ele tanto desejara e que já amava tanto, caiu bastante doente e chegou-se a temer novamente pela sua vida. Porém, com o pai à cabeceira, lembrando-lhe a todos os instantes que não se podia deixar abater, pois não tinha ficado só, que tinha que viver para que a filha não singrasse desamparada pela vida fora. Tanto disse, tanto arengou que o amor materno foi espevitado e em poucos dias estava salva.

Por entre os carinhos que dispensava à filha ia-se lembrando do esposo, da sua luta contra a inveja, contra o poderio dos mentecaptos, dos acéfalos que em lugares alcançados com méritos duvidosos ou com pedidos ditavam as suas asneiras e forçavam os seus subordinados a colaborarem nelas sem sequer as poderem analisar.

Estivera casada quase três anos. Contudo, só durante um ano e poucos meses, compreendera José em toda a sua acepção. Quando, influenciada por ele, comparara a olho nu a miséria e a sumptuosidade, a falta de meios de subsistência com que tantos seus semelhantes ainda lutam e o desperdício dos que não tendo consciência do verdadeiro sentido da solidariedade humana lançam dinheiro ao desbarato sem um mínimo de proveito. Que tristeza ver: uns, porque nada têm e que por isso vivem quase como irracionais os outros, porque vivendo no meio de luxos supérfluos dão uma paupérrima ideia de suas mentalidades.

Iria ter com pessoas influentes, com amigos de seu pai e com amigos de seu marido e pedir-lhes-ia apoio para montar uma obra para a reabilitação de pessoas com quaisquer deformações físicas. Faria o possível por substituir homens válidos que, andando a vender lotaria, ou pentes, ou capas de plástico, ou cabides ou quaisquer outras bugigangas pelas ruas, poderiam ser empregados em fábricas ou noutro lado qualquer e não andarem num trabalho vexante para pessoas robustas que, com ele só, são diminuídas. Esse entretenimento de utilidade que imaginava arranjar como ajuda de ganha pão para outros seres mais debilitados e que não quisessem aderir à possível reabilitação e educação que lhes oferecia em casas próprias.

O baptizado de Beatriz Azeredo Barbas foi marcado para princípios de Julho, a despeito de a mãe só querer registar a filha.

— Meu marido nunca simpatizou com padres e, se por acaso, se matrimoniou pela igreja, foi porque gostava muito de mim e porque respeitava a minha crença. Ele só acreditava no mundo e nos ditames da consciência. Porém, pediu-me logo que nunca mais o metesse em assuntos de igual teor.

Não sei se com isto me queria prevenir de que, tendo filhos, eles só seriam registados e que o baptizado seria, sim feito, mas por suas livres vontades quando atingissem a idade em que as mentes já sabem escolher o que querem ou que não querem.

— Não, minha filha, teu marido tinha muitíssimo bom-senso. Tinha as suas ideias, mas nunca te forçou, segundo penso, a que faltasses às tuas devoções; ias, se te apetecia, se não, ficavas em casa, é ou não verdade?

—Sim, é verdade.

— Então vês, não queiras ser mais papista que o Papa. Sabes bem que não ficaria contente de ter uma neta sem baptismo. E tu sabes que precisas de ajuda para as obras que queres fomentar. Vá lá, tenta compreender. — E com duas palmadinhas na face, sempre a convenceu.

O dia dez de Julho estava soberbo, o Sol iluminava em profusão sem que o calor sufocasse. Lisboa brilhava, não debaixo de focos artificiais, mas debaixo do bom Sol Lusitano, vivificador de almas e corações, de corpos jovens ou de velhinhos meio caquécticos que tentam distrair o resto dos seus dias contando, a quem apanham a jeito, as recordações do seu passado já muito bem passado.

Tudo, tudo parecia respirar a alegria benfazeja de urna quadra festiva. E era, os sinos tocavam de alegria saudando o pequenino ser que apareceu no mundo sem o braço do pai para o amparar.

E os sinos tocavam, tocavam, respirando festa, felicidade, alegria, amor, fraternidade, fraternidade!

A cerimónia tinha terminado; beijos, muitos beijos na testazinha do bebé risonho que, de tempos a tempos, fazia uma careta e tentava expelir um grão de sal que lhe tinha ficado na boquinha. Brr, Brr, fazia, sem a aparência de uma zanga, parecendo compreender, botãozinho lançado ao vento do mundo, que a revolta gera a revolta e que na revolta ninguém se entende; e, no final, todos são prejudicados.

O brilho que o acontecimento deveria ter foi em parte ofuscado pela morte do pai que não conhecera e que tanto a desejara. Esse pai que, a ser vivo, louco de felicidade, rompendo mais urna vez com o protocolo, a agarraria ternamente em seus braços robustos transformados em berço de veludo, lhe pegaria perante o olhar reprovador das pessoas «bem», mas que por vezes se esquecem dos pergaminhos a honrar e nessas alturas dão cabeçadas muitíssimo «mal».

A vida! A parvoíce! A educação em excesso que vira em mau viver, pois já ninguém está disposto a perder tempo com fantochadas. Outras, a falta dela. E outras a falta de conhecimento do mundo.

As pessoas habituam-se a ver só a elas, quais apaixonadas eufemísticas, só elas são Sol, só elas podem brilhar e o resto da humanidade nem pequenos gorgulhos tem direito de ser.

O mundo! O olhar vesgo dos racionais.

O avô de Beatriz resolvera fazer uma distribuição equitativa de dinheiro pelos seus operários. Tinha quinhentos e noventa e oito. Estava resolvido, daria mil escudos a cada um. Quinhentos e noventa e oito contos não era muito. Possuía uma fortuna em terras, fábricas e casas avaliada em quarenta e três mil... Quinhentos e noventa e oito contos não fariam soçobrar a balança.

Exposto o que tencionava fazer à filha, esta opôs-se peremptoriamente.

— Quer dar esse dinheiro todo, repartindo-o pelos operários aos bocados?

— Quero.

— Não faça isso, pai. O gesto é muito lindo, digamos mesmo, pomposo; eles, ficam muito contentes, todos vão querer felicitar e desejar uma longa vida a Beatriz. Aqueles que aqui vierem vão lamentar a morte de José e, assim, avivar recordações bastante penosas. Eu sei lá, uma série de movimento, de preocupações, para quê? Por quem, afinal? Beatriz não os entende e eu dispenso toda essa gente. Sou muito amiga deles para lhes querer causar qualquer maçada.

O pai tem ainda alguns operários sem casa, não tem?

— Não, não tenho. Onde queres chegar?

— Bom.

— Espera aí. Não, parece-me que não, aquele maroto do teu cunhado que nunca mais apareceu falou-me de tal maneira, disse-me tais laironas... Parece-me que o estou a ouvir: Senhor Azeredo, se tiver os operários a trabalhar junto das fábricas, certamente que lhe darão muito maior rendimento porque estão perto do emprego e não se arreliam logo de manhã por virem, como sardinha em canastra, no meio de transporte que utilizam; tendo uma casa limpa e com condições, para seres humanos e não para animais, fá-los andar sempre bem dispostos, sempre cheios de actividade, porque eles são, na verdade e ainda que muita gente queira desconhecer, seres como o senhor ou como eu. E se tem dúvidas, oiça: «Nasceram nuzinhos como qualquer um de nós, dormem, comem e fazem as suas necessidades tal e qual como qualquer ser dotado de razão. Perdoe-me que isto lhe diga»; e para a esquerda e para a direita, convenceu-me enquanto o diabo esfrega um olho.

Bom homem, grande homem! Mal empregado!

— Então, todos têm casa?

— Todos.

— E os trabalhadores rurais?

— Esses, bem, esses, é que, mau! mau! Esses, talvez tenhas razão e segundo penso estão um bocado mal, mas, aquilo também não dá rendimento nenhum.

— O pai desculpe que lhe diga, mas também não tem desenvolvido convenientemente a agricultura.

— Para quê?

— Para quê, então para que havia de ser?

— Para me pagarem a batata a pataco, o azeite a tostão e o pão a dois réis de mel mal coado o alqueire? Ná, minha filha, lá nessa é que eu não caio. E a perder mercados estrangeiros como estamos, não, não é o Azeredo que se vai meter em apuros enquanto isto assim continuar. Recebi as quintas de teus avós e tenho-as conservado mais por respeito, para com aqueles queridos antepassados, do que por aquilo que elas realmente dão. Mas, qualquer dia ponho-as com dono. Mais conto menos conto...

— Está assim tão desanimado?

— Estou. Quase que não dão para pagar ao pessoal, ainda que este esteja muitíssimo mal pago.

— Se bem que não concorde com qualquer espécie de venda, elas são do pai e o pai sabe o que deve fazer e não tem necessidade de conselheiros inexperientes no campo da agricultura.

— Dizes bem, inexperientes. Este é o nosso grande mal. Gritamos aos sete ventos que somos um país essencialmente agrícola e nem desenvolvemos convenientemente a agricultura, nem mandamos especializar técnicos para que o rendimento a tirar do solo seja o máximo com um mínimo de desgaste. Depois, para agravar a situação, vem a perca de mercados por querermos ganhar, em pouco tempo, quase o impossível e, então, sucede que, em vez de lucrarmos, ainda perdemos. Isto é pior do que tu pensas!

— Não tenho, como lhe disse, conhecimento suficiente para rebater o pai. Contudo, antes de consumar o que está idealizando, vai-me fazer um favor.

— Se puder.

— Pode sim. Nesta vida podemos tudo, desde que assim o desejemos ardentemente.

O pai manda saber quais os trabalhadores que não foram da outra vez beneficiados com casa, ou aqueles que, entrando depois das primeiras habitações construídas, estão nessa situação. E agarra nesses quinhentos e tal contos e manda construir habitações decentes, em substituição das palhotas em que se albergam.

— Mas vamos sacrificar muitas pessoas para beneficiar um pequeno número.

— O pai diga-me, faz favor: Que vão fazer essas pessoas que quer contemplar, com mil escudos? Uns, o menor número é capaz de os arrecadar e vai-lhes fazer um sofrível arranjo. Os outros, como o dinheiro vem sem esperarem, vão gastá-lo sem pensar duas vezes. Domingo sim, domingo não acompanham o clube de futebol da sua simpatia, apanham uma bebedeira, vão durante curtos dias ao café ou ao cinema sem ser o da fábrica porque, como não é a pagar, não presta. E em três tempos estão sem um chavo! E no fim de contas, quantos são os que beneficiam com essa desperdiçada generosidade? Uma minoria. Mas, mesmo esses poucos, beneficiam bem ou mal? Mal. Porque mil escudos, para os tempos que correm, não são quase nada; e por esse motivo não ficam mais ricos com a oferta; fez-lhes jeito, como certamente dirão, mas não chegou a aquecer nem a arrefecer.

Ora, se mandar construir as casas, beneficiarão na mesma, essa minoria, mas com muito mais vantagens.

— Pronto, venceste, venceste, escusas de gastar mais o teu latim.

— Não, pai, não venci, não foi essa a minha intenção, quis simplesmente mostrar-lhe a maneira como penso. Se quiser aceitar a ideia, aceita, se não quiser põe-a de parte: O dinheiro é seu e não quero, de modo algum, que fique contrariado por não fazer o que deseja.

E não ficou. O industrial Azeredo que era caturra como um americano e quando se lhe metia uma ideia na cabeça tinha que ser como pensava, não esteve com meias medidas, utilizou na mesma a válvula de escape, distribuiu o dinheiro como primeiro tinha pensado e construiu, do mesmo modo, as casas alvitradas pela filha. Assim, tanto um como outro ficou com a sua e ninguém ficou prejudicado.

— Ficaste satisfeita com a solução?

— O pai é terrível, tem que fazer sempre o que pensa, felizmente que nunca prejudica ninguém.

— Olha, minha filha, se eu visse que era mal não o realizaria. Sabes bem que não sou pessoa que ao ver que não estou a seguir o caminho direito não dê o braço a torcer, e me mantenha a defender esse ponto de vista, obstinadamente, porque não tenha lhaneza suficiente para dizer: Pronto, sim senhor, tem ou tens razão, vamos fazer como pensam porque ninguém é infalível por mais anos que viva neste mundo. Quando estou errado, dou a mão à palmatória e sinto-me bem contente porque é sinal que ainda tenho muito para aprender.

Este ano tencionava comprar outro carro, não o compro e, pronto, satisfiz os dois apetites.

Sabes, isto foi um bem. Um dos, males do mundo está no desejo louco que as pessoas têm de luxar, de mostrarem aos outros; que têm mundos e fundos, em suma, de aparentarem grandeza quando às vezes nem podem com uma gata pelo rabo. Olha, casacos de peles estão bem para as regiões do norte da Europa onde o frio é intenso, mas aqui em Portugal, bah! Assim como os automóveis. Não chega bem um para quem necessita mesmo dele? Para quê, para quê ter uma garagem cheia e tanta miséria ainda a debelar ou a orientar! Mas as pessoas e eu incluo-me nelas, com bastante arrependimento, porque com a minha idade já devia ter juízo, esquecem-se que podem empregar melhor o dinheiro que lhes sobra do que a comprar objectos inúteis; e estragam-no para aí ao desbarato, olvidando, quantos e quantos com aquele capital, tão mal empregue, podiam fazer, se não felizes, mas pelo menos minorar-lhes o sofrimento, diminuindo-lhes as faltas que sofrem de pão, agasalhos ou lar.

A filha, num gesto espontâneo, agarrou-se ao pai e beijou-o cheia de reconhecimento e de orgulho por ter um progenitor de tal envergadura.

O industrial, depois de ter ficado só, estirado num cadeirão bem estofado, olhar no vácuo, pensamento em voo, qual radar procurando algo nos céus, viu a filha:

"Vinte e cinco anos. Até aos vinte e um, altura em que casara, nada parava com ela, apesar do ar cândido que sempre a acompanhava. Bailes, cinemas, festas de toda a espécie pareciam ser o centro dominante do pequeno ser mimado, cheio de dinheiro e fazendo tudo o que lhe dava na gana.

A mãe, bondosa senhora, nunca se opusera a que fizesse fosse o que fosse e ele, muito menos.

Casara. O marido, por artes mágicas, quebrara-lhe aos poucos os pequenos defeitos e agora, ali estava já uma mulher, pensando em todos os pormenores pequenos ou grandes que possam minimizar a infelicidade dos seus semelhantes.

Querida filha! Tão nova e já tão experimentada pela vida! E eu, tão entrado em anos e de tempos a tempos falhando com os meus esbanjamentos que, bem encaminhados, tanta utilidade poderiam ter.

Se tivesse possibilidade de recordar ponto por ponto todas as etapas da vida desde que me conheço, quantos erros e quantas faltas não iria certamente encontrar? E tudo isto porquê?

Porque não soube comparar como devia, a maneira fácil como entrei na vida e como os entes que me rodeiam foram nela introduzidos.

Fui um cego. Fui um cego não por não querer ver, mas sim por não saber ver; saber é o termo correcto. Está no conhecimento dos nossos semelhantes o nosso próprio conhecimento, e sem os estudarmos, sem se dissecarem, temos a sensação, quando chegamos à minha idade, que algo falhou, que algo nos faltou para nos realizarmos cabalmente.

E a morte o que será, se a vida assim foi?!

 

 

IX

 

 

Três meses após a morte do ministro, D. Leonor não conseguiu resistir mais tempo ao olhar mudo das paredes, dos quadros, dos livros, de tudo quanto o marido fora parte e que por isso mesmo o lembravam a todo o momento e foi viver com o pai.

A pequenina Beatriz tornou-se o fulcro dominante das atenções do avô e era um regalo ver como lhe queria e a ternura que punha quando lhe pegava. Nela, o senhor via que mais se consolidara a sua existência, a sua vida e a felicidade de que era possuído fazia-o desejar a felicidade de todos os que o rodeavam.

Cultivava a amizade com prazer, tendo sempre em mente que quantos mais amigos fizesse e mais lhes desse a conhecer a sinceridade que punha em todas as suas acções, a boa vontade com que pretendia realizar ainda algo de útil, mesmo no fim da vida, mais espalharia a compreensão humana por intermédio deles.

Enquanto noutros tempos se encerrava no escritório ditando ordens telefonicamente, hoje misturava-se com os empregados, ia ao âmago das suas lutas e daquilo que faziam; e, se ao princípio se sentiam acanhados, meio encolhidos por ver o patrão ali a dois passos, olhando-os, tudo querendo saber depois, a pouco e pouco foram tomando consciência de que ele e eles eram feitos da mesma massa; simplesmente um vencera, talvez porque os antepassados já tinham vencido e eles precisavam de oferecer ainda a gema do seu esforço para poderem subir e alcançar postos directivos, só possíveis quando os patrões têm plena consciência do valor de cada um.

Azeredo de Castro misturou-se com os artífices e Leonor também; ambos iam a festas que incitavam e apoiavam como meio seguro para os desenvolver no contacto com o mundo dos pseudo-preceitos sociais. Por vezes almoçavam na cantina para bem dar a conhecer que eram iguais em tudo ou quase tudo, pois o dinheiro em quantidade é sempre produto de sorte ou do trabalho feito excepcionalmente.

Criaram um centro onde as filhas dos operários aprendiam além das letras normais, pintura, música e a bordar, estendendo assim às camadas, que o vulgo auto-apelida de inferiores, todas as facilidades dadas aos descendentes de ministros, de generais ou de indivíduos formados. A simplicidade com que realizavam isso, maravilhava todos pela maneira itinerante de espalhar fraternidade.

Beatriz crescia a olhos vistos, e a comparar as escadas que o pai fora obrigado a subir com as dela; as primeiras seriam de pedra já moída pelo tempo e portanto resvaladiças; as outras, as da miúda, eram os novos degraus rolantes feitos para poupar energias; mesmo assim, sempre foi para um jardim de infância e, em seguida, ingressou na escola primária que frequentavam as filhas dos trabalhadores. Este contacto primeiro não lhe fez nada mal, pois se serviam para elas, a neta do capitalista não era diferente. E só as largou quando mudou para o liceu.

Com o desenrolar do tempo e sem que o industrial conseguisse suster a queda, os produtos manufacturados foram decaindo aos poucos e poucos e temia-se a cada hora uma crise que aparentava ser aterradora. Azeredo de Castro via-se impotente para isso evitar e, a certa altura, seguiu-se o calamitoso desfecho.

— Estou perdido, estou perdido! Nada me pode salvar! Que vergonha, que vergonha! É a falência, é talvez a miséria, é a chacota dos amigos falsos, dos hipócritas que só se riem dos males dos outros e só se sentem contentes quando vêm os seus semelhantes em precárias situações. Que vergonha! Não há nada que a possa impedir. Ontem fechou a última fábrica. Pobres operários, eles bem não queriam, mas tinha que ser. Onde ia arranjar o dinheiro para lhes pagar, onde? Foi melhor assim.

Que pouca sorte! Quem diria, quem? Quem seria capaz de imaginar que há pouco tempo fabulosamente rico e de um dia para o outro me vejo nesta precária situação. Quem?

Não tenho outro caminho, vou vender o monte e as herdades. Mas para quê? O dinheiro está praticamente sem valor e se vou vender fico quase na mesma. Acabou-se, é o fim.

Pobre neta, com dezassete anos, sempre habituada a nada lhe faltar, qual será a sua reacção. Que lhe irá acontecer por esse mundo fora sem a boa capa do metal sonante?

A criada bateu e anunciou a visita de uma representação de operários.

O industrial quase a não ouviu, tal o estado de excitação em que se encontrava, mas perante nova pergunta meia lacrimejante da velha criada, que vivia tão intensamente como os amos os problemas deles, lá respondeu atabalhoadamente, parecendo que o cansaço o tinha invadido numa preparação finalizante dos seus afazeres sobre a terra:

- Que entrem, que entrem esses pobres amigos.

- Dá licença, senhor Azeredo?

- Meus senhores, que desgraça!

- A vida tem destas surpresas, senhor Azeredo, e ninguém está livre de lhe acontecer uma coisa semelhante.

- Pois tem, pois tem, mas não devia ter.

Fez-se o silêncio que normalmente segue a uma hesitação ou a situações melindrosas, em que os assuntos a tratar não são suficientemente fáceis de expor com aquele à-vontade que forja todas as conversas, sejam elas banais, e sem qualquer sumo útil ou de verdadeiro interesse.

Os operários iam-se empurrando mutuamente e tentando não ficar na fila dianteira.

Quando o ruído cavo de arrastar dos pés acalmou, o industrial, para dizer qualquer coisa, prosseguiu com a obcecação inicial.

— Que desgraça, que desgraça para todos.

O operário mais antigo aproveitou a deixa e foi direito ao que ali os levara.

— Senhor Azeredo V. Ex.a desculpe de cá virmos incomodá-lo a estas horas, mas depois de muito discutirmos sobre o sucedido, depois de termos pesado, como pensamos que deve ser, os prós e os contras, resolvemos falar com o senhor sobre o que nos parece certo e mais justo.

— O certo e o justo?

— Nós pensamos; assim estamos convencidos.

— Então, façam favor de dizer e creiam que ninguém mais que eu está pronto a tentar resolver a crise que nos deitou abaixo a todos, tanto a industriais como a empregados.

Mas se têm qualquer ideia façam favor.

— Se me permite, eu explico: Estamos desempregados, não ganhamos coisa alguma e ainda criamos vícios. O senhor foi mais que nosso protector e a menina assim como a netinha todos as adoram, para as quais desejamos todas as felicidades possíveis.

Com a protecção, que sempre beneficiámos, conseguimos algumas economias e aprendemos bem que a igualdade entre pobres e ricos já não é um mito quando lidamos com pessoas como V. Ex.ª

E, o que nos traz aqui, em algumas palavras é o seguinte: o senhor Azeredo abre as fábricas novamente e nós estamos dispostos a trabalhar durante dois ou mais meses, todos aqueles que forem necessários sem nos dar um tostão.

— Mas eu não posso fazer isso!

— Pode sim. E a nosso pedido faz simplesmente isto: põe todos os produtos manufacturados a preços sem concorrência, não lhe interesse ganhar mais que o suficiente para sustentar as compras de mercadoria e os encargos de família. Como não nos paga durante todo esse tempo, nada perderá e os resultados logo se verão.

— Mas isso não pode ser, os senhores têm família a sustentar.

— Se nos permite, isso é connosco, V. Ex.a faça-nos a vontade e verá como o bem será para todos.

Tanto insistiram, tantos argumentos apresentaram, que as fábricas entraram em laboração.

Os produtos a sair para o mercado internacional vinham ainda melhor apresentados do que anteriormente em virtude de os operários tentarem dar o melhor do seu esforço, porém, a situação agravava-se dia a dia. Tinham perdido mercados e tornar a alcançá-los não era assim do pé para a mão.

Os meses foram correndo e um dia, numa sequência de acontecimentos inesperados a encantadora Beatriz gritava esbaforida por toda a casa:

— Avô, avô.

— Não está, menina.

— Onde foi?

— Não sei, menina. Mas porque está tão excitada? Olhe que até lhe pode fazer mal.

— E a mãe?

— A mamã está na biblioteca.

— Mamã, mamã. - gritava a miúda, meia mulher, pelas escadas acima, mamã.

— Diz Beatriz diz, que alvoroço o teu filha!

-  Oh, mamã, mamã leia isto.

Uma carta de Penamacor, com o timbre notarial, comunicava que Beatriz Azeredo Barbas era instituída herdeira legítima do doutor Inácio Cosme, falecido há dois meses, desde que Vítor Manuel Barbas, desaparecido há vinte e três anos não tivesse descendentes, os quais instituía também herdeiros em partes equitativas.

Como, continuava o notário, mandara proceder à distribuição dos editais que procuravam o ex-ministro Vítor Manuel ou seus herdeiros directos e como ninguém aparecera no prazo indicado pelo Dr. Inácio, tornava-se por, esse motivo, Beatriz Barbas a herdeira universal.

O contentamento daquela criança já tão crescida não tinha limites.

Ai, ai, ai, vai ser lindo, ai, ai, vai ser o bom e o bonito eu herdeira de uma pessoa que nem conheço. Com certeza que foi algum apaixonado que morreu de amores.

— Oh, Beatriz!

— Oh mamã, mamã, já estou uma mulher, não estou?

E corria a abraçar e a beijar D. Leonor.

— Está quieta, que maçadora!

— Mãezinha, linda mãezinha, desculpa lá a tua filhinha, desculpas? Eu gosto tanto de ti.

Pela alegria eufórica que por vezes se apodera dos jovens e que não conseguem dominar, quando algo os parece fazer felizes, estava Beatriz possuída. E com meiguices de toda a espécie não deixava a mãe reflectir nem um só momento.

— Parece impossível, eu não me quero aborrecer, mas por favor, minha filha, deixa-me pensar quem é este doutor Inácio.

— A mamã não sabe?

E olhou D. Leonor com as pupilas muito abertas.

— Não, não sei.

— Então?

— Então, talvez teu avô saiba alguma coisa.

— Deve ser engano.

— Engano? Mas pode haver duas Beatriz Azeredo Barbas?

— Claro que sim, minha tontinha. Cada pessoa pode pôr o nome que quiser ao filho ou à filha, todas são livres para o fazer. Não é contudo muito natural aparecerem dois nomes precisamente iguais, mas pode acontecer muito bem.

O mamã, não diga isso. O notário fala no tio que nunca conheci, por isso não deve haver engano.

— Tens razão, mas não diz o que te deixaram. Isto é, se alguém, na verdade, te deixou alguma coisa. Porque te excitas? Ah, cabecinha! Deves mas é ir estudar e esquecer por enquanto o assunto.

— Oxalá que o avô venha depressa.

E veio. Porém, tanto ele como os descendentes, estavam todos a zero.

— Deixa cá ver os óculos.

— Os seus óculos?

— Sim, os de aros de tartaruga, os mais grossos.

É com esses que estou habituado a olhar o mundo, a olhar-me a mim próprio e à minha querida família.

Teu marido era, na verdade, dessa terra. Qual é o nome? Qual é?

 - Penamacor.

 - É isso, Penamacor.

- O avô foi lá alguma vez?

- Eu?! Tu estás a sonhar! Ali para aqueles lados é «Marrocos» como se diz na Beira Alta.

Teu pai falou-me algumas vezes em darmos por lá uma saltada. Falávamos de tempos a tempos nos seus campos entremeados de oliveiras, sobreiros, vinhas, de serras plenas de pinheiros e pedregulhos; e ali ao lado, a uns escassos quilómetros, Monsanto, a aldeia mais Portuguesa. Porém, para se ir até lá, para admirar as típicas casas encaixadas nas rochas e para se ver o soberbo panorama do castelo tinha-se que ir sempre com o credo na boca, não se fosse partir alguma mola do carro.

Já tinhas ouvido dizer que Monsanto é a aldeia mais Portuguesa? E que por isso mesmo, foi premiada com um galo de Prata?

— Não avô, não sabia da sua existência nem da oferta do galaripo. De Penamacor é que já tinha ouvido falar.

— Parece impossível. Mas que vos ensinam no liceu? Eu não sei francamente onde é que iremos ter! Se calhar querem começar especializando os miúdos para que se tornem máquinas autênticas, e de cultura geral se tornem uns brutinhos! Cada vez percebo menos do mundo.

— Mas avô, olhe que nós estudamos variadíssimos assuntos. E segundo tenho ouvido dizer somos dos poucos povos que temos uma cultura geral bastante boa.

— Pois sim, pois sim, mas só fama não interessa. O preciso é sabermos um pouco de tudo, é, eu sei lá, é sermos um pouco filósofos. Como os nossos recursos materiais não são por aí além, temos que nos defender com o espírito, com a cabeça, com conhecimentos. Anda que, se teu pai fosse vivo, outro galo cantaria!

— Então que fazemos?

— Que fazemos? Que remédio senão irmos até Penamacor. E olha, eu estou bem precisado de uma mudança de ares para ver se desanuvio um pouco.

Levamos o carro grande, para o que der e vier, não vão as estradas se encontrarem como há vinte anos teu marido as descrevia e arranjarmos alguma carga de trabalhos e de poeirada.

- O pai, não acha melhor telefonar primeiro para o notário?

— Bem, a ideia não é má, até me parece mesmo com muito acerto. Tens razão, é melhor telefonar-se.

— Ó avô, quando partimos?

— Espera, deixa ver primeiro onde param as modas e depois toca de meter os pés a caminho.

— Ó avôzinho fale a sério, fale!

— Nunca falei tão a sério na minha vida, posso afirmar-te. É simplesmente confirmar a verdade da cartinha e vais ver se não é certo o que te acabei de dizer.

— Beatriz, não maces o avô. Julgas que ele é da tua idade? Olha que tens dezassete anos feitos, não és nenhuma criança.

— Deixa-a lá. Hoje tem desculpa. Procura-me na lista, faz favor, o número do cartório Notarial de Penamacor.

— É já, avôzinho da minha alma!

Depois de se terem certificado que era, bem Beatriz, a herdeira indicada na carta do notário e de terem falado com ele longamente pelo telefone, o senhor Azeredo resolveu que partiriam na sexta-feira seguinte.

— Partimos sexta-feira. Concordas?

— Está bem pai, mas Beatriz tem liceu e não sei se terá algum ponto. Ela está tão fraca em latim que não adivinho o que por ali virá este ano. Estou com tanto receio da miúda!

— Deixa lá, se aparecer alguma raposa o mais que tens a fazer é conformares-te.

— O pai, nem me diga uma coisa dessas. Então admite-se que uma pessoa reprove no liceu? Não, não. Nem tal quero imaginar. Ela anda ali é para estudar e passar, não tem outro serviço a fazer. Se reprova é pelo menos uma grande falta de consideração pelas pessoas que se interessam pelo seu futuro.

— Ainda são crianças. Não vêem bem o mal que a si próprios fazem. As pequenas mentes não as deixam descortinar que, quando reprovam, lhes passam centenas de colegas à frente e que, por tal motivo, o lugar que poderiam alcançar, com pouco esforço, mal terminassem o curso, depois será um cabo dos trabalhos para o obter.

— Mas estes miúdos de hoje parece que não pensam em mais nada do que na brincadeira ou nos namoricos. Não se dão conta que o mundo corre e que é preciso acompanhá-lo a todo o custo, sob pena de ficarem para trás como qualquer enjeitado. Não sei mesmo, se para a castigar não a deixe ir a Penamacor.

— Isso, tem paciência, também não. Ela vai e por esta vez escapa, porém, se continuar a mandriar, sou de opinião que na verdade têm de se lhe apertar um pouco as regalias.

— Não tenha o pai dúvidas. Não serei clemente nessa altura e tanto faz que me envie mensageiros de paz como não. Arranjar-lhe-ei tal castigo que nunca mais tornará a cometer outra facécia semelhante. As festas acabam-se-lhe imediatamente, assim como quaisquer outros privilégios.

— Descansa que nada disso há-de ser preciso, ela estudará.

— Oxalá que não se engane.

O industrial Azeredo, a braços com a crise que afectara grandemente todo o país, quando da compreensão e do gesto espontâneo de todos os seus operários que lhe pagavam com trabalho não remunerado e desassombradamente o que tinha feito por eles há alguns anos atrás, num entendimento fraternal entre patrão e obreiros, começara a encarar a vida mais sorridente ainda e concluíra que ela será sempre bem passada se os pequenos racionais se compreenderem em toda a sua amplidão. Contudo, pensava de si para si:

"Porque existem diferenças entre os homens? Porque não consegue o povo subir airosamente as escadas da igualdade? Porque não sabe trepar e se perde na escalada que tenta fazer, esbanjando pessimamente o dinheiro que ganha com o trabalho honrado? Porquê, sim porquê? Por isso mesmo, porque não lhe ensinaram a canalizá-lo como seria lógico e então, ou se transforma num pedante tolo e julgando-se um ser muitíssimo importante ou o gasta sem proveito.

Pobre povo! Mas podes estar certo que me tens incondicionalmente ao teu lado."

O notário deixara-lhe muitas dúvidas sobre o doutor Inácio, mas dera-lhe a primeira pista que considerava de grande utilidade: ele dera aulas no internato em que seu genro fora aluno.

Tendo já um princípio para poder deslindar algo sobre a vida de um benemérito que nem sua filha nem sua neta, nem ele próprio tinha ouvido falar, não hesitou um segundo.

— Cá está; é aqui mesmo. Peço para falar ao director.

— Deseja alguma coisa? Faz favor.

— Perdão, quero, quero meu filho. Desejo falar com o senhor director.

— Ainda não está, deve chegar aí por volta das dez e meia, onze horas.

- Dez e meia, onze horas? Mas ele não é director desde as nove da manhã até às...

-...Às dezassete e trinta e durante um ano escolar, respondeu o gaiato com ar agarotado, sem papas na língua, e todo sorridente por poder demonstrar a alguém que lhe ligava alguma importância, que também achava aquele entrar tarde pouco coerente; mas um director é sempre um director e com um director ninguém se meta, ou então, se o fizer que vá bem escorado.

— E eu com tanto que fazer. Olhem que isto!

— E nós com aulas para dar, pois temos, melhor, tínhamos aula de literatura, mas como a gente já tem a língua desenferrujada até demais e como o idioma é o nosso, meio ano, chega para fazermos figura sem muito esforço. Por isso, a partir de Março, V. Ex.ª pode aparecer às nove e meia e a essa hora está com certeza, um pouco de mau humor por se ter obrigado a levantar cedo, mas está. Sabe senhor, parece que tem uns pouco de empregos e por isso o senhor sabe, a gente não pode servir a muitos senhores ao mesmo tempo, porque senão, algum tem de ficar prejudicado.

Quantos anos tens?

— Dezassete, senhor.

— Em que ano estás?

— No último, por isso é que tenho lições com o senhor director, dá só lições ao terceiro ciclo: duas horas por dia, durante três vezes por semana, das nove às onze; hoje por acaso é dia. Depois, parece que se vai embora, deixa uma resma de telefones para o procurarem, caso haja algum assunto mais urgente a resolver e isto cá vai correndo. Umas vezes bem, outras, tem-te não caias.

Aí vem quem espera. Tem sorte, não demorou.

- Bons dias.

- Bons dias senhor director. Adeus Raúl.

- Este senhor...

António Manuel. E simpaticamente como um bom diplomata que sabe cativar meio mundo, estendeu a mão ao industrial.

- Azeredo de Castro, muito prazer.

Azeredo de Castro, deixe-me ver. Azeredo Castro, mas nós já nos conhecemos!

É possível senhor director, mas não me recordo.

- Vimo-nos, pela primeira vez, há vinte anos.

O catraio com ar divertido, afastado dos dois, de mãos nos bolsos, não perdia pitada do prefácio deste encontro feito ali à porta. Devia ser o repórter principal do semanário do colégio. Olho vivo, disfarçando o ouvido apurado com o trautear de uma canção Moçambicana deu uma piscadela de olho ao industrial como a dizer-lhe: essa carcaça, tem uma memória levada da breca. Conhece todos os alunos, sabe de todas as faltas e às vezes é rabugento quando folheia o livro do pensamento. Também, se não tivesse assim uma cachola, não lhe confiariam tantos lugares como tinha. Ninguém gosta de ver, à cabeça de uma empresa, um burro, salvo se ele tiver fortes padrinhos que lhe cubram as orelhas.

— Há vinte anos! Vinte anos, só se...

— Isso mesmo, diga diga, foi no casamento do infeliz ministro José Augusto com a filha de V. Ex.ª Oxalá que a terra lhe seja leve.

- Que memória a minha!

— Não tem importância. Isto é uma questão de hábito, temos por força das circunstâncias que fixar muita trapalhada e a certa altura estamos de tal maneira entranhados que retemos tudo quanto se passa à nossa volta. Diga-me, meu caríssimo amigo, o que o trás por esta sua casa?

Senhor director, minha neta foi instituída, herdeira...

— Entre, entre, desculpe, faça favor de se sentar e de se pôr à sua vontade. Faça favor de continuar, sua neta, filha de José Augusto.

— Sim senhor director, filha de meu genro, foi instituída herdeira universal do doutor Inácio Cosme que foi aqui professor.

— Lembro-me, lembro-me perfeitamente, era um bom companheiro, sempre atormentado por algo que nunca consegui entender, mas um óptimo professor, um camaradão sem igual, mas sempre triste, sempre pensativo.

Amava os alunos como se fosse pai deles e os alunos adoravam-no.

Quando se foi embora, isto fica entre nós, pois até parece mal, porque a mim nunca se lembraram de o fazer, talvez porque não me preocupo tanto com eles como seria para desejar, ofereceram-lhe uma fotografia de todos com uma pequena dedicatória que ainda hoje recordo de cor:

«Bem haja senhor doutor, V. Ex. substituiu amplamente os pais que nunca tivemos a felicidade de conhecer ou que conhecemos bastante mal; receba a gratidão sincera de todos os alunos que jamais o esquecerão.

Que todo o mundo seja feito de pessoas como o doutor Inácio são os votos de coração e de todo o nosso pequeno pensamento.»

Era uma jóia meu caro, uma jóia. E eu que o diga!

Sim senhor, lembro-me bastante bem dele, tanto eu como os alunos nunca o poderemos esquecer; e ele amava bastante o seu genro e o Vítor Manuel, tenho até a impressão que mais ainda do que aos outros rapazes. Também, nunca cheguei a saber o motivo, eles não faziam nada por isso. Talvez por serem bastante bem comportados nas aulas e por serem uns alunos que até dava gosto ensinar, contudo nos intervalos eram o diabo à solta; mas nas horas em que havia estudo lá isso era uma verdade, os diabretes compenetravam-se no sentido da vida e sabiam bem distinguir as horas do trabalho e as horas da brincadeira; e escusavam de os companheiros os desencaminhar, enquanto não sabiam as lições ninguém era capaz de os desviar dos livros; embrenhavam-se neles de tal maneira que não pensavam em mais nada naqueles momentos. Mas, como ia dizendo, talvez por serem uns alunos muitíssimo bons ou por serem da mesma terra, nunca cheguei bem a compreender e ainda que tentasse disfarçar, eu percebia nitidamente que ele tinha um fraco pelos irmãos «Barbas», como eram então conhecidos os dois futuros ministros, e ministros a valer, não quaisquer borra-botas, como de vez em quando aparecem nos ministérios, os quais só querem penacho e vénias e nunca descem até ao povo para ver o que ele necessita. Sim, porque uma coisa é ver, e outra é escutar da boca não se sabe de quem.

E a confirmar a minha afirmação, vem que ele pagou os estudos universitários aos dois, ainda que eles nunca o tivessem nem sonhado sequer. E eu, só agora o revelo porque o doutor, como o senhor disse, morreu, eu nem o soube. O genro de V. Ex.ª infelizmente também e o Vítor Manuel levou tal sumiço que nunca ninguém mais lhe pôs a vista em cima.

Foram os primeiros que ajudou, depois, enquanto cá esteve escolheu sempre dois alunos que auxiliava, e o que tem graça e por mais que pareça estranho, por vezes não eram os que obtinham melhores classificações que escolhia, mas sim aqueles, que a sua psicologia lhe indicava; e digo-lhe meu prezado amigo, nunca falhou. Todos os que ajudou estão muitíssimo bem colocados e não iludiram as esperanças de quem à distância os via singrar, talvez contente de não deixar perder rapazes que sem a sua ajuda terminariam num simples escritório ou num empregozito de Estado, ganhando dois vinténs até ao fim da vida.

Era um grande Homem, um grande Homem com letra maiúscula.

Agora, segundo o senhor, deixa a sua neta toda a sua fortuna.

— É verdade.

— Ele que assim escreveu é porque pensou fazer algo de útil, porque de outra maneira não teria dado semelhante passo.

— Mas por acaso, V. Ex.ª não me sabe dizer se haveria alguma coisa, sei lá, aquilo na aldeia, bem, na cidade é muito pior, mas às vezes os patrões.

— Nem pense nisso meu amigo, tire essa ideia imediatamente da cabeça. O seu genro não tinha quaisquer parecenças com ele, nem tão pouco Vítor Manuel. Enquanto que os dois irmãos eram aloirados, de olhos azuis, altos e brancos, o doutor Inácio parecia mais um Português nascido em África e fruto da ligação de dois seres de cores diferentes do que um metropolitano nascido de uma ligação de um branco com uma branca. Não senhor, nem pense nisso, repito.

— Mas por que carga de alhos, havia de fazer semelhante testamento?

— Para lhe ser franco, não sei. Quando se ofereceu para pagar os estudos aos irmãos sem eles saberem, ainda tentei descortinar porque o faria, mas a verdade, permita-me a expressão «não tenho tempo nem para me coçar». É o colégio, é o banco, são as duas fábricas, etc., etc.; eu sei lá meu amigo, é um andar de manhã até à noite para se ganharem uns cobres que mal chegam para as despesas.

" Pois sim, pois sim," pensava o industrial lá para com os seus botões: "para este melro ter uma chusma de empregos, andam para aí outros de corpo ao alto a chucharem pelo dedo por não conseguirem nem um. Lamenta-te, lamenta-te ainda, meu filho; mas quantos, quantos, não se dariam por bem felizes se tivessem um só dos teus muitos, ou melhor, das tuas assinaturas em cada um deles e da meia hora de aula que deves dar aqui. Contudo, não parece que sejas má pessoa; mas com mil bombas! Há para aí muito e muito racional que não são mesmo nada más pessoas e não têm a tua sorte!

Paciência, o mundo é assim, pobres e ricos, ricos e pobres, hão-de sempre existir segundo o pensamento de muito boa gente. Contudo eu não penso assim:

Na educação está a base da evolução dos povos e quando o saber for extensivo a todos, ninguém mais será privado de uma casinha, do seu pequeno carro, da sua televisão, e de ter sempre amealhado algumas economias, pois que a educação fará mostrar a todos que o desperdiçar dinheiro sem proveito é o único bacilo que pode levar à miséria. Nisto, acredito firmemente."

Feitas estas considerações interiores, e as despedidas, o industrial partiu como tinha chegado, sem ter adiantado alguma coisa ao que, já lhe fora dado a conhecer.

A incógnita do pensamento, a do gesto humano, mais uma vez ficaria por se revelar?

 

 X

 

 

Nessa manhã de sexta-feira, o Sol, talvez triste e cansado de aquecer só mentira e devassidão na terra, fez gazeta como qualquer aluno que não estudou a lição e tem receio do raspanete que vai apanhar do mestre se a falta ficar castigada só por palavras. O dia apareceu um pouco frio e acinzentado.

— Beatriz.

— Mamã.

— Agasalha-te bem, olha que está frio, e pela Beira Baixa deve estar pior.

— Levo o casaco de gola cinzenta que é bastante quente e a blusa da mesma cor. Não tenha receio que não me constipo.

— Não te esqueças das luvas. Meteste na mala as botas forradas e meias de lã?

— O quê, também as botas? Ó mamã não, não é preciso, para mais, fazem-me um andar muito feio.

—Mas são quentes.

— Mas eu não tenho frio nos pés.

— Não sejas teimosa. Leva-as sempre, se achares que não as precisas, não as calças.

— Pronto, levarei as botas.

— Que remédio senão obedecer, eram capazes de se arrepender, lembrarem-se do malfadado latinório e lá estava o caldo entornado.

— Por onde vamos, avôzinho?

— Por onde quê?

— Qual é o caminho que seguimos? Demoramos muito?

— São uns trezentos e três quilómetros. Indo devagar, talvez cinco horas sejam o suficiente.

— Almoçamos no caminho?

— Almoçamos. Que horas são?

— São sete, sete e meia, oito. Bem, partimos talvez às oito. Oito e cinco treze. Como almoçamos pelo caminho, um bocado de paleio, etecetra e tal, vamos partir do princípio que não chegamos antes das dezasseis ou dezassete, pois aproveitamos e podemos admirar um pouco do país.

— E o caminho que tomamos?

— Vamos daqui até Vila-Franca onde com certeza verás os campinos com os trajos típicos ou sem eles, mas sempre com um certo garbo conduzindo manadas de toiros; para isso temos de passar a ponte em direcção a Santarém, onde daremos uma vista de olhos pela cidade e onde apreciarás o soberbo panorama das Portas do Sol. A seguir, tomaremos a direcção de Almeirim ou Torres Novas.

— Vamos por Torres Novas, avô, gostava tanto de ir ao castelo de Almourol!

— Não deves poder lá entrar. O Tejo vai com uma enchente extraordinária e eu não estou para que a minha netinha seja uma ninfa encantada nas águas do rio.

— Mas vamos, se não pudermos lá entrar, não entramos, mas vemo-lo de perto. Só o tenho admirado nos calendários e nalguns cartazes de turismo.

— Sim.

— Parece tão bonito! Rodeado pelo Tejo, mais tem a aparência de um castelo de sonho. Era capaz de se fazer ali um bom hotel, não fazia?

— Lá estás tu a imaginar.

— Mas olhe que fazia! Quem não gosta de viver entre os muros de um castelo lendário, rodeado pelas águas límpidas de um rio encantador e por pinheiros e eucaliptos, afastado do convívio humano e tão perto da natureza? E poder recordar a história de um belo amor, dentro dos muros do castelo!

O avô conhece a lenda?

— Não, tenho a impressão que, se a soube, já a esqueci.

— Pois saiba que uma das protagonistas tem o meu nome. Quer que lhe a conte para ver como é bonita e porque tanto desejo visitar o castelo?

— Conta lá, mas avia-te.

Há muitos séculos atrás, D. Ramiro, o senhor do castelo e que tinha fama de ser muito mau e o proveito também, matou a mãe e a irmã de um mouro chamado Aladil. Quando fez aquela cruel acção, por elas, coitadinhas, cheias de medo, terem deixado cair as bilhas por onde queria beber água, olhou para o lado e viu o miúdo que chorava abundantemente. Nesta altura, aquele coração de pedra condoeu-se e perguntou ao rapazinho se queria ir para o seu castelo e fazer companhia a sua filha Beatriz. Lá foi. Beatriz delirou de contente por ter alguém da sua idade e com quem brincar. Os anos foram passando e os dois amigos tomaram-se de amores, até que, chegando a idade que as suas mentes e as suas sensações os levaram a desejar o casamento, Beatriz convenceu Aladil para a ir pedir em casamento ao pai. Ele não queria porque tinha receio de D. Ramiro, mas por fim lá foi; então, o feroz guerreiro encheu-se de cólera, chamou-lhe cão e mandou-o prender.

A noiva banhada em lágrimas foi ter com o seu amado por meio de uns corredores secretos do castelo e pediu-lhe perdão do mal que lhe causara.

Aladil disse-lhe então que fosse junto de um dos lados da pequena ilhota, chamasse pelo gigante Almourol e lhe contasse o sucedido. Assim fez e o gigante prometeu ajudá-lo. Porém, quando voltou para o castelo viu Aladil rodeado por soldados e o pai com eles. Foi para uma janela do castelo e viu que o iam matar. De repente as águas do Tejo, começaram num redemoinho de loucura e envolveram em altas vagas soldados e guerreiros, sem contudo tocarem em Aladil. Mas Beatriz que, de tempos a tempos, não o conseguia ver, desesperada e pensando que parte de sua vida ia ali perecer, atirou-se de um dos lados do castelo, todavia nunca chegou a atingir solo duro pois as águas envolveram-na e colocaram-na junto do noivo, perto do seu Aladil do qual teve uma descendência enorme.

D. Ramiro ficou para sempre prisioneiro do gigante Almourol e, de vez em quando, em dias de borrasca, podem ouvir-se nitidamente os seus lamentos.

O avô já viu agora porque tenho tanto interesse em lá ir? Sabe, as lendas nos próprios locais até parecem verdadeiras, não parecem?

— Parecem, minha querida netinha.

— E gostou?

— Muitíssimo.

— Lindo quadro, sim senhor. Avô e neta entretidos a contar histórias! Oh pai! parece mentira, como tem paciên­cia para aturar essa miúda.

— Deixa-me cá mais a minha nétinha pois já temos tudo preparado e estamos simplesmente à tua espera. Bem e aqui para nós e em voz baixa, deixa-me que te diga que ainda não sabia a historieta.

Queres saber o resto do itinerário, não é verdade?

— Quero sim, avô.

— Vamos por Torres Novas, passamos o teu castelo encantado e almoçamos no hotel de Turismo de Abrantes, admirando uma bela paisagem a nossos pés enquanto damos trabalho ao estômago.

Seguimos pelo Gavião, Nisa, onde poderás comprar umas bilhas que além de fazerem uma água fresquíssima são bastante típicas. Passaremos, em Vila Velha de Rodão, as afamadas portas de Rodão com o Sol já meio a dormir.

Em Castelo Branco, além de tudo o mais, iremos ver as colchas de seda natural, todas bordadas à mão, onde escolherás uma para o teu enxoval quando te casares.

— Não esqueço o prometido.

— Também eu me lembrarei e, finalmente...

— Finalmente, deixe a maçadora e vamo-nos embora que já não se pode dizer que é cedo.

— Pronto, não se torna a repetir duas vezes. O comandante não manda, comanda e a gente obedece, não é verdade minha filhinha? Dá cá um beijo ao vovô.

— O pai, por favor, despache-se. Não deve dar confiança a essa pequena cábula que devia cá ficar. Mas até ao lavar da loiça ainda vai muito tempo.

Avô e neta piscaram o olho sorrateiramente e desceram as escadas em três tempos com grande esforço do simpático velhinho.

Depois de uns bons quilómetros andados, a entrada no paraíso prometido foi uma satisfação para todos.

A estrada, já às portas de Penamacor, rodeada de árvores, plena de camponeses, de enxada ao ombro, com os burros caminhado pachorrentamente à frente do dono, o cheiro agradável a terra revolvida de fresco, a paz que tudo parecia respirar, fez aparecer no íntimo de cada um o desejo imediato de ali voltarem calmamente para umas férias em banhos campestres, longe dos ruídos dos grandes centros.

Ao pararem o carro, para saber onde era o notário, em vez de um informador, apareceram uns quatro ou cinco, todos tentando ser prestáveis, sem qualquer deles o conseguir, porque como todos falavam ao mesmo tempo, ninguém se entendia.

Por fim, um cachopo vivaço e bem parecido prontificou-se a ir mostrar onde o homem de leis tinha o seu cartório.

— Entra para aqui.

— «» senhora, «» é preciso, é já ali acima. Eu «boto» a correr à frente do carro e ensino.

Anda entra.

— Vá, disseram os outros. Anda que sempre chupas uma cavalada.

— Entra, entra que sempre é mais rápido.

— Mas é já ali!

— Entra.

Quando, no minuto seguinte, o miúdo disse, já cá estamos, o senhor Azeredo tirou da bolsinha de prata vinte e cinco tostões e deu-lhos.

— Toma para comprares rebuçados.

— Não senhor não quero, bem-haja.

— Toma meu tontinho; não sabes que, quem faz um serviço, merece sempre paga? E tu fizeste.

— Mas também dei uma cavalada.

— Aceita, disse Beatriz, acariciando o cabelo encaracolado do gaiato.

— Bem-haja, mas esse dinheiro é muito, e depois levo alguma cossa, lá em casa de minha mãe, porque pensa que lho tirei. Não senhor.

— Mas compras rebuçados já.

— Aceita rapaz, não vês que é má educação. Estes senhores têm vontade de te dar esse dinheiro e tu aceitas. - disse o notário, saindo do seu pequeno gabinete de trabalho, onde fazia escrituras, lia testamentos, escrevia testamentos, dava conselhos e recebia inspecções.

— São a família Azeredo, não é verdade? Muito prazer.

— Muito prazer, senhor doutor.

— Façam favor de entrar e de estarem à vontade, não reparem é para esta desarrumação e desculpem não ter melhores cadeiras para oferecer. Mas certamente já tiveram ocasião de apreciar que a terra é pequena, por conseguinte, não nos podemos dar a grandes luxos.

— Por favor, não se incomode connosco, doutor.

Para não perderem tempo, o notário explicou, em poucas palavras, que o doutor Inácio Cosme o tinha procurado ali mesmo ao entardecer e que lhe tinha declarado à queima roupa que desejava fazer um testamento cerrado.

— Expliquei-lhe o que devia fazer visto ele, me querer dar parte do assunto na altura e, no dia seguinte, limitei-me a contar as linhas e as folhas por que era constituído e a lançar isso no meu livro, enfim, as sequências que a lei determina.

Em seguida deu-o a ler ao industrial, pelo qual ele ficou sabendo que sua neta era a proprietária legítima de duas boas quintas e uma casa em Penamacor. Três prédios de rendimento em Lisboa e uma quintarola na Beira Alta.

Depois de terem ido tomar café para recobrarem forças, o doutor foi-lhes mostrar a residência na vila, a qual tinha mandado limpar e preparar ainda que com bastantes dificuldades, pois com a mania que todas as criadas têm de irem servir para as cidades, viu-se e desejou-se para encontrar uma mulher-a-dias que lhe fizesse o serviço.

No entanto, pedia desculpa se tinha abusado dos poderes.

— Por quem é, doutor! Nós é que lhe estamos gratíssimos por todas as maçadas. E escusamos de ir para o hotel, ficamos aqui muito bem.

— Hotel? O senhor Azeredo esquece que está numa vila desterrada do resto do país.

Para cá termos uma pensão, sempre com meia porta para fechar definitivamente, vimo-nos e desejamo-nos. E não é porque não existam condições que possam fazer atrair os visitantes! Vistas esplêndidas e bons ares; bem saudáveis, por sinal. Vim para aqui um pouco abalado dos pulmões e hoje encontro-me rijo e cheio de saúde. Não é a minha terra, mas é como se o fosse; aqui casei e por aqui me devo ficar.

Mas deixemos esta minha divagação para poderem apreciar bem o pequeno paraíso, durante o tempo que aqui ficarem.

— Nós demoramo-nos pouco.

— Mas chega perfeitamente, isto corre-se em três pulos: visitam a mata, onde se poderia construir um bom hotel que serviria de casa de repouso e de saúde, pois tem panoramas formidáveis e sempre o cheiro vivificante dos pinheiros. As ruínas do castelo e das muralhas, com os antigos paços do concelho para ver, assim como o pelourinho, a porta da Misericórdia, o convento de Santo António e a torre da Igreja matriz, a qual, se alguém não lhe deita a mão, em breve rivalizará com a célebre torre de Pisa, tal é a sua inclinação. E a paz, a quietude que vossas Excelências respiram?

— Nota-se bem, que o doutor é um apaixonado pelo meio.

— Não tenha dúvidas, a terra merece-o, e a gente simples e sã que nela vive, também.

Por vezes há uma questiúncula aqui ou ali, porém é sol de pouca dura; passados alguns instantes tudo volta à normalidade.

Se não fosse Beatriz e ainda a vontade de passar pela propriedade, perto de Travanca, para a ficarem a conhecer e saberem se o rendeiro que lá estava queria continuar, em vez de três dias como lá passaram, nos quais mal tiveram tempo de darem uma vista de olhos pelo Pedrogão, Aldeia de Bispo, Águas, Aranhas, Meimão, Meimoa, Vale de Lobos, Bemquerença, Bemposta, Salvador e Aldeia de João Pires, a grande maioria com péssimas ligações. Os senhores directores das estradas, do infeliz distrito, e infeliz por naquele tempo não ter alguém, nesse lugar, de visão mais larga que os deixasse descortinar que os cargos não são somente para emproarem mais as pessoas, mas sim para lutarem pelo bem da colectividade nos serviços em que estão ligados; enfim, uma melhoria de condições de vida. Em vez de lá terem passado somente três dias como íamos dizendo, teriam ficado pelo menos uns quinze.

O notário, na medida do possível, explicou ao industrial quais os motivos que deveriam ter influído para o testamento ter sido elaborado como foi, e ao falar-lhe de Teresa e do marido, levou o bom do velhote a querer visitar os pais adoptivos do genro sem, contudo, revelar estes propósitos nem à filha nem à neta para que naquelas cabecitas de cabelos compridos não surgissem confusões ou quaisquer mal entendidos.

Quando chegaram à quinta estava o chefe ordenhando uma bela vaca.

Podemos entrar?

— Olha quem vem aí, o senhor doutor! Faça favor, a casa é sua e a porta está sempre aberta para todas as pessoas de bem.

— Já sei, já sei. Para principiar, bons dias.

— Bons dias meus senhores.

— Continue o seu trabalho. É um belo exemplar!

— Isto é uma jóia, cá a minha branquinha.

O senhor doutor sabe quanto deve estar aqui de leite, pouco mais ou menos?

— Dez ou onze litros.

— Dez ou onze? Estás a ouvir isto branquinha?! Dezassete, e às vezes mais. É um autêntico amor, vale tudo quanto come e nunca tem fastio, nem chupa concentrados. Mas se lhos desse, não sabia o que havia de fazer a tanto leite.

— Era uma verdadeira central leiteira ambulante.

— Não tenha dúvidas, senhor doutor.

— Agora, deixe-me dizer-lhe quem é este senhor. Não o conhece, pois não?

— Não tenho esse prazer.

— Pois fique sabendo que tem à sua frente o sogro do José Augusto por quem vocês tanto se lamentam.

— O senhor?

— Eu mesmo.

— Ó Teresa, Teresa, — e largou a correr tropegamente. - Ó Teresa, arranja aí depressa um bom naco de presunto e manda-me cá para baixo um canjirão. Ora esta, ora esta. Ó senhor doutor, entrem para aqui por favor. E eu a «pinsar» que nunca veria ninguém da família que o nosso Zézinho arranjou. No dia do casamento não pudemos ir, a Teresa lembrou-se de apanhar uma camada de maleitas que até cheguei a pensar que se me ia embora, afinal lá arrebitou cá com os ares do campo e felizmente nunca mais teve nada. Depois, ano para ano para os lá irmos ver, o senhor sabe... a gente, quem nos tira isto tira-nos a vida! Já estamos acostumados; e a verdade é que nunca chegámos a embarcar em virtude daquela desgraça que vitimou o nosso menino, — e as lágrimas soltavam-se-lhe a quatro e quatro sem as poder suster: — Que raio de vida!

— Acalme-se homem, acalme-se; o mundo é feito de morrer e viver e nós não lhe podemos deitar a mão.

Depois de um pequeno silêncio, feito de embaraço pelo assunto debatido, o Joaquim quis por força que as visitas bebessem uma copana.

— O senhor Azeredo virá noutra altura e com mais vagar, com a neta e, então, terá tempo de lhe oferecer alguma coisa. Para mais, este senhor como é da cidade, não deve apreciar por cá estes nossos hábitos.

— Aprecio sim senhor e dão-me até muito prazer, porém, como acabei de tomar o pequeno almoço....

— Tenham paciência, mas têm que provar a pinga e comer alguma coisa, nem que sejam somente algumas azeitonas. Mas a minha nétinha, perdoe-me, a nétinha de Vossa Excelência, gostava tanto de a ver! E a minha Teresa também, olhe que isto tudo pertence-lhe, a gente nunca conseguimos ligar, e eu mais o braço direito nunca tivemos filhos; portanto, isto é dela. Como gostava de a olhar!

— Ela há-devir, esteja descansado.

— Enquanto não vier pode Vossa Excelência estar certo que não estou, não senhor. Desculpe que lho diga, mas é a verdade.

— Agora se me permite vou-lhe dizer o que além de este senhor o querer cumprimentar, nos trouxe por aqui. Não sei se soube que o doutor Inácio deixou tudo à nétinha deste senhor.

— Ouvi falar. Isto corre logo.

— Enquanto vínhamos pelo caminho este senhor lembrou-se que o meu amigo era a pessoa indicada para lhe dirigir a herança e tomar conta de tudo. Está de acordo?

— Teresa, ó Teresa, avia-te.

— Já vou. Que pressa. Parece que é morte de homem!

— Eu gostava de tomar conta das terras, mas na verdade a canga é demasiada para os meus ombros, e eu já mal posso com uma gata pelo rabo. Se fosse há vinte anos, aquilo iria do pé para a mão, mas agora!

— Agora, o senhor contrata trabalhadores, faz o melhor que puder e quando tiver quaisquer dúvidas escreve para o senhor Azeredo e ele lhe dirá o que houver por bem.

— Escrever? Isso queria eu, nunca soube, em toda a minha vida, acasalar duas letras!

Com vontade ou sem ela o industrial e o doutor lá beberam do maduro da região acompanhado de umas lascas de presunto e da tagarelice da Teresa que nunca mais parou de fazer perguntas, de soltar exclamações e de chorar. Quando soube que a nétinha estava ali a dois passos já não parou enquanto não pôs pernas a caminho, e as foi ver com um cesto cheio de hortaliça, com galinhas, ovos, etc. tudo o que lá coube. Mãe e filha ficaram muito admiradas e sem nada compreender, mas quando perceberam toda a grandeza daquela alma sã não puderam conter as lágrimas.

Depois de ficar assente em como o Joaquim não tinha outro remédio senão ficar com a direcção de tudo, lá partiram numa nuvem de beijos, abraços, choros e com o porta-bagagens cheinho das dádivas campestres.

A viagem de regresso fez-se pela Beira-Alta apesar da estrada Penamacor-Sabugal, estar quase intransitável em parte, na parte que cabe à direcção de estradas do poeirento distrito de Castelo Branco.

Nos arredores da Guarda visitaram o dólmen da Pêra do Moço e o castro do Tintinolho.

Em Viseu, viram a Cova de Viriato, as Portas do solar e dos Cavaleiros e o Museu Grão Vasco.

Por S. Pedro do Sul e arredores, demoraram-se imenso, na contemplação do panorama que se avista da capela de S. Macário. Visitaram a piscina de D. Afonso Henriques, o balneário Romano, o Castro da Cárcova, o convento de S. Cristóvão e a aldeia de Manhouce.

Com esta paragem inesperada só tiveram tempo de almoçar, já muito perto das quatro horas da tarde em Santo António de Serém, e de seguirem direitinhos para Lisboa para não chegarem a altas horas, segundo os dizeres de D. Leonor que, a todo o momento, lembrava o latim que a filha tinha para estudar.

 

XI

 

— «Hoc enim sentio, nisi in bonis viris amititiam esse non posse». Já escreveu?

— Já sim professorzinho, mas palavrinha que não percebi quase nada.

— A linguagem, Beatriz, essa linguagem. E vamos lá ver a frase com calma.

— Mas eu estou calma, doutor, o que não percebo é nadinha disto, franqueza, franquezinha.

— Então porque não estuda?

— O latim devia ser só para os padres.

— Mas como não é... O melhor é deixarmos de analisar as suas ideias, pois por ora, não nos interessa saber para quem devem ser ou para quem não devem ser as matérias, mas limitar-se, isso sim, a estudá-las.

— Está a ver como tudo isto está errado. Vamos meter uma chusma de coisas na cabeça durante uma resma de anos, atafulhamos, atafulhamos sem nunca saber para que servem; e, depois, quando estão quase esquecidas é que, por meio da prática da vida, como dizem os mestres, vemos qual a sua utilidade. Isto, está tudo errado!

— Oh, Beatriz!

— É o que lhe digo, doutor. Tenha paciência mas está. Quando começamos a aprender seja o que for, a primeira obrigação do mestre devia ser declarar logo ali: minhas senhoras e meus senhores, o que vão aprender destina-se a este fim e àquele e pronto. Depois, cada um, quer gostasse ou não gostasse, já sabia a finalidade do seu estudo. Assim, anda-se ali uma caterva de anos a empinar matérias, sem percebermos para que serve esta ou aquela disciplina. Olhe que é triste!

— Mas não é o seu caso.

— Sim, não é bem o meu caso porque fiz as minhas investigações particulares. Tenho horror ao desconhecido.

— Então, sabe que o latim tem bastante utilidade.

— Admitamos que tem alguma.

— Bem, então, admitamos e vamos lá traduzir a frase, sem mais conversas. Traduza.

— Não sei.

— Faça um esforço.

— Já fiz, mas não sei.

— Sabe.

— Não sei.

— Não brinque com assuntos sérios, Beatriz, peço-lhe.

-   Verdade que não brinco. Da frase só entendi: Uma coisa, não sei quê, não sei quê e depois amizade. Como só estas palavras não bastam para a traduzir, o lógico é responder não sei. Ou não será?

— Está bem, está bem. Vá assim fazendo, se quer ver o lindo enterro que leva. A frase tra­duz-se: «Uma coisa eu penso com efeito, é que a amizade não pode existir senão entre pessoas de bem».

— Cada vez estou a gostar mais do latim. Tem cada tirada que a pensar-se nelas até dá vontade de termos vivido no Lácio, no século segundo antes de Cristo, para ouvirmos falar um Cícero e aprender o muito dos seus ensinamentos.

— Deixe-se de brincadeiras, estamos a dois passos do exame e está atrasadíssima.

— Não diga isso, falta-me só um bocado de vocabulário. A gramática sei-a toda na ponta da língua.

— «Hoc» o que vem a ser?

— É um pronome demonstrativo e cá estão eles: «Hic, Haec, Hoc» sei ou não sei?

— Sabe e não sabe.

— Ó doutorzinho, doutorzinho, deixe-me contar-lhe esta.

— Não conta nada, vamos à lição e deixemo-nos das suas historietas.

— Mas isto não é historieta, é verdade, a gente inventou.

— Inventou o quê?

— Conhece o mano Zé?

— Conheço, mas não me interessa saber coisa alguma.

— Primeiro, pergunta-me o que inventámos e agora não me deixa contar! Olhem que isto! E o senhor sempre a dizer-me para ser coerente. Por favor, agora, deixe-me desembuchar.

Fale, fale, desembuche para aí.

— Zangado não. Assim não conto nada.

— Está bem, fale, não estou zangado.

— Assim é outra conversa.

— Mas que termos, Beatriz! Francamente!

— O professorzinho desculpe lá o meu jeito. Mas, a propósito dos pronomes relativos e como os alunos fazem um salsifré medonho na aula do mano Zé, os rapazes inventaram esta: «Qui, Quae, Quod, quem tem barba tem bigode e na aula do mano Zé, cada um faz o que pode».

Está com laracha, não está?

— Emprega-me cada palavra, que eu cada vez compreendo menos onde tudo isto vai parar, com as inovações e os termos linguísticos usados pela juventude.

— Oh, doutor, não seja assim, está a tornar-se rabugento. Não sei se está notando.

— Estou notando que passámos uma hora inteirinha e não fizemos quase nada.

— Não fizemos? Até terminámos com uma frase bombástica, mas na verdade e sem pilhéria, correctíssima. «A amizade não pode existir, senão entre pessoas de bem».Pense nela doutor e tire uma conclusão.

— Eu não quero saber de conclusão alguma. A única que tiro é: se não estuda apanha um chumbo de tal ordem que, caso o liceu não tenha as paredes bem firmes, cai de certezinha, sou eu quem lho garante.

— Então sempre tirou alguma conclusão; o capítulo é que variou.

— Vou-me embora. Para amanhã, continua com revisões, vê ainda os pronomes e sabe-me ,na ponta da língua, os verbos defectivos. A lição é a da página noventa e nove.

— Vai ver que a sei de fio a pavio. É uma capicua a duo, nove-nove.

— Deixe-se de brincadeiras e de superstições reveladoras de mentalidade em atraso.

— Ó professorinho!

— Respeito.

— Porque é assim tão mal encarado quando quer?

— Não se esqueça de estudar bem o que lhe marquei e...

— Não seja assim, não...

— E de saber a lição como prometeu, na ponta da língua. O dicionário não se fez para estar na estante sem ser aberto. Se não o for, daqui até ao exame o resultado é...

— «Não conseguir fazer umas traduções com pés nem cabeça». Porque repete todos os dias o mesmo sermão?

— Beatriz.

— Doutor.

— Deixe-se das suas.

— Dá licença?

— Por favor D. Leonor.

— Então, o latim vai ou não vai?

— Há-de ir, há-de ir...

— Nota-lhe alguns progressos, doutor? Eu sei que ela é muito preguiçosa para esta língua defunta, como lhe chama. Mas lembra-te, Beatriz, se não passares, adeus férias grandes. Ficarás a estudar todo o verão. Vais para Penamacor, metes-te na quinta e já que gostastes de lá estar, vais conhecer o que são três meses sob o sol vivificante do campo, com o perfume das flores, o gorjear dos passarinhos e o sussurrar do pequeno ribeiro. Entende bem. São três meses sem teres quaisquer espécies de divertimentos. Nem lá existe cinema!

— Mas eu estudo, e passo de certeza absoluta, ainda que não me desagrade ir passar as férias para Penamacor. Foi o único lugar onde até hoje encontrei um pouco de sossego.

— Doutor.

— Vossa Excelência tem passado bem?

— Ultimamente nem por isso, insónias sobre insónias. Sabe, a velhice que se aproxima.

— Não se nota, minha cara senhora, os anos parecem ter esquecido D. Leonor.

— Engano, meu amigo, sinto-me cansada. Queria ver esse diabrete já formada para descansar um pouco. Mas ela, este ano parece teimar em fazer uma partida à mãe.

— Não diga isso, mamã, prometo-lhe que passo e não se entristeça por minha causa. Passeie, divirta-se; ainda é tão nova! Parecemos quase irmãs e com pouca diferença de idades, não parecemos doutor?

— Não tenha dúvidas, minha senhora. Beatriz não a tenta animar, ela diz-lhe o que muita gente pensa. E diz-lho francamente, orgulhosa de ter a mamã tão jovem.

— Mas o interior, o interior também conta. As pessoas, habituam-se a ver caras e esquecem o pensamento do seu semelhante; lembram-se só dos seus problemas íntimos; porém, quando analisam as outras pessoas esquecem que elas também os têm, para lhes olharem simplesmente a aparência exterior. No íntimo sou muito diferente. Estou muito acabada, pode acreditar.

A conversa prolongou-se por mais um quarto de hora. Maneira de ver o mundo para aqui, maneira de ver para ali e por fim, mais um incitamento ao brio da miúda.

Vendo que não conseguia ir a exame pela nota baixíssima que lhe apareceu na pauta no fim do primeiro período escolar, D. Leonor, em concordância com a filha, resolveu tirá-la do liceu e fazer a disciplina por fora; daí, a contratar o doutor Anacleto, um cabo-verdiano bastante vivaço apesar dos seus quarenta anos e com muito tacto para ensinar os alunos.

Beatriz gostava bem dele e provava-o estudando afincadamente o detestado latim. Uma vez por outra, quando a lição ia mal sabida, o doutor Anacleto não lhe dizia nada, mas amuava como os miúdos pequenos e sentia-se ofendido com aquela falta de consideração. Nesses dias, bem raros felizmente, além de não cantar uma suave, doce, uma muito quente morna, como só os naturais do Arquipélago o sabem fazer, brotando nostalgia, o doutor punha um olhar tão triste, tão magoado, que Beatriz jurava ao seu «ego» preguiçoso nunca mais lhe tornar a fazer a vontade.

Os meses, disputando uns aos outros o menor tempo, no tempo passavam velozmente. Não aqueles meses que parecem intermináveis quando as idades oscilam entre os sete e os onze anos, mas aqueles, que já parecem correr aos dezassete e que, conforme a idade vai aumentando, também eles parecem ir teimosamente diminuindo na escala da vida, quase se tocando o princípio com o fim de um ano, tão meteórica parece a sua passagem.

Os meses de Beatriz ainda não eram destes, porém, já ensaiavam muito bem os seus passos de fuga, e assim, em menos de um esfregar de olhos, fez o seu latim.

Julho, o mês das raposas e de férias em perspectiva; o mês em que o turista percorre Lisboa de lés-a-lés desde o Castelo de S. Jorge à Torre de Belém, passando pelos miradouros da Senhora do Monte, de Santa Luzia, o típico bairro de Alfama onde casas há unidas pelos telhados tal é a pequenez das ruas; a Feira da Ladra, a igreja da Madre de Deus, a Sé Catedral, a Casa dos Bicos, que tanto tem de justa fama como de inqualificável desprezo a que tem estado votada, a praça do Comércio, o Parque Eduardo VII e a sua Estufa Fria, o Areeiro com as construções ultra modernas, o Museu dos Coches, o Mosteiro dos Jerónimos, o monumento aos Descobrimentos, a célebre Torre; e no fim do dia, pleno de satisfação de quanto viu e admirou, vai jantar a um restaurante ou a uma adega típica no Bairro Alto ou em Alfama, onde ouvirá os fados bem tiradinhos, bem castiços e bem Portugueses. No outro dia prepara-se e dá uma saltada ao Estoril, a Cascais, Sintra e Mafra e, se por acaso não tem mais dias, com muita mágoa nossa, para cá ficar, já ficou pelo menos com uma ideia deste país sempre pronto a recebê-lo de braços abertos.

Pois, esse Julho, o Julho Português apresentava-se pleno de promessas, de um Sol esfuziante, cheio, amigo, o indicador imperativo das praias que se estendem ao longo da costa numa profusidade tal e todas tão simples e convidativas que ninguém resiste aos seus olhos hipnóticos.

Algumas estâncias há, ainda tão mal conhecidas e tão pouco exploradas que encontramos nelas somente pessoas sedentas de solidão. Os sonhadores, os admiradores mudos da natureza. Noutras, o bulício é tal, o ciciar das crianças tostadas pelo meigo Sol Lusitano, a alegria dos jovens papás e mamãs, o desejo dos mais antigos, tão sedentos do seu Sol, do iodo do mar como dos casinos, dos campos de golfe e de ténis, é tal que mais semelham vilas e aldeias sempre em festa.

Beatriz passou e bastante bem. O bicho-de-sete-cabeças, o malfadado latim não resistiu a tanta graça e sabedoria e apareceu com dezoito valores; Literatura quinze, História quinze, Filosofia dezasseis. Opa (Organização Política) dezasseis, Alemão dezassete.

O trampolim para a faculdade tinha sido muito bem batido assim como o exame de admissão que não tivera o gosto de a ver aparecer pelas brilhantes notas que a isentaram automaticamente do sacrifício, mas, na verdade, necessário.

- O pai não compra o carro. Eu não quero que ao entrar na faculdade de Direito se pense completamente emancipada e possa fazer tudo o que quiser.

— Mas ela não faz.

— Faz sim, pai. Nesta idade começam a subir os vapores à cabeça e depois para passarem, quem se vê nelas são os pais. Desculpe, mas não autorizo que Beatriz aceite o carro. Para mais, ela ainda só tem dezassete anos, é verdade que pouco tempo falta para os dezoito, mas sempre tinha que ser emancipada. Não, não e não, tenha paciência pai. Quer gastar dinheiro, não quer? Pergunte-lhe o que deseja, em vez de um descapotável qualquer.

— Mas Beatriz já sabe o que lhe tencionava oferecer.

— Pois sim, mas agora mudou de ideias, diga-lhe que fui eu, diga-lhe qualquer coisa ou não lhe dê mesmo explicações, ela não tem querer nem meio querer. Depois quando se formar e se o pai ainda tiver as mesmas disposições compra-lhe então o que agora prometeu.

— Senão, oferece-lho tu, não é verdade?

— Nada posso afirmar, tudo é possível. Mas como nunca podemos afirmar com toda a convicção que vamos fazer isto ou aquilo em determinado dia, por esse motivo, não posso dar-lhe uma certeza, se é isso que deseja.

— Eu estou a brincar.

— E eu também pai, mas fica assente: n ão lhe compra o carro.

— Não lhe compro o carro, está prometido, embora isso me custe. Ai, isto de os filhos mandarem mais que os pais! No meu tempo não era assim.

— No seu tempo não havia automóveis.

Com um beijo despediu-se do pai antes que ele com os subterfúgios que o tempo lhe tinha ensinado conseguisse modificar-lhe a opinião. Beatriz não teve o idealizado veículo.

— Ficaste aborrecida?

— Não avô, nada mesmo; já estou habituada. Sempre os pais mandaram nos filhos, sempre!

O simpático velhote não deu resposta, mas lá no fundo não estava muito de acordo com a frase da neta. E dizia de si para si:" às vezes, às vezes."

— Então o que resolves?

— Já tinha resolvido. Sempre pensei: o avô não o compra porque a mamã não concorda e acertei em cheio, foi ou não foi?

— Estás uma grande psicóloga. Mas continuaste a estudar!

— Que remédio; o mal era só meu. Se não estudasse não tinha carro nem curso e por isso preferi fingir que acreditava ter as duas coisas no fim do ano. Mas o avô promete que é na formatura?

— Prometo e a tua mãe anuiu. Nessa altura, não ponhas sequer dúvidas; quer o comandante queira ou não queira tens carripana pela certa.

E agora o que queres?

— Agora, quero passar as férias em Cabo Verde.

— Cabo Verde?

— Sim, Cabo Verde.

— Tu tens cada ideia! Mas deve lá estar urna temperatura insuportável.

— Não está, avô.

— Mas já pensaste bem.

— Não lhe disse que sabia que não me davam o carro? Como sabia, resolvi ir pensando aquilo que eu poderia ir escolhendo e, então, cá está, Cabo Verde.

— Neste momento, Beatriz lembrou tudo quanto o explicador lhe tinha contado sobre as ilhas: As partidas no liceu, quando todos, ao último intervalo, antes do almoço e já com o estômago a principiar dando horas, saíam em correria desenfreada das aulas, atravessavam o portão e aceleravam ainda mais a marcha. A mulherzinha das guloseimas, com ar de cumplicidade proveitosa, afastava-se do cesto que um safanão violento fazia ir pelos ares em virtude do qual a rapaziada apanhava os bolos apetecidos. Depois, e sempre que isso acontecia, a cena desenrolava-se igualzinha há de tantas outras, a boa velhota ia ao senhor reitor.

— Já sei, já sei; deram-lhe um pontapé no cesto, ficou sem os bolos e quer que eu a reembolse do prejuízo; é isso ou não é?

— É sim, senhor reitor.

- Tenho-a avisado que não deve vender a doçarada ali tão perto do portão. A senhora sabe muito bem que é muito mais fácil convencer uma pessoa só, do que trinta e quatro que são os mariolas desse terrível terceiro ano. Foram os mariolas de sempre, não foram?

— Parece que sim, senhor reitor.

— Mas já sabe, deve afastar-se.

— É a minha vida, senhor reitor. Não tenho homenzinho que ganhe para mim.

— Bem, bem, quanto valia o cesto?

— Ele foi todo.

— Vai sempre todo.

— Coitadinhos têm apetite e os bolos são muito bons.

— Quanto quer?

— Cinquenta e cinco escudos.

— Pague-se lá alminha e veja se consegue evitar estes desacatos que eu por meu lado farei outro tanto.

— Muito obrigado senhor reitor, que seja pela saúdinha de todos os meninos. — e saía toda lampeira pelo bom negócio que tinha feito.

Para o reitor a coisa ainda não tinha acabado e toca de chamar a turma de ataque à farinha e ao açúcar, passar-lhe um bom ralhete, vá de os contar não tivesse faltado algum e dividir o estrago pelas portas. Ao fim e ao cabo, ainda ficavam os pãezinhos com açúcar mais caros. Porém, assim sabia-lhes melhor, era o fruto proibido a acenar-lhes e o espírito que lhes deu a maravilhosa miscigenação a empurrá-los para o campo vedado.

Beatriz continuava a ver, a ver Cabo Verde, sem nunca lá ter estado: os homens com os olhos postos no céu, numa expectativa dolorosa do aparecimento de algumas gotas de água. As conversas, a partir de Julho nos que vivem da terra; passam a ser chuva ou não chuva; enquanto que os mais novos e alguns dos mais velhos também, orgulho da cultura Luso-Tropical, exemplo flagrante da fraternidade entre todos os povos; brancos ou mestiços, negros ou vermelhos ou amarelos. Esta fusão heterogénea de todos eles, dá ao cabo-verdiano um tipo de beleza inigualável à face da terra.

Tudo lhes serve para em três tempos arranjarem uma festa; desde os casamentos e baptizados até à morte. E as suas danças e cantares feitos de um sabor quase irreal: as coladeiras, o torno, a taca, o landau e a morna. A morna! A morna poema, sonho, melodia ou bailada é o teste onde o cabo-verdiano se analisa, onde mostra a sua mestiçagem étnica, cultural e espiritual. No amor, na languidez da morna, ele entrechocou a atávica tristeza negra com o saudosismo Lusitano.

— Beatriz.

— Avô.

— Estás a sonhar ou estás pensando?

— Nada, nada...

— Bem, então temos que comunicar ao comandante a resolução.

— Vai dizer à mãe?

— A quem querias que dissesse?

— Mas isto não é a compra do automóvel.

— Mas sempre tem de saber, e quer se oponha ou não, desta vez não se sairá como da outra podes ficar descansada; agora, unimos forças para o combate pois só assim poderemos vencer.

— Vamos passar as férias a Cabo Verde exista ou não oposição.

— Vamos?

— Sim, vamos. Ou importas-te que eu possa fazer umas pescarias de umas ilhas para as outras. Quantas são?

— Dez ilhas e umas cinco ilhotas.

— Deves estar forte na geografia do arquipélago.

— Passei uma boa parte do ano pensando nele — suspirou profundamente.

— Pois eu só sei que vou pescar, que quero visitar as salinas da Pedra do Lume, exploradas na cratera do vulcão extinto; e que tomarei umas banhocas na praia da Palmeira para ver se rejuvenesço. Queres ir de avião ou de barco?

— E a mãe?

— Primeiro, fazemos os planos e depois, apresentamo-los como um ultimato.

— Se formos de avião aterramos em que ilha?

— Na do Sal.

— Vamos de barco, sempre passamos uns dias no mar e para cá, se não tivermos gostado, vimos de avião. Concorda, avô?

—Sem objecções.

— Ao falarem com D. Leonor, esta achou bastante interessante a ideia, porém, como não tinha vontade de passar férias fora de Lisboa, resolvia ficar.

— Mas por que não vem, mamã?

— Não me apetece, tenho assuntos a tratar que tu não podes entender e tenho que ficar, quero ficar. Tens autorização para poderes ir e pronto. Combina com o avô o dia da abalada e eu lá irei despedir-me.

— A miúda olhou a mãe, decepcionada e saiu da sala pensativa: sempre fora muito esquisita, tanto a tratava como uma mulher, como de súbito lhe dizia que havia assuntos que ela não entendia e dava por encerradas as conversas.

Dirigiu os passos para os aposentos do avô e foi-lhe comunicar as últimas novidades.

Ai não quer ir!? Tanto melhor, vai ver como nos divertimos fora do olhar do general.

Olha, convidamos o teu professor para nos guiar e aí vamos de mala aviada.

— Ele não pode ir.

— Já lhe falaste nisto?

- Telefonei-lhe. Disse-me que este ano não podia deslocar-se às suas amadas ilhas e mais nada.

— Assim só?

— Sim, só assim.

— Deixa lá, não faz mal. Não nos havemos de perder, ninguém, nos come e vamos fazer um sucesso, sou eu que te o digo.

O simpático senhor Azeredo tinha razão. As almas simples, os desprovidos das invejas e das maldades tristes deste mundo, fazem sempre sucesso onde quer que estejam e para onde quer que caminhem.

 

XII

 

A notícia de que a mãe ia casar, encheu-a de alegria, mesmo tendo-a sabido só no próprio momento em que tinha chegado das ilhas que amara com todo o seu espírito feito de irreais, há procura de irreais e escrevendo sobre irreais nos seus poemas plenos de esperanças e de algumas dúvidas, das dúvidas sobre que todos os jovens escrevem quando o amor, o supremo bem da vida, começa ou ameaça despontar.

Beatriz trazia uma produção poética vastíssima do Arquipélago. Também as mornas, a beleza dos seus semelhantes e da paisagem, completamente feita de contrastes a tocara, a possuíra, a fizera entrar em êxtase, e os seus poemas tinham mesmo surgido com o acento nostálgico, quase preguiçoso mas pleno do encanto benéfico dos pequenos pedaços de terra envolvidos pelo mar calmo e convidativo. Pedaços que visitara e onde os olhos ficaram gravados.

Ao lhe comunicarem o novo enlace materno, esqueceram-se de lhe dizer quem seria o feliz padrasto; e assim, avivada a curiosidade e contente por saber quanto a mãe devia estar brotando alegria e felicidade, pediu para a conduzirem a casa o mais rapidamente possível.

— Mamã!

— Filha, meu pequenino amor! Que saudades! Como estás queimada! Mas que bom parecer. Que bem que te fizeram estes dois meses por lá. Gostaste?

— Simplesmente magnífico, mamã. O paraíso terrestre em miniatura, uma delícia, nunca pensei, só vendo.

— Então, aconselhas-me?

— Peço-lhe que vá mamã, vá que não se arrepende.

— Vou sim, minha querida filha, vou lá passar a lua-de-mel.

— Ah, é verdade, conte-me, conte-me mamã, quem vou ter por protector?

— Adivinha?

— Não sei, não faço a mínima ideia.

— É uma pessoa que tu conheces muito bem.

— Não adivinho de certeza absoluta, contudo, o pequeno coraçãozinho deu-lhe um estalo.

— Diga, mamã, por favor.

— Faz um esforço.

— Não consigo — e o peito batia-lhe desordenadamente.

— O doutor Anacleto.

— O doutor Anacleto!

— Sim, mas que grande admiração. Não gostas dele?

— Gosto, gostava muitíssimo.

Os olhos de mãe, aquelas pequenas gretas do corpo que tudo vêm, que tudo observam quando os filhos dizem o que não pensam ou que pensam o que não dizem, desta vez ficaram fechados e a introspecção não se chegou realizar.

D. Leonor, nublada pelo egoísmo que por momentos toma as pessoas que se pensam felizes, não sentiu naquelas poucas palavras «gosto, gostava muitíssimo», toda a dor de uma alma pequenina, tentando debater-se para não se esfarolar.

O casamento realizou-se quase sem pompa, mesmo apagado, muito sumido.

As críticas citadinas optaram pelo mutismo para que no meio de algum louvor a pena ou a língua não escorregasse e fugisse para uma reverberação.

O industrial não se conformava e dizia para com os seus botões: "tempos modernos, tempos modernos!"

O casal que antes do nó que os unira para sempre, para os bons e félicos momentos, tinha pensado em passar os primeiros dias de felicidade em Cabo Verde, mudou de opinião e vá de voltar a ideia para a Europa e nela se entranharam.

Beatriz, que se contivera durante todo o tempo que meneou entre a sua chegada e a partida do ditoso par, não se susteve por mais tempo, logo que os sentiu longe, as lágrimas rolaram-lhe, aos pares, pelas magníficas faces torradinhas pelo Sol profundo dos trópicos.

" Sou muito infeliz, hum, não posso supor­tar mais esta vida!" — E agora mais uma assoadela, agora mais uma limpeza das bochechas sem quaisquer pinturas, agora um soluço abafado, ia aumentando em ebulição, pensando o rumo de vida que iria tomar.

Tinha feito dezoito anos durante todas estas andanças e pedira para se emancipar. A mãe, no delírio que dá a felicidade nupcial, anuíra e dera-lhe a sua autorização.

Deixaria a casa que durante dezoito Primaveras a vira crescer em sensibilidade e beleza e iria viver ainda não sabia para onde, mas iria.

A resolução firme e patética estava tomada.

"Naquela casa não podia ficar mais tempo. Ali, nunca! Ficar debaixo do mesmo tecto que... não, não, nunca! Faria o que lhe desse na veneta sem pres­tar contas a quem quer que fosse."

Pensou no avô, no desgosto que o afável velhinho iria ter, mas, o seu eu refractário a pieguices familiares arrancou-a da fraqueza que por certo se deixaria possuir com o perigo de poder mudar de ideias.

O rendimento da herança, que ainda não tinha bem sabido explicar como a recebera, era de noventa e tal contos por ano. Como se emancipara, podia já levantar os do ano passado para as primeiras despesas e, depois, ordenaria que lhe fizessem os pagamentos directamente.

Se bem tudo pensou, melhor o fez. Aproveitou uma saída do avô para o Alentejo e vá de se mudar com armas e bagagens para Caxias onde arranjou uma pequena casa quase sobre o mar, para poder sonhar e carpir as suas mágoas enquanto novo amor, secreto, mesmo tão platónico como tinha sido o primeiro, sem contudo ter deixado de ser bastante intenso, mas tão sem maldade que o tinha perdido, viesse.

"E tanto que tinha estudado!"

Quando se lembrava disto sorria e dizia: «ainda há males que vêm por bem».

O arranjo da casa, as compras a fazer, o pagamento dos contadores da água, da luz e do gás, os contratos a assinar fizeram-na esquecer em pouco tempo as arrelias recalcadas e a todo o momento dizer na mesma linguagem que o pai empregara há vinte anos: “Vou-me divertir, vou-me divertir e há-de ser à grande e à francesa. Quero que todos tenham muita saúde, mas que não pensem em me demover destas ideias”.

Terminadas as compras, completadas com um pequeno carro, dispôs-se a enfrentar e a arrojar candidamente com as surpresas que a vida a todos apresenta, mesmo até aos muito, muitíssimo calejados e aos que já levaram muito pontapézinho.

A inexperiência levou-a a começar pelo divertimento trivial; o cinema, e aí passava as suas tardes, vendo fitas boas e más e apreciando sobretudo a multidão que a rodeava e para a qual antes nunca voltara o pensamento.

"Porque fumarão as pessoas? Algumas, por vício, outras, outras, talvez por pedantismo e outras ainda, para darem algum movimento às mãos e aos lábios quando estão sozinhas e entranhadas na multidão, sem saber como hão-de reagir perante uma assembleia que não lhes liga nenhuma importância, mas a qual, eles pensam, tem toda a sua atenção concentrada neles próprios. Olha aquele. Pisa o tapete em passo cadenciado, óculos postos no chão, mãos atrás das costas. Aposto que dentro de momentos está com a chupeta na boca." -E estava. A psicologia das multidões, o estudo que delas fazia deixavam-na como que obcecada no meio daquela amálgama de gente parada. Olhar fixo, olhar introspectando este e aquele era o seu passatempo favorito; entre os documentários e o filme ou entre a interrupção dele mesmo. Se era de guerra, sentada na cadeira, ficava pensando qual seria a boa e verdadeira finalidade dela e porque a faziam.

"No mundo, haverá na verdade uma necessidade imperiosa de um povo combater outro?" Não, sem sombra de dúvidas que não havia. Por ventura, esse povo, ávido do que é dos outros tem o seu território de tal maneira bem organizado, vivendo cada um dentro dele bastante feliz que se expande somente porque precisa de mais espaço vital ou simplesmente por concupiscência? Sim, só por inveja, por «se ter mais olhos que barriga» se pode fazer uma guerra. Porque, mesmo faltando espaço vital a um país, os seus naturais podem procurar nos outros países riqueza e depois regressarem para viver os últimos dias felizes, na medida do alcance da felicidade na sua terra de origem. Não, a guerra não tem explicação plausível.

Ao fim; de alguns dias já estava ficando saturada do mundo que a envolvia, do seu falar alto, parecendo que em cada grupo, alguém se estava querendo fazer ouvir nos outros, numa falta de polimento que a começava a indispor.

No último dia em que, por ter visto todos os cinemas da capital tinha pensado visitar cabarés; no raio telepático e introspectivo, assestado no intervalo do filme, apareceu um rapaz de estatura mediana, pele bronzeada, olhos muitíssimo escuros e cabelo meio encaracolado. O olhar fixo de Beatriz serviu de magnete sem ela quase se dar conta.

— Menina sozinha precisa companhia.

Beatriz estremeceu dos pés à cabeça, fora certamente longe demais no estudo e aí estava o resultado. Olhou fisionomicamente o mocinho. "Era simpático."

Tinha-lhe somente querido analisar o intelecto e a maneira como ele encararia a vida, sendo homem; mas, afinal, era bem giro exteriormente.

— Posso saber o seu nome?

Olhou-o novamente, sorriu contente por sentir alguém interessar-se por ela e continuou sorrindo com rosto franco e simpático.

Era um incentivo e o jovem prosseguiu:— o filme está mauzinho, não está?

- Hum, - fez Beatriz encolhendo os ombros.

— Eu digo que por fim acabam por casar, não pensa?

— Não sei, talvez não.

A conversa estava pegada, o mudarem de lugares para dois dedos de paleio durante o filme, em voz sussurrada, foi um ápice.

Saíram juntos e com as apresentações feitas.

— Tem onde ir?

— Eu? — Pergunta escusada e que denuncia imediatamente o principiante em assunto de saias.

— Sim, você. Não há mais ninguém.

— Desculpe, sou um distraído medonho.

- Não; não tenho onde ir, estou fazendo matrícula e ainda não tenho nada para estudar.

— Que curso vai seguir?

— Medicina.

— Faz bem. Nós estamos mesmo muito mal de médicos. E gosta?

— Penso que sim. Na roça, quem servia de endireita às cabras que se aleijavam era eu e todas saíam certinho.

Aposto que é Cabo-verdiano.

— Sou.

— Não tem sítio algum especial para onde ir. Verdade?

— Verdade, ia somente jantar, mas posso muito bem ir para outro lado. Não tenho contas a oferecer seja a quem for, estou livre.

— Então vem, comigo.

Artur já tinha ouvido falar muito das extravagâncias e das coisas mais absurdas que podiam acontecer nesta capital de Sol, pequenas elevações, praias e monumentos de toda a espécie. Contudo, não esperava começar assim a sua entrada.

O pai tinha-lhe dito: «Vais aprender muito, vais saber a valer do teu trabalho porque encontrarás em Lisboa professores competentíssimos e também, bastante exigentes. Porém, não só aprenderás isso, mas serás tentado a aprender muito da vida. Não te quero dar conselhos, neste momento; já o fiz quando eras mais novo, agora vais entrar na faculdade e aprender à tua custa, saberes-te defender e compreenderes o mundo. A tua idade é outra e o teu mundo passará também a ser diferente. Vais ter opor­tunidade de pôr à prova aquilo que vales. Se conseguires vencer, a vitória foi boa, porque a alcançarás com o teu próprio esforço e sem a ajuda de ninguém. Se voltares derrotado e desiludido tens muito recanto para meditares nas desilusões e ilusões e em tudo o que viste e ouviste.

Vai e usa sempre a cabeça e o coração. Nunca desligues muito a primeira do segundo.

— Nestas idades e mesmo nas outras a grande maioria das vezes o coração é mais potente e, aí estava Artur pensando o que se iria passar com aquela morena de aparência tão simples e com um olhar tão doce.

— Emudeceu?

— Não, não, estava a pensar, desculpe, tudo me parece um sonho, vou e vou com muitíssimo prazer.

— Entre.

— O carro é seu?

— De quem havia de ser? Leia.

— Beatriz Azeredo Barbas.

Bah! Sempre está resolvido ou tem medo.

— Medo? Sim, tenho receio da felicidade, medo de cair das nuvens, de acordar de um momento para o outro e a ver desaparecer. Porém, sonho ou não, o caminho é para a frente, vamos.

— Por acaso acertou, vamos para Caxias. Conhece Caxias?

— Não.

— Pois vai conhecer e gostar.

— Tem mar à frente?

— Tem.

— Então gosto e gosto bem.

— Vai lá jantar comigo. Certo?

— E seus pais que dirão?

— Quem lhe disse que eu tinha pais?

— É normal.

— Pois é, mas eu estou sozinha. Mesmo assim ainda aceita?

— Sozinha!? Claro que aceito — cada vez entendia menos de tudo, mas o momento não era para hesitações.

— Chegámos.

— Foi rápido.

— Feche a porta e despache-se pois tem muito que trabalhar. Gosta de salsichas?

— Gosto de tudo.

— Fazemos umas salsichas, uma omeleta, batatas fritas e salada de alface; vinho tinto, fruta e café. Que tal lhe parece?

— Bem, muitíssimo bem.

E Artur começava a descontrair, a fazer uns passos de dança cheios de contentamento.

— Está satisfeito?

— Muitíssimo, imensamente feliz.

— Vá lá dentro à salinha e ponha o giradiscos a trabalhar, ponha o que quiser, há discos para todos os gostos.

Vasculhou a pilha enorme de gravações porque lhe cheirava a existência das mornas que lhe fariam completar aqueles momentos felizes, com melodias que lhe lembrariam as suas ilhas. Não se enganou, lá estavam e em quantidade. Quando os viu, olhou para a porta para se certificar que a anfitriã não estava, agarrou os discos, colocou-os junto do coração e a seguir beijou, com os olhos rasos de lágrimas, os cartõezinhos que encerravam um pouco da sua terra. Carregou a maquineta só de música do arquipélago e toca de ir para a cozinha.

— As batatas estão aí. Não há criada.

— Eu descasco.

0 som dolente, nostálgico convidando ao amor e ao sonho começou enchendo o ar.

No fim do repasto, olhos brilhantes nos olhos, coração bac, bac, bac, vá de voltar os discos e baile à meia luz na salinha de estar.

A poesia caboverdiana começou a crescer, a crescer e Beatriz via-se sem forças, sem descortinar como reagir.

— Artur.

— Beatriz.

— Vamos ver o luar e o bater das ondas nas rochas.

— Só mais uma voltinha Bea.

— Não, Artur.

E, sem o entristecer, aos poucos, foi-o encaminhando para o ar fresco da noite, naquela varanda iluminada pelo luar.

Braço sobre o ombro, apertando-a de mansinho contra si, Artur, estava louco de indecisões.

— Beatriz.

— Artur.

As faces ardentes, afogueadas, brotando desejos e pedindo carícias teimavam em aproximar-se e faziam-no quase a medo, temendo talvez que um ou outro, dois saudáveis inexperientes, desistisse daquela dádiva que se ofereciam mutuamente no primeiro encontro de cada um e com a simplicidade e a timidez com que se comete a primeira má acção; os lábios tocaram-se como nos filmes que tinham presenciado, mas sem quaisquer variações porque ambos estavam verdes e eram simples.

Nova insistência labial e o luar, as ondas e o mar e os olhos, e os cabelos dos amantes, sãos, puros e bons entrechocavam-se, misturavam-se, uniam-se, sentiam-se bem. A febre, a febre da grande amizade avassalava-os, os braços de Artur fechavam-se em torno da frágil Beatriz e Beatriz anichava-se no seu Artur.

O amor seria aquilo? O verem-se, olharem-se, o continuarem por aí fora sem tento nem tino? Sem se conhecerem, sem antes nunca se terem visto, sem protocolares apresentações. Seria aquilo o amor? Era, era pelo menos o princípio de uma grande amizade.

O amor é a juventude, o amor é o pulsar de almas em botão e depois em flor, o amor é o raiar da manhã primaveril e o entardecer de brumas esbatidas de nuvens em farrapos mas rubras, muito rubras, do cansaço final do Sol na despedida, e num arranco de potência e de vida.

— Artur!

— Beatriz amor, Beatriz ternura, Beatriz doçura, Beatriz, Beatriz!

—Artur.

— Beatriz.

—Onde vives?

— Aluguei um quarto no Campo Grande

— Já alguma vez tinhas vindo à magnífica?

— Não, nunca tinha vindo a Lisboa.

— Já...

-    Diz.

— Já alguma vez tinhas beijado alguém?

— Não. E tu?

— Também não.

— Estamos quites. Mas porque vives sozinha?

— São histórias complicadas. Queres cá ficar em casa?

A pergunta feita de chofre deixou-o embatucado.

— Eu?

Parece-me que continuamos só os dois.

— Mas...

— Mas se tens receio, não aceites e então ponho-te em casa num instante.

— Já?

São quase duas horas.

— Fico, minha querida, fico.

Dizendo isto, mãos nos ombros, faces iluminadas de felicidade e um beijo suave selou o pacto.

— Escuta. Tenho dois quartos voltados para o mar e outros que deitam para o pinhal, escolhe.

— Fico num voltado para o mar, se não te importas.

— Não, nada mesmo, o outro é o meu.

Outra olhadela de cumplicidade e um beijo mais forte.

Como duas crianças crescidas que ainda eram, resolveram fazer o regulamento da casa para fazer face ao que desse e viesse e evitar possíveis complicações.

«Não haveria criada.

A mesada de Artur entrava para as despesas.

Faziam o serviço ajudando-se mutuamente. Prometiam ser os melhores alunos dos respectivos cursos.

O levantar seria às sete e o deitar às onze da noite.

Nunca podia haver discussões.

A grande amizade seria traduzida só em beijos, olhares e alguns chis coração.

No fim do curso casariam caso ainda perfilhassem as mesmas ideias.

O que ultrapassasse as marcas e não respeitasse o combinado, o desfavorecido seria Artur que iria para a rua com os trapos com que entrara no prazo de quarenta e oito horas»

Assinado e aprovado o regulamento, beijo de despedida e cada um para o seu quarto.

— Artur.

— Sim.

— Como hoje não tens cá pijama empresto-te um dos meus.

— Havia de ser bonito! Pensas que estamos no Carnaval?

— Assim não ficas bem. Olha que te servem.

— Mas não quero. Obrigado e adeusinho, até amanhã.

— Abre a porta.

— Já estou despido.

— Abre só uma fisga.

- Aí vai. Hope!

— Com pijama ou sem ele, terminou ali a primeira noite que tinha principiado e findado tão patuscamente.

 

XIII

 

 

Quando D. Leonor voltou da viagem pela Europa, ao ser-lhe contado o que a filha tinha feito, teve um forte ataque nervoso que a deixou prostrada durante alguns dias.

— Mas meu pai, não fez nada?

— Fiz minha filha, fiz, mas perante as decisões de que estava animada, resolvi deixá-la em paz e esperar que tu viesses.

— Temos que solucionar este assunto e sem delongas. É uma vergonha terrível. Que dizem os nossos conhecidos?

— Que dizem? Eles não podem atirar pedras. Também têm filhos e tu sabes bem como eles são agora.

— Mas Beatriz?

— Beatriz é desta geração, é deste século atómico e reage como ele. É uma geração plena de partículas, sem se lhe conhecer ainda verdadeiramente a sua potencialidade e até onde poderão chegar sob o signo dessa poeirada composta de átomos.

— Pobre filha, não tinha motivo para fazer o que fez. Eu a criá-la sempre com um olho em cima, nunca a deixando deitar mais tarde que as nove horas até atingir os onze anos, altura em que passou a poder deitar-se às dez, para que a sua cabecinha andasse sempre limpa de ideias e o seu corpo, embora parecendo frágil, vigorasse como vigorou.

Ai recordações, recordações. E agora? Agora, fez o mesmo que os miúdos criados a seu belo prazer, não se importando dos pais com as traquinices que fazem ou que deixam de fazer.

— Por mais que insistisse para que me dissesse porque tinha dado tal passo, respondeu-me só: «Porque atingi a minha maioridade». Mas isso não é razão suficiente, rebati. Contudo, não acrescentou mais nada e pediu-me para não insistir, em virtude de não ter quaisquer tenções de capitular sobre qualquer pretexto. Minha filha, até hoje tenho-te ocultado mais o seguinte: ela vive com um rapaz, ainda que me tenha jurado que o fazem como bons camaradas e que não têm qualquer espécie de ligação que não seja um beijo ou outro.

— Oh pai, pai!

— Tem calma, tem calma. Sabes bem que tua filha nunca mentiu e eu acredito-a plenamente.

— Mas conhece o ditado: «Estopa ao pé do lume, não tardará a arder.»

— Ela tem cabeça.

— Mas ele, será atilado?

— É, é. Pareceu-me um esplêndido camarada para Beatriz.

— Mas que dirão de tudo isto as pessoas que nos conhecem e mesmo as que não nos conhecem, mas que certamente sabem do que se passa. Porque estas notícias voam. Não é exemplo a aconselhar e eles estão dando um péssimo.

— Filha, deixa pensar o que quiserem. Quanto ao imitarem, é mais grave, mas espero que os jovens não caiam nessa tontaria porque o que estão fazendo pode sempre dar mau resultado; porém, Artur pareceu-me ser um amigo verdadeiro de tua filha.

— Como é ele?

— É cabo-verdiano como teu marido.

— Oh pai, pai! Beatriz em pouco tempo dará uma cabeçada, uma grande cabeçada e não haverá remédio depois.

— Tenho a promessa de ambos, o regulamento que os rege, e a sua inabalável decisão de não cederem perante quaisquer pressões.

D. Leonor examinou atentamente o panfleto que o pai lhe mostrou e abanou a cabeça.

— Verá que ou casam no tempo marcado ou se aborrecem um do outro. Conheço isso por experiência própria, perdoe-me que lho diga, mas o temperamento exótico dos cabo-verdianos, por vezes, faz com que o norte desnorte.

— Está descansada, ele é bom rapaz, e ela é a rectidão personificada e herdada do pai.

Não temas nem por um nem por outro.

Nas horas em que o estudo os não aperta, agarram no carrinho e vão visitar algumas casas de pobres. Por sinal, contaram-me uma parte bastante pitoresca ainda que não seja para nosso regozijo e que nos leva a pensar que temos ainda muito que fazer até atingirmos um bom grau de civilidade.

Numa dessas visitas, tratava-se de um casal que tinha sido há pouco deslocado de uma barraca de madeira para uma casa pré-fabricada e oferecida pelo Estado a indivíduos em péssimas condições de alojamento.

Sabes qual foi a serventia que deram à banheira da casa de banho? Adivinha.

— Não faço a menor ideia.

— Uma salgadeira.

— Uma salgadeira? Não, não é possível.

— Podes acreditar. E com presuntos e com bons pedaços de toucinho.

— É inacreditável.

— Pois é. Casos destes, começam a ser felizmente raros, contudo, ainda aparecem se bem que esporadicamente.

Indivíduos que só se lavam quando lhes dão banho forçado ao nascer, quando vão às sortes e quando se casam.

Para que querem eles aquele espantalho que está ali na retrete? E vá de lhe dar qualquer utilidade. Neste caso foi o da salgadeira.

— E cheirosa com certeza.

— Sabes bem que barriga de pobre não conhece mau pão. Digo-te: as ideias que animam os pequenos são as melhores e eu confio neles.

— Oxalá que não se engane.

A que horas posso encontrá-los em casa?

— À noite, depois das sete é a melhor hora.

Passados dias, D. Leonor foi visitar a filha.

Encontrou uma sala de estar, transformada em sala de estudo com livros espalhados por todos os cantos.

Beatriz tinha esquecido completamente a dor que sua mãe, involuntariamente, provocara e lhe fizera dar tal passo. Se não lhe tinha telefonado foi porque não sabia da sua chegada.

— Minha filha!

— Mamã!

— Como estás bonita!

— Mãe, Artur.

— Muito prazer.

— Sente-se, sente-se e deixe ver o casaco.

A conversa entre os três, demorou algumas horas; falaram de tudo, inclusive da viagem de núpcias.

— Tivemos um tempo estupendo. E que cidades e que povos! Tudo alinhado, cada um parecendo saber bem o que deseja; uma maravi­lha, uma maravilha!

Mas Portugal é sempre Portugal, meus filhos. Podíamos ter ficado ainda mais tempo, mas não resistimos a esta saudade, a este amor que lhe temos. Tudo é muito bonito, toda a Europa é beleza, porém, Portugal, parece ser urna síntese, parece ser uma condensação de todas as belezas europeias num pequeno país.

A variedade de província para província ora nos faz ver a Suécia como a Holanda como a Inglaterra, em resumo, como todos os países da Europa. Nele, temos um apanhado de todas as paisagens, apresentando-se ainda mais realçadas por causa do nosso Sol.

Gostei muito de Copenhague e de Amsterdão, mas Lisboa! Incomparável! Podem ter a certeza que capital, ou cidade como a nossa, não encontram na velha Europa por mais que procurem.

Depois de muito falar sobre a viagem, sobre o que viu, sobre o que observou, sobre o que comprou, para preparar o terreno, para dizer à filha que havia de ir lá a casa para ver todas as recordações daquela enorme volta, tentou convencê-la a regressar de novo ao lar, mas tudo foram esforços baldados e nada conseguiu. Promessas, rogos insistentes, nada, nada a fez modificar.

Prevendo uma melhor solução noutra altura, fez todos os esforços para terminar aquela visita sem se exaltar na esperança de melhor oportunidade.

Não aceitou que a filha a fosse levar no seu próprio carro, mas sim que o motorista a viesse buscar.

Chegou a casa banhada em lágrimas, lágrimas magoadas, sentidas, lágrimas de mãe falhada e que a poderiam tornar em poucos anos bastante mais velha.

Lamentou-se profundamente. Tinha ganho um marido, bom, compreensivo, bastante meigo, mas o destino para se cobrar deste bem-estar, tinha-lhe feito perder a filha que criara com tanto amor, por quem tinha sacrificado a sua vida e a sua juventude, pondo de parte quaisquer divertimentos que ela não pudesse ir.

"Que paga os filhos dão. É a era atómica como diz meu pai. Hoje, estão muito bem, muito meigos, muito carinhosos e pensando de uma maneira coerente e razoável. Amanhã, dá-lhes na bolha e desaparecem; julgam poder viver por eles próprios.

Que desgraça me veio com a herança recebida. Que desgraça! Se não a tivesse, Beatriz nunca se teria abalançado a sair de casa, a arrostar os perigos da vida, a ter de ganhá-la. Assim não precisa, ou pensa não precisar seja de quem for. Vive dos rendimentos e como sempre soube gerir bastante bem o dinheiro que lhe davam, muito melhor saberá agora administrar o seu. Que desgraça! Oxalá que não faça alguma que me envergonhe ainda mais. Mesmo assim, devem dizê-las lindas. E eles não fazem nada de mal!"

Nos seus colóquios íntimos de mãe dorida, desculpava-os e perdoava-lhes os danos morais que lhe davam e desejava ardentemente vê-los completamente felizes.

" Tenho que ir às respectivas faculdades e saber como andam eles, não podem reprovar ou ter sequer más notas. Ah, meus filhos, meus filhos! Que ralações!"

Os dias, os meses e os anos foram passando.

A vida entre os dois pombinhos corria às mil maravilhas e, como óptimos alunos que eram, se ao princípio os colegas não lhes prestavam a devida atenção por saberem que levavam vida em comum sem estarem casados, ainda que não conhecessem que aquele viver comunal era somente traduzido pelo tecto que os cobria aos dois, umas sopas, muito estudo e dois dedos de conversa. Uma vez por outra e para a monotonia não chegar a transpor a ombreira da porta ensaiavam uns passos de dança.

A certa altura, os camaradas, levados ou pela simpatia que ambos irradiavam ou pelo saber de que davam provas, começaram a conviver com eles, e por último iam para Caxias onde estudavam quantos quisessem, dividindo-se os de direito para um lado, e os de medicina para outro.

Quando, fartos de estudo, chegava a hora de dois dedos de cavaco, a maquineta dos discos era ligada e um bailarico com muita pouca luz, ou só ao luar, realizava-se sem qualquer maldade porque todos compreendiam perfeitamente o verdadeiro sentido das palavras camaradagem e amizade.

A fraternidade encontrava-se naquela casa de mãos dadas e despojada da inveja mesquinha e do egoísmo de que alguns indivíduos, apelidados talvez por engano de racionais, estão eivados. Quem lá entrava, sentia isso, e o conhecimento era vivificador.

Nos últimos dois anos, estudantes pobres de ambos os cursos enchiam os quartos de toda a casa. Ali dormiam, ali estudavam, ali ouviam rádio, viam televisão ou dançavam. O regulamento feito no primeiro dia tinha sido adoptado por todos e a amizade não era uma palavra vã, nem absurda.

A corroborar a boa organização e o método empregado para estudar estava patente neles mesmo, porque todos os que lá viviam ou que frequentavam aquela casa, senão eram os melhores, pelo menos cotavam-se entre os melhores dos respectivos cursos.

A formatura dos dois amorosos, foi feita com a média de vinte valores.

Os Professores que, de uma maneira geral, andam muito acima dos grandes e dos pequenos problemas dos alunos, já havia muito que os tinham notado e bem.

O convite para assistentes foi feito primeiro a Beatriz pois o seu curso demorava menos um ano do que o de Artur, e, assim, enquanto ele não o completou, aceitou o encargo de conduzir jovens como ela; porém, no fim do ano lectivo, quando o amado terminou a formatura foi também convidado para assistente, ela deixou o lugar porque, segundo as suas ideias, a juventude não só necessita de professores competentes e conhecedores das matérias como também de bons psicólogos, e ela não o era, como lhe demonstrara a experiência.

Artur não era assim; à primeira vista conhecia uma pessoa por dentro e por fora, psicólogo nato, sabia quando alguém tentava sobressair, pedantear-se, ou mostrar a sua fortuna ou pseudo-fortuna. Via num abrir e fechar de olhos os trapaceiros, os foliões, os cábulas, e depois, com a voz cantante das ilhas, tentava aos poucos convencer esses companheiros um bocado deformados a mudar a sua conduta, porém, ao ser-lhe feito o convite também não aceitou. Prezava muito a liberdade para se ligar a algo que o prendesse de qualquer forma.

Artur durante todos aqueles anos não fora visitar a família, mas escrevia-lhe todos os quinze dias, pois conhecia bem quanto prazer lhes causava com duas letras ali escritas em três ou quatro minutos sem custo nenhum, que para o pai e para a irmã representavam um grande contentamento.

O seu pensamento justo e amante da família era: se todos nós assim procedêssemos sempre, pais e filhos compreender-se-iam muito melhor, mesmo estando muitas léguas afastados.

Quanto é fácil escrever e quanto é bom sabermos que causamos alegria a alguém!

Em concordância com Beatriz, resolveram apressar o casamento para o mais curto espaço de tempo possível, mas pensaram antes, dar uma saltada até ao Arquipélago para comunicarem a boa nova aos familiares de Artur, que não conheciam aquele idílio.

Participaram a D. Leonor, que com três filhos nascidos em sete anos de casada, a fizeram esquecer um pouco os cuidados que a filha mais velha lhe causara em tempos. Anuiu imediatamente e suspirou aliviada por poder finalmente levantar a cabeça, conforme desabafo seu.

Ficou então assente que o casamento se realizaria em Lisboa, depois de regressarem de Cabo Verde onde iam tentar convencer a família de Artur a deslocar-se à Metrópole para o casamento, o que, no entanto, ele julgava difícil.

 

XIV

 

O pai do mocinho, a despeito de todas as expectativas, não estava no cais esperando os noivos. Nem ele, nem ninguém da casa.

— Eu não te dizia? Meu pai procede sempre assim. Bastante terra a terra, ainda que ande sempre com o olhar nas nuvens.

- Por que se havia de incomodar a mandar-nos esperar ou a vir ele próprio se sabe perfeitamente que nós o vamos visitar, o vamos ver, o vamos amimar durante um ou dois meses?

- Sabes qual foi a resposta que mandou quando lhe escrevi a dizer que tinha passado?

— Não.

— «Não fizeste mais que o teu dever». Sobre os vinte valores foi um pouco mais expressivo: «Parabéns, orgulho-me de ti». Nunca compreendi em toda a sua plenitude o meu pai. Sempre calado, sempre pensativo, trabalhador como não existe igual, amando espalhar o bem às mãos cheias, mas sempre com a cabeça e não ao desbarato. Um verdadeiro portento. No entanto, nunca foi suficientemente aberto para mim, sempre tive a impressão de que nos oculta, à minha irmã e a mim, qualquer coisa que o faz andar com aquele ar triste.

Falava pouquíssimo e quando abria a boca era para me dizer: «Olha que isso não se deve fazer por isto assim, assim, daí advém, estas consequências e aquelas, contudo faz o que entenderes». Mas, caturro como sempre fui, a despeito dos seus avisos, fazia sempre aquilo, que antes tinha pensado e normalmente resultava uma queda desastrosa em que ficava bem amachucado e da qual me lamentava depois. Mas era engraçado, nunca tinha vergonha.

Penso que em miúdos somos todos iguais quando crescemos ou divergimos para o caminho recto ou para a má conduta. Nunca me repreendia, nem uma palavra agreste jamais ouvi daquela boca, mas também, nunca foi pessoa para me vir ajudar ou dizer:

«Eu não te tinha avisado?» Não, eu aprenderia por mim, são os trambolhões na vida que nos fazem espevitar, e, sem eles, ela deixa de ter talvez o seu verdadeiro sentido.

Se singrei em Lisboa foi bem por aquilo que aqui aprendi e com os teus incitamentos. Foste um verdadeiro amor.

Tinha-me dito antes de partir: «Olha que a tua mesada é de mil e cem escudos por cada trinta dias, arranja-te, não tenho mais para te enviar, e são os anos de curso e nem mais um, porque de outra maneira...» — e eu já sabia, tinha que me formar quer tivesse vontade ou não. Mas tive, ou melhor, tivemos, não tivemos meu bem?

— Não ponhas dúvidas.

— Treze mil e duzentos escudos por ano e nem mais um tostão. Nas férias que poupasse; com a barraca que tenho e de que tantas vezes nos servimos com a outra tua, fosse acampar junto de uma praia durante as férias de verão, onde não só apanharia a brisa do mar bem saudável, como pouparia a renda do quarto. Felizmente apareceste tu, minha querida, e hoje sinto-me contentíssimo por ter aceite a tua oferta de vivermos como dois irmãos debaixo do mesmo tecto. Contente, não só por ambos termos vencido como ainda porque demonstrámos uma força de vontade excepcional respeitando-nos mutuamente.

Felizmente que o casamento está somente a poucos meses e tenho a certeza de que nesse e nos outros dias e eternamente te amarei com toda a minha força.

— Também eu Artur. E desejo esse maravilhoso momento com tanta ansiedade como tu. Amo-te tanto!

— Minha família vai adorar-te, mas já sabes; amar-te-ão à sua maneira, meu pai dizendo só o essencial. Minha irmã, essa é uma tagarela e tem corda para todo dia.

— Estou certa que os hei-de amar.

— Como eu os amo. Dois feitios completamente opostos, mas muito amigos.

Não sei se te ferirá a maneir como meu pai e minha irmã lidam com os criados. Lá em casa, empregados e patrões são tratados de igual para igual e nunca ali há uma mínima falta de respeito. Tu terás ocasião de observar.

— Podes estar descansado que não me admirarei. Fui habituada a olhar todos da mesma maneira e coisa alguma me choca; entristece-me sim ver o pedantismo com que alguns seres, meio analfabetos, desprezam os seus semelhantes; agora o contrário até me faz bem, leva-me sempre a pensar em mim própria, e naquilo que eu poderia ser, se tivesse nascido com igual falta de recursos.

Além disto, o que me faz pena é a falta de educação das pessoas, o não saberem agradecer gentilmente e de sorriso aberto um lugar sentado num autocarro ou um favor que se fez sem qualquer interesse.

— Para minha família, a educação tem sido a base fundamental para um bom entendimento entre eles e os trabalhadores. E quanto a igualdade terás ocasião de olhar imensas vezes os problemas que deviam ser o pensamento dominante de quem dirige a escalada social com o sentido justo de a fazer rápida, mas ponderadamente, para não se sair de um erro e se cair noutro de idêntica gravidade, o de tapar buracos atabalhoadamente que a ninguém aproveita, pois mais cedo ou mais tarde se chega à conclusão que foram simples obras de fachada.

— Estou ansiosa por chegar e todos conhecer.

— Em três tempos estamos lá.

A viagem, pouco mais demorou que meia hora, uma meia hora de recordações tanto da parte de Artur, que conhecia a ilha a palmos, como de Beatriz. que por ali andara quando da peregrinação que fez com o avô.

O pai do moço, se não os fora esperar ao cais, parecia pelo menos aguardá-los à porta de casa, e, quando os viu aproximar, foi em aparência calma ao seu encontro, embora o rosto o traísse, o olhar aceso, brilhante, tentando a todo o custo disfarçar o nervosismo de que estava possuído, calcando-o em grandes passadas, passadas sem ritmo, barulhentas pelo estalar dos calhaus debaixo dos pés e que denunciam algo de anormal.

Abriu os braços para os receber mais junto do coração:

— A minha futura nora!?

— Penso que sim.

— Pensa? Então não tem a certeza?

— Neste mundo de mudanças contínuas nunca poderemos ter a certeza absoluta seja do que for. Ainda não estamos casados!

— Mas estarão em breve. Contem-me, contem-me lá como foi essa viagem.

Sentados em cadeirões, olhando o céu, o mar e a vegetação luxuriante que os rodeava, contaram minuciosamente tudo quanto tinham passado e presenciado durante aqueles poucos dias, fazendo um cruzeiro marítimo com dois portos de escala.

Nos dias seguintes, o pai de Artur, contra os seus hábitos, tornou-se um conversador notável.

— E, minha filha, que a levou a sair de casa de seus pais e a arranjar moradia em Caxias?

— De meus pais não. De minha mãe, meu pai faleceu alguns dias antes de eu ter nascido e passado algum tempo; segundo o que ouvi contar à mãe fomos morar com o avô.

— Sabia onde moravam seus pais nessa altura ou por acaso nunca ouviu falar em tal?

 Para lhe ser franca, não me recordo.

- Mas que a levou a sair?

- Bem, senhor Vítor Manuel. Depois de minha mãe voltar a casar...

 O quê, sua mãe voltou a casar?

— Casou sim. Ouviu falar nela ou em meu pai?

— Por favor, continue, continue, estou simplesmente ligando ideias.

— Depois do casamento, como ia dizendo, não tive coragem de ficar em casa e fiz o que fiz.

— Ainda que desaprove o procedimento, neste caso, penso que fez bem.

  Aprova!?

— Aprovo, melhor não aprovo, mas neste caso, concordo.

— E concorda porquê? Perdoe-me a minha insistência.

— Um dia mais tarde o saberá, no entanto, se infelizmente for o que penso, contar-lhe-ei: pode estar descansada.

A conversa, ficou por ali naquele dia, sem Beatriz ficar mesmo nada descansada. Era atraída para o futuro sogro como se algo a fizesse caminhar sem querer na sua direcção. Parecia-lhe já o ter visto; não sabia bem onde e se há muito ou pouco tempo, mas tinha quase a certeza que o vira algures.

" Tem um rosto tão simpático, tão bondoso e tão triste que até faz pena nas pessoas. Mas por outro lado, parece uma tristeza que não nos magoa e que nos faz sentir bem. Não compreendo como o bem ou mal-estar de outro ser, tenha tal influência em nós próprios. Sim, sim, compreendo., já compreendi, é tal e qual como contribuirmos um pouco para a felicidade de outrém, parece que também beneficiamos, é tal e qual a mesma coisa! Não me podem restar dúvidas. Mas que memória a minha! Tenho a certeza de que o conheci noutros tempos. Não sei onde, mas que conheci, conheci."

Em outra ocasião, durante uma curta conversa, numa altura em que também divagando por entre toda aquela verdura da ilha de Santiago o encontrara num penhasco com ar meditativo, talvez pensando em tempos felizes já há muito passados, encetou diálogo:

— Aqui sozinho?

— Bons dias.

— Bons dias. Por aqui a esta hora matinal?

— É verdade, gasto-me por estes sítios todos os dias um pouco. É o meu ponto favorito; deste alto vejo terra e mar, aqui é o meu poiso predilecto quando quero pensar no país que deixei tantos, tantos anos e que me rói de saudades. Não sei por quanto tempo mais serei capaz de ficar, ou se serei capaz de partir.

— Não me diga que é metropolitano.

— Sim, nasci em Portugal.

— Mas o senhor está na mesma em Portugal, vivendo nesta maravilhosa ilha.

— Eu sei minha filha, mas compreende, por exemplo, que, uma pessoa de Lisboa e que vive em Penamacor, ambos na Metrópole, de tempos a tempos gosta de ir matar saudades a Lisboa ou vice-versa.

— Penamacor!

— Sim Penamacor, ou Sortelha, ou Carrapichana ou outra terra qualquer. Sabe, vamos embora, está-se a chegar a hora de ir ver os trabalhadores e ainda temos que andar um bom bocado até às casas. É um hábito como outro qualquer, mas faz-me bem.

Pelo caminho, a conversa mudou de rumo e falou-se de tudo menos do que no espírito agitado de Beatriz se ia formando.

O carreiro era estreito e inclinado; por esse motivo, fizeram o trajecto em escassos minutos.

À porta de casa estava Artur.

— Pensei que tinhas fugido aproveitando o romper da manhã, bela madrugadora. Julguei que os encantos da ilha te tivessem de tal maneira prendido que não resistisses à tentação e te embrenhasses por ela dentro.

— Sabes que é impossível deixar-te.

— No mundo não há impossíveis, pode haver dificuldades, alguns escolhos, mas tudo é vencido, tudo é ultrapassado pela vontade das pessoas. Quando se quer, quando se deseja firmemente uma coisa, ela consegue-se, e tu, tens a prova. Desejaste viver sozinha e a despeito das súplicas de tua mãe e dos rogos de teu avô conseguiste resistir.

— Porque te tinha a ti.

— Comigo ou sem mim, conseguias na mesma lutar e levar a tu avante. A força de vontade supera todos os obstáculos.

— Oxalá que sejamos sempre assim.

— Seremos.

— Tens a certeza?

— Como a de ter nascido, já nos conhecemos há tanto tempo!

Ao terminar qualquer conversa, o pensamento de Beatriz rodava sempre para o mesmo «Penamacor-Lisboa». "Porque teria o pai de Artur ter falado logo na terra, que um acaso a fizera conhecer em circunstâncias tão estranhas, como fora o testamento inesperado, o saber somente naquela altura que o pai era de lá e que vivera com aqueles simpáticos velhinhos que a tratavam por neta, que tinham enchido o carro de produtos de campo, lhe tinham dito que a quinta que agora era deles, depois passaria para ela, e finalmente o poder viver fora da tutela da mãe."

Em dias sucessivos, tentou encontrar o futuro sogro, mas por um acaso ou por outro, sempre se viam só à hora do almoço e do jantar, quando toda a família estava reunida.

Mas «Quem porfia mata caça».

— Senhor Vítor Manuel.

— Bom dia, continua madrugadora pelo que vejo.

— Está uma manhã esplêndida, segundo penso vamos ter chuva pela certa.

— Como sabe?

— Já me habituei a não me enganar. Deste modo, quando o meu pensamento é: Chove!, O ansiado fertilizante aparece como por magia.

— Sempre foi assim?

— Não, em outros tempos, as minhas dúvidas transformavam-se em certezas e depois em desilusões.

— O senhor Vítor Manuel, sofreu certamente muito.

— Se sofri! A incompreensão humana, a vaidade das pessoas fizeram que desejasse nunca ter nascido.

— Mas acredita na vida eterna.

— Leia o que está gravado naquela pedra e dê-lhe a explicação que melhor entender.

Beatriz leu:

 

«Não sei se existe Deus.

Não sei se É ideia ou forma

Ou se nada É.

Mas Seja ou não Seja,

Sei que O imagino e O respeito.

Porque, não sendo, É

Na minha idealização;

E porque É, existe

Só em mim, que O vejo bom e justo

Sem alguém que O possa corromper.

Se É nada, É tudo.

E se não É, devia Ser.

Porque eu O penso,

Ou eu O criei.»

 

1935—V. M. B.

 

- Talvez seja assim.

— Talvez, minha filha. Nós nunca temos a certeza de coisa alguma antes de ela se reve­lar completamente.

— Permita-me outra pergunta.

—Diga, diga.

— Por que vem o senhor para os pontos mais altos e passa aqui as manhãs e as tardes, até ao lusco-fusco?

— Eu procuro minha filha, procuro a verdade da existência no meio de estes seres mudos, depois de estar cansado de a procurar no meio dos racionais. Procuro a explicação do mundo e a possibilidade de encontrar o princípio Motor que me faça chegar a um fim.

— Mas há muitos anos que aqui está?

— Há bastantes. Primeiro, percorri o mundo antes de aqui chegar.

— E que encontrou?

— Nada. É triste dizê-lo, mas é verdade. Por todo o lado onde passava, em maior ou menor escala, os infelizes, os sem lar, os sem norte, os á-deriva, no íntimo deste caos que é o mundo, existiam em todo o lado, e por isso é que os povos não podem ditar leis uns aos outros. Nenhum deles tem ainda a casa como deve de ser, uns, um bocadinho melhor arranjada que outros, mas todos precisando, pelo menos, de uma espanadela.

A devassidão e a falta de entendimento entre as pessoas faz que existam ainda grandes desníveis difíceis de aplanar.

O pedantismo das nações, fá-las especializar homens, verdadeiros sábios do mal, que inventam sempre, e cada vez com maior potência, fontes de extermínio de outros homens e por um reverso da medalha o extermínio deles mesmos.

Ninguém pensa quão supersónica é a vida, e que não interessam nem invejas nem ódios, já que o fim é rápido e, com ele, nada podemos levar: o que ganhámos honradamente ou o que roubámos.

Se as pessoas pensassem nisto, muita miséria se evitaria. A longevidade lúcida seria a base das suas descobertas, o aproveitamento dos outros planetas seria profundamente estudado e o paraíso mitológico ou verdadeiro que nos habituámos a idealizar, seria uma realidade criada pelo homem.

Ainda nesse dia Beatriz não conseguiu saber o que o levava a procurar sistematicamente aquele estranho de olhos muito azuis e de falas ora rudes ora suaves.

Os tempos continuaram correndo e a altura do casamento aproximava-se a passes largos.

Um dia, sem Beatriz esperar.

— Quer dar um passeio?

— Estava aguardando alguém que me convidasse.

— Então...

— Vamos — mas o coração batia-lhe desordenadamente, parecia que as pernas não a queriam deixar andar, vergando a todo o momento; lá foi fazendo do fígado coração e pedindo com toda a intensidade que as forças a não abandonassem..

O Sol apertava e a lassidão apossava-se dos seres viventes.

Vítor Manuel e a nora, ombro a ombro, sem dizer palavra, pareciam estar ambos carregados de montes de problemas que os emudecia.

Terreno e terreno foram passando, olhando mar e Terra, Terra e mar.

— Alguma vez lhe falaram dos avós de seu pai?

— Não, nunca. Só conheço os pais adoptivos.

E Beatriz contou como os conhecera, mas que, ao perguntar à mãe pelos avós verdadeiros, lhe tinha somente respondido que tinham morrido pouco depois de o pai nascer.

— E nunca lhe mostraram fotografias deles?

— Não, a única foto que temos é... deixe ver, é a do irmão de meu pai que... se parece muitíssimo com o senhor! E agora vejo, sim, de onde me parecia reconhecê-lo. A parecença é extraordinária, embora muito mais novo.

— E se fosse eu mesmo?

— O senhor?

— Sim, eu. Desagrado-lhe como tio?

— Não, nem por sombras! Tenho até nisso muito orgulho e muito prazer. Mas por favor, não brinque e conte-me a verdade. Como tio permita-me que o abrace e beije pelo contentamento de ter encontrado um pouco do pai que nunca tive a felicidade de conhecer.

Segundo me disseram, pareciam-se extraordinariamente; e as fotografias que vi de um e outro davam uma certa semelhança ainda que a do senhor tivesse sido tirada numa época que se adivinha distante das do meu querido pai.

— Éramos bastante parecidos tanto física como no campo das ideias. Ambos lutávamos com ardor por uma melhoria de vida no mundo Português e ambos fracassámos, ainda que de maneiras diferentes. Um, porque morreu, o outro porque não teve coragem de continuar.

Sabe, a grande maioria das pessoas, quando começa a conhecer o mundo e vê como ele está torto, diz de si para si e às vezes até para quem a quer ouvir: Para que me vou aborrecer e sacrificar tentando endireitar o que está errado se isto não tem conserto? E como assim pensam e como a grande maioria é apologista desta ideia, o pobre mundo continua na mesma ou pior.

Eu, ainda tentei lutar contra a corrente, mas fracassei e sinto-me um falhado. Seu pai que estava imbuído dos mesmos pensamentos que eu e que certamente conseguiria realizar algo de útil no seu campo, falhou do mesmo modo, porque morreu e a morte é bem o falhanço total do homem e aquilo que lhe faz sentir fundo o que ele é: nada, coisa alguma mais que poeira.

Por outro lado, ele conseguiu de certa maneira realizar algo, pois não vergou enquanto foi vivo.

— Mas meu tio, meu tio!

— Sim, seu tio e contentíssimo por vê-Ia e por a conhecer tão bela como é, e ao mesmo tempo triste, muito triste, pelas preocupações que me traz.

— Pelas preocupações que lhe trago?

— Sim, pelas preocupações e grandes que carrega sem ainda sentir.

— Deixe-me contar-lhe um pouco da minha vida e depois talvez me compreenda:

Seu tio não morreu. Depois de ter procurado como já lhe contei, por todo o mundo a verdade e a justiça, veio até esta pequena parcela de Portugal onde casou e onde teve estes dois filhos que conhece.

Minha mulher que era uma crioula lindíssima, depois do segundo filho, endoideceu e alguns anos mais tarde, depois de muito sofrimento, morreu e deixou-me com estes encargos.

— Então nunca chegou a ser feliz?

— Sim, fui feliz, tive uma visão de felicidade na medida das possibilidades humanas. Minha mulher adorava-me e meus filhos sempre me têm respeitado.

Antes de ser atacada de loucura, nunca conheci dias tão suaves e tão bons neste mundo conturbado por guerras e hipocrisias. A seguir sobreveio a desgraça e nunca, também, senti dias tão terríveis.

Quando morreu, a paz voltou e meus filhos são bem a luz dos meus olhos e o espírito bom da mãe que os gerou.

— Então agora é pelo menos um pouco feliz?

— Era. Nada existe como o casamento para nos fazer ser melhores. Só com ele o homem parece encontrar-se completamente e o homem que não se case é sem dúvida um atormentado, um infeliz, um insatisfeito, por maior bem que espalhe à sua volta.

— Mas disse: «era».

— Sim, depois que a conheci, depois que soube que é a filha do meu jamais esquecido irmão, deixei de possuir o pouco de bem-estar que me fazia crer feliz e sentir-me no campo oposto, ainda que isso pareça uma falta de senso, pois o natural seria sentir-me contentíssimo por a encontrar. Por este lado, estou sem dúvida alguma contente.

— Mas fiz por acaso, algo que lhe desagradasse?

— Não, nada fez que me desagradasse. Parece-lhe estranho, não é?

— Mas tio, tem algo contra minha família que o possa malquerer a minha presença, se nada fiz que o pudesse aborrecer?

— Não minha querida filha, nada tenho contra sua simpática família, no seio da qual meu irmão, segundo penso, foi bastante feliz. E a si, sabe bem que a amo tanto como ao Artur ou à Maria da Glória, porém...

— Hoje, sou eu a pedir-lhe para continuar, por favor.

— Porém, não posso aceitar com bons olhos que Beatriz e o Artur, os quais amo como se fossem ambos meus filhos, se casem.

— Oh tio, tio, porque diz isso!?

— Acredite-me, não posso.

— Mas porquê?

- Beatriz, é inteligente, sabe compreender perfeitamente as coisas, o que devemos e o que não devemos fazer. Pois bem, se pensar uns curtos instantes, verá que nunca poderei aprovar esse casamento, ainda que bem desejasse poder fazê-lo.

— Mas eu e Artur, conhecemo-nos há sete anos e alguns meses, sempre nos temos dado muitíssimo bem. Uns irmãos nunca se teriam dado melhor.

— «Uns irmãos, disse bem e pense ainda melhor, uns irmãos. Artur, é seu primo co-irmão e felizmente minha filha que sempre se têm respeitado mutuamente e que coisa alguma existiu entre vós que os pudesse manchar. Contudo, não aprovo o vosso casamento. É o mesmo que ver casar o Artur com a Maria da Glória.

— Por favor, porque imagina isso?

— Veja. o Sol nunca se ligou à Lua. E porquê? Porque, não sendo irmãos, porque um, sendo uma estrela e o outro um planeta têm as raízes comuns que os gerou no princípio do mundo; e, porque esse princípio podia ser eivado de taras, de genes, assim, a sua ligação nunca se concretizou, para que ela não fosse a destruição da humanidade.

Numa imagem tosca do que lhe venho a dizer, admire ao findar a tarde, quando o Sol se põe, a Lua aparece antes do seu deitar e parece olhá-lo com ar melancólico mas resignado.

— Não quero compreender.

— Mas queira. Os sacrifícios na terra não são impossíveis. Nada é impossível, e, se hoje, uma ferida nos faz sofrer muito, amanhã quando estiver curada esquecemos imediatamente que a tivemos e o sofrimento que nos causou. E parece mesmo que revigorámos.

O calor apertava, o zumbido dos insectos barulhava o ar e as aves em voos razantes faziam prever mudança de tempo. Beatriz abafava no meio daquela atmosfera que sempre lhe agradara e que hoje quase chegava a mal­dizer.

— Mas o tio, soube logo que eu era sua sobrinha?

— Não, mas tive qualquer pressentimento, tive, como Beatriz, a certeza de que a conhecia, e não me enganei, assim como não se enganou e desde essa altura, passei a viver mal, bastante mal mesmo. Os dias pesavam-me e o mundo que tinha esquecido, voltou a aparecer com toda a sua brutalidade e má face.

— Apareci-lhe eu assim?

— Não minha filha. Beatriz apareceu-me como a reincarnação de meu irmão e de todo o meu passado. Nessa altura, tudo me passou pela memória; desde os tempos em que a boa Teresa, nos espaços de trabalho, nos deixava à rédea solta, descalços e às vezes com o monco a cair, fazendo as piores tropelias, até à nossa subida ao ministério, já bem engravatados e bem distantes daqueles dias e ao mesmo tempo tão perto, porque eles tínhamos sido nós; e outros, muitos outros viveriam como nós vivemos.

Felizmente, nunca esquecemos que viemos do nada e o poder, segundo penso, nunca subiu à cabeça tanto a um como a outro. Porém, a vida, que não pode ver, por muito tempo, a feli­cidade dos seus semelhantes desviou-nos como sabe do caminho que nos tinham oferecido.

Um, deixando este triste mundo, o outro varreu-se-lhe o sentido como se costuma dizer e, quando o encontrou completamente, achou-se pouco mais ou menos onde o vê e sem forças para recomeçar.

— Então, porque tenta agora, desviar também o curso da vida que nos estava destinado a mim e a Artur e nos quer fazer infelizes como o senhor o foi?

— Tente compreender-me, eu não posso sequer ter o pensamento de os poder fazer infelizes e é por isso, por esse medo, que não posso ver com bons olhos esse casamento.

— Mas, se nos ama como diz, porque se opõe?

— Porque vos amo.

Pergunte ao Artur, depois de lhe contar que é a sua prima directa, de lhe lembrar que a mãe morreu louca e que tanto eu como seu pai, ainda que singrando na vida, com muitíssima facilidade, sempre tivemos algo que nos diferenciasse das outras pessoas, talvez, porque segundo se diz, e eu conto-lhe isto com toda a franqueza, as pessoas excepcionalmente inteligentes, quase todas têm tara.

Pergunte-lhe a ele que se acabou de formar e com uma classificação que não deixa alguém ter dúvidas sobre a sua forte sabedoria, porque temo o vosso casamento.

— Por que não me diz o senhor?

— Quer que seja eu?

— E porque não! Já começou a fazê-lo, agora, peço-lhe que acabe.

— Está bem Beatriz, far-lhe-ei a vontade:

A nossa família, sofreu bastantes dissabores por causa dos seus tiques patológicos e é normal e, quase certo, que ao casarem e ao aparecerem os vossos filhos, eles, que não têm culpa nenhuma dos vossos erros, sujam deformados tanto física como mentalmente. Portanto, e isto em poucas palavras, a vossa felicidade seria quimérica, seria unicamente uma pequena passagem de prazer.

— Por favor, não me diga isso, não me cause mal, peço-lhe.

— Estou-lhe dizendo o que penso e a verdade.

— Por favor.

— Acredite-me, Beatriz, se quiserem casar, isso é convosco e não me posso opor, somente sei dizer que têm muitíssimas probabilidades de virem a ser bastante infelizes. Por um acaso qualquer pode ser que assim não aconteça, porém, vocês, viverão sempre atormentados à espera do pior.

— Mas não teremos filhos.

— Seria imperdoável modificar as leis da natureza, fazer com que na terra apareçam as melhores criações do homem e da mulher.

Deixe-me contar-lhe isto: antes de me casar e mesmo depois, mas antes, porque ainda o não tinha feito; quando passava por uma mulher em gestação dizia mentalmente: maravilhosa criatura, quem me dera ser o pai do filho que trazes no ventre. E parecia-me, se o fosse, que me deveria sentir o homem mais feliz que existiria à face da terra, quer ela andasse bem ou mal vestida, rota ou coberta de jóias, o meu desejo era sempre este. E enquanto não me casei, e no espaço em que não tive filhos, senti sempre que algo me faltava. Sentia o vácuo da minha existência.

Minha filha, jamais deveis pensar em não ter filhos; é pior do que ter nascido morto, porque viemos ao mundo e não criámos. Nada lhe demos em paga da nossa aparição.

Quando estamos ainda a tempo de evitar erros, que ficam gravados para todos os nossos dias, por que não evitá-los?

— Oh tio, tio. Se soubesse quanto gosto do Artur!

- E como o Artur gosta de si. Sei, sei perfeitamente. Mas um amor, mesmo um amor verdadeiro, quase uma paixão, não dura toda a vida. E um deformado, um louco, um mentecapto, esse sim, pode durar uma vida inteira testemunhando-nos o erro que fizemos e que poderíamos ter evitado.

Façam o que muito bem entenderem, amem-se à vossa vontade: e casem-se ou juntem-se bem longe de mim e nunca me mandando dizer que o fizeram.

— Mas porquê tio?

— Já lhe expliquei.

— Mas isso, pode não suceder.

— Mas pode. E há muitíssimas mais probabilidades de isso acontecer, do que de prever o melhor. Nessa altura seria a desgraça, e este mundo já tem de sobra.

— Por favor, não seja pessimista.

— Sou.

A troca de impressões misturada de conselhos e de rebatimentos ficou por ali. Tio e sobrinha, tristemente foram descendo a ravina que tinham subido cheios de pensamentos.

O Sol já não os aquecia, como poucas horas antes, e o céu e o mar pareciam ter mudado de cor. Assim, a face da terra, compartilhando da tristeza das almas boas, modificara subitamente o seu semblante e tudo era luto.

Mais dias passaram sobre aquele infeliz dia e a cada um que desaparecia, algo também se modificava. Como as horas vão tornando pouco a pouco a claridade em escuridão, assim os hábi­os da casa e os seus habitantes modificavam os seus semblantes.

Uma tarde Beatriz, sem se poder conter por mais tempo, e depois de ter pensado muito, falou com Artur e expôs-lhe o que o pai lhe dissera.

Pensando que o ia deixar admirado e aborrecido, encontrou que o seu rosto não sofrera qualquer alteração e que parecera ficar indiferente.

Também ele sabia toda a história; e se a não soubesse, aqueles últimos dias ter-lhe-iam revelado algo de anormal. A psicologia que num futuro próximo teria de aplicar em proveito da ciência tudo lhe fizera compreender.

— Mas que dizes de tudo isto?

— Que digo?

— Sim, que dizes?

— Digo que somos maiores e emancipados, com um futuro radiante à nossa frente, que nos amamos e que vamos casar com ou sem consentimento.

— Então não concordas com o que teu pai diz.

— Sim, em parte, numa pequeníssima parte.

— E fazes o contrário?

— Fazemos.

— Mas porquê, se reconhecemos que tem razão?

— Porque nos amamos, porque nos conhecemos há perto de oito anos, porque sempre nos desejámos, porque sempre esperámos ansiosamente o dia em que fôssemos um só em dois corpos e porque podemos ter ou não ter filhos.

— Mas o mais natural...

— O mais natural é termos ou não termos, e se os tivermos, em vez dos defeitos que meu pai te meteu na cabeça e de todas as deformações que eles possam vir a ter, porque não admitir o reverso e pensar que, esses hipotéticos filhos, reunam todas as nossas capacidades, toda a nossa inteligência, toda a nossa pujança e em vez de saírem furados do miolo ou com qualquer anomalia, apareçam uns génios tais, que nós à sua semelhança sejamos pequenos pontos. Por que não admitir também esta teoria?

— Porque a outra tem já bases em que se fundamentar e esta não passa de mera suposição.

— Meu pai e o teu foram óptimos alunos e depois, melhores entre os melhores.

— Perdoa, mas penso que teu pai tem razão e os teus argumentos não chegam para modificar o meu pensamento.

— Beatriz, deixastes de gostar de mim?

— Sabes bem quanto te amo e como é esse amor.

— Então?

— Então, faremos o que nos dita a consciência, faremos o lógico e não provocamos o incerto pelo provável.

— Não sejas tontinha. Alguma vez seríamos felizes tu e eu, separando-nos agora, depois de tantos anos juntos, sabendo que nos queremos como queremos?

— Apesar disso, temos que nos separar, nunca tivemos relações, nunca soubemos se nesse campo nos daríamos bem ou mal; pensaremos que somos dois irmãos, que nos queremos muito, muitíssimo bem e separamo-nos com um beijo que nos fará recordar os bons momentos passados, até que o futuro e a sequência dos dias esbatam esse «outrora» e velejemos há procura da felicidade que neste momento pensamos amarguradamente perder.

— Não queiras ser criança. Pensa novamente que poderemos ter filhos ou não e que por este motivo poderá não existir qualquer perigo. E mesmo se os tivéssemos, ainda haveria muitas probabilidades de serem tão ou mais perfeitos que nós mesmos, como te disse há pouco.

— Contudo, prefiro não arriscar com tão diminutas probabilidades de ganhar.

— Deixastes de gostar de mim, Beatriz. Se é isso, tens perdão para o mal que me estás causando; se não é isso, não sei o que te possa dizer.

Separaram-se sem dizer mais palavra.

Um barco da Companhia Colonial de Navegação, por sinal, o mesmo que os tinha trazido, os levou para a Metrópole.

Vítor Manuel não chegou a saber de momento qual seria a resolução daqueles filhos, que agora, agora que principiara a ter umas esperanças de bons tempos, antes os vinham nublar.

Artur e Beatriz não casaram, ainda que o médico, mais coração que cabeça, o quisesse a toda a força, e argumentasse com dados científicos. A futura acusadora dos erros públicos não esteve com meias medidas, compreendeu perfeitamente o que seria uma vida atormentada ou contrariada durante os anos em que pudesse conceber e que passariam juntos.

Sem anunciar a sua partida, o Extremo Oriente foi o seu porto de chegada.

Artur Manuel, sofrendo talvez dos sopros patológicos dos ascendentes, teve um surto de loucura que o afastou durante alguns meses da razão e voltou à ilha que o tinha visto nascer e que o veria morrer no meio de livros e do estudo profundo do seu clima, das doenças que atacam os seus habitantes, da maneira como eles poderão alcançar a sua felicidade, num complemento para se atingir a felicidade nesta Terra que tão duramente lhe exigira o tributo da sua existência.